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22.9.11

Filhos da eternidade, parte 2

« continuando da parte 1

Texto de Arthur Schopenhauer em “Da morte, metafísica do amor, do sofrimento do mundo” (Ed. Martin Claret), tradução de Pietro Nassetti – Trechos das pgs. 67 a 72. Os comentários ao final são meus.

É verdade que não podemos levar a cabo a representação de tudo o que foi dito acima sem recorrer a noções de tempo; e todavia, essas noções deveriam ser excluídas quando se trata de coisas-em-si. Entretanto, pertence aos limites insuperáveis de nosso intelecto que ele não possa libertar-se inteiramente dessa forma primeira e mais imediata de todas as suas representações, para depois operar sem ela [1]. Assim, somos conduzidos aqui a uma espécie de metempsicose, porém com a diferença importante de que a nossa metempsicose não concerne à psique, isto é, ao ser que conhece, mas apenas à vontade, que, com isso, suprime muitos absurdos ligados à doutrina da transmigração de almas [2]; e com a consciência de que a forma do tempo intervém aqui apenas como acomodação inevitável à natureza limitada de nosso intelecto.

[...] [O novo ser nascido] agora, conforme a sua natureza e as modificações que sofrer guiado pelo curso necessário das coisas, sempre em harmonia com sua natureza, recebe agora, por um novo nascimento, um novo intelecto, com o qual seria um novo ser, que não teria recordação de uma existência anterior, pois o intelecto, único capaz de memória, é a parte mortal, ou a forma; a vontade é o elemento eterno, a substância do nosso eu: disso resulta que a palavra palingenesia é mais adequada para designar essa doutrina, que metempsicose [3]. Esses renascimentos perpétuos constituiriