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21.7.10

Reflexões sobre a perfeição, parte 4

Continuando da parte 3

O caminho do pólen

Se há algo de comum em todas as doutrinas religiosas, é a idéia do retorno, de re-conexão com Deus, o Cosmos, um Éden perdido nos confins de nossas origens... Alguns de nós podem sentir a fornalha cósmica que arde em nosso ser, e vislumbram a perfeição na totalidade da obra divina, em eterna vibração, em eterna construção, em belas simetrias e assimetrias, em leis imutáveis... Entretanto, onde estará o Éden. Onde se encontra o Reino de Deus?

Esse sentimento, entretanto, não é exclusividade dos religiosos. Aqueles que não conheceram pouca ciência também o expressam. Carl Sagan, apesar de ter sido agnóstico, foi uma dos autores com maior espiritualidade expressa e evidente em seus textos:

"Recentemente, aventuramo-nos um pouco pelo raso (do Cosmos), talvez com água a cobrir-nos o tornozelo, e essa água nos pareceu convidativa. Alguma parte de nosso ser nos diz que essa é a nossa origem. Desejamos muito retornar, e podemos fazê-lo, pois o Cosmos também está dentro de nós. Somos feitos de matéria estelar, somos uma forma do próprio Cosmos conhecer a si mesmo."

Sim, existem seres que não conheceram pouca religião, e buscam o Reino de Deus em todas as formas e todos os campos, pois que sabem que em nenhum lugar estaremos nalguma dia fora dele... Mas decerto também existem seres que não conheceram pouca ciência, e O buscam nos limites dos átomos e nas ondas luminosas mais antigas do Cosmos. Buscam-No mesmo sem acreditar Nele? Que seja – como julgar? Deixem que busquem o próprio Cosmos!

Mas então, como se religar? Como retornar ao Éden perdido? Talvez o primeiro passo seja reconhecer que o julgamento da perfeição, a reconciliação com tal paradoxo, esteja ainda além de nossa compreensão atual...

Existe um conto espiritualista, de autoria desconhecida, que fala da importância da espontaneidade:

“Agora, eu lhe pergunto, quão longe você acha que uma flor chegaria se de manhã ela virasse sua face para o céu e dissesse:

"Eu exijo o Sol. E agora eu preciso de chuva. Então eu a exijo. E exijo que as abelhas venham e tomem meu pólen. Eu exijo, portanto, que o Sol deva brilhar por certo número de horas, e que a chuva deva verter-se por certo número de horas... E que as abelhas venham – as abelhas A, B, C, D e E, pois não aceito que nenhuma outra abelha venha.

Eu exijo que a disciplina opere, e que o solo deva seguir meu comando. Mas eu não permito ao solo qualquer espontaneidade própria. E não permito ao Sol nenhuma espontaneidade própria. E não concordo em que o Sol saiba o que está fazendo. E exijo que todas estas coisas sigam minha idéia de disciplina"

E quem, eu lhe pergunto, iria ouvir? Pois, na espontaneidade milagrosa do Sol, há uma disciplina que lhe escapa totalmente, e um conhecimento além de qualquer um que você conheça.

E na espontaneidade da atuação das abelhas, de flor em flor, colhendo ao pólen mesmo sem saber, há uma disciplina além de qualquer uma que você conheça, e leis que seguem o conhecimento delas, e contentamento que está além de seu comando.

Pois a verdadeira disciplina, veja, é encontrada apenas na espontaneidade. E a espontaneidade conhece sua própria ordem.”

Viver o aqui e agora – esta é a condição para que possamos visualizar os portais do Éden... Mas como adentrá-lo finalmente?

Epicteto e os estóicos diziam que não devemos nos preocupar com aquilo que não nos é dado escolher. No entanto, ao que nos é dado escolher, devemos nos portar da melhor forma possível. Devemos reconhecer nossa imperfeição, mas devemos também ter sempre em nossos horizontes a perfeição do “vir a ser”...

E nesse momento, admirando a perfeição estendida pelo horizonte, poderemos dar os primeiros passos no caminho do pólen – apenas um dentre tantos outros cantos sagrados dos indígenas (ou de qualquer outro povo) que servirá para nos guiar nessa trilha:

Na casa da vida eu me aventuro
No caminho do pólen
Com um deus enevoado eu me aventuro
No caminho do pólen
Para uma dimensão sagrada
Com um deus à frente eu me aventuro
E um deus atrás de mim
Na casa da vida eu me aventuro
No caminho do pólen

Ah! A beleza à minha frente
A beleza atrás de mim
A beleza a minha direita, e a minha esquerda
A beleza acima e a beleza abaixo
Eu estou no caminho do pólen!

O Éden não foi, nem será, mas o Éden é este momento – o único momento que sempre existiu. A eternidade irradia-se por todos os cantos do espaço e do tempo, todos os pontos estão igualados – eis a bela simetria que a ciência vislumbra...

Mas o caminho para o centro, para a essência, para a divina flor que espalhou todo esse pólen pelo infinito – este está e sempre esteve em nossa própria consciência. Quando adentramos esse caminho, pouco importa quanto tempo resta para chegar ao céu, pois que compreendemos que a perfeição se encontra no caminhar, e não no chegar. Eis que mesmo este paradoxo pode ser reconciliado. Eis que todas essas meias-verdades apontam para uma única verdade – que infelizmente não pode ser descrita por cascas de sentimento...

É preciso se aventurar no caminho!

***

Crédito das imagens: [topo] Lauren Bishop, [ao longo] Joel Nakamura (ilustração baseada no mito do caminho do pólen, dos índios navajo)

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6 comentários:

Blogger Sergio Junior disse...

Bom...só posso dizer que os textos estão PERFEITOS!

Abraços Raph

Sergio

21/7/10 17:26  
Blogger raph disse...

Então é porque a obra está completa, hehe...

Obrigado,
raph

21/7/10 17:30  
Blogger Samuel Otemi disse...

Será que perfeição é isto mesmo?
Para mim perfeição não está em completar a obra, não está em uma obra terminada, mas está sim em um ato de se “completar”, de adequar algo outra coisa com natureza completamente deferente. O encaixe perfeito do probóscide da borboleta com uma flor, tipo a união de dois gases altamente inflamáveis criarem a água.
Talmude (Ta’nid, 20) “Aconteceu que uma vez o Rabi Eliezer, filho do Rabi Simon, encontrou por acaso um homem que era extremamente feio. Como é feio este homem?
Vá e diga ao artesão que me criou! Como é feio o veículo que você me fez!
Se você perceber ai está à chave.
Não se pode dizer que obra de Deus é perfeita avaliando apenas os veículos em se tratando de veiculo como “todas as forças da natureza presente dentro de você, como o tempo a inteligência e muitas outras que toma forma que seu “eu” usa para se exteriorizar. Porque aquilo que completa algo para um pode ser para outro algo para outro altamente repudiante.
Os veículos mais densos como corpo a natureza, nem se fala. Cada ser vivo tem sua própria forma de se completar e consequentemente a sua própria forma de ser perfeito.
Pensar em perfeição? E pensar também porque Deus criaria tanta dor na terra se ele é perfeito? Por que tantas atrocidades acontecem se Deus é perfeito.
Ainda além é o sentido desse provérbio?
“Nunca mostre a um tolo um trabalho incompleto”
Ou em uma ordem menor. Se um homem que pensa em segundos encontrar um homem que pensa em minutos. O homem que pensa em segundo dirá esse homem só fala coisas erradas da mesma forma é o homem que encontra o que pensa dias, meses, anos imagine se ele encontra aquele que possui um pensamento eterno.
Se colocar a interpretação em relação do ponto de vista que o homem tem o espírito eterno o que é imperfeição se torna perfeito na conclusão do completar-se de cada um.
Por exemplo, o soluço em sua visão é algo imperfeito, mas se você for pensar que o soluço salva a vida de milhares a função do soluço é retirar o ar preso engolido. Imagine se ele não existisse. Por onde Sairia esse ar? Nem me fale o que teria de gente morrendo com o próprio ar.
Quanto à clorofila, existem vários tipos de clorofila como a clorofila A, clorofila B, elas absorvem todas as cores das regiões do espectro da luz visível. A região do verde e do amarelo não são mais energéticas já que o azul, o violeta o anil tem maior freqüência e a planta não tira energia da luz a luz é um catalisador de elétrons para que ocorram as reações necessárias para o seu processo respiratório.
Tudo é uma questão de ponto de vista e encontrar a coisa certa que completa cada coisa em seu tempo certo e em sua forma verdadeira.

21/7/10 20:19  
Blogger raph disse...

Oi Samuel... Se reparar muitos dos meus textos são salpicados de pontos de interrogação - é porque não pretendo apenas expor minhas opiniões e muito menos verdades, mas deixar que cada um reflita sobre essas questões por si mesmo.

A parte da clorofila, por exemplo, retirei de um questionamento de Carl Sagan. A parte do soluço retirei de um artigo da Scientific American (eu não entendo tanto assim de ciência, mas leio bastante hehe)... Não quer dizer que considere a natureza imperfeita. Até mesmo porque a perfeição em si tem inúmeras definições...

A funcionalidade da clorofila seria sem dúvida melhor se absorvesse espectros mais energéticos (mais energia pelo mesmo "esforço"), e o soluço é apenas um resquício da evolução.

Mas, se quer saber, concordo plenamente com a essência de seu comentário (e reflexão): a perfeição não está na chegada, mas no trilhar o caminho - conforme falo nos últimos parágrafos do último artigo:

"Quando adentramos esse caminho, pouco importa quanto tempo resta para chegar ao céu, pois que compreendemos que a perfeição se encontra no caminhar, e não no chegar."

Abs!
raph

22/7/10 07:44  
Blogger Samuel Otemi disse...

O que eu comentei não quer dizer que não eu tenha gostado dos textos.
Eu gostei, me fez pensar varias coisas e isto é o mais importante.

Samuel Otemi

22/7/10 17:47  
Blogger raph disse...

Legal, esse é o objetivo... Pensar, refletir, para melhor viver...

Estamos todos no rumo da perfeição. Não sei se chegaremos lá nalgum dia do infinito - mas vamos em frente :)

Abs
raph

23/7/10 09:29  

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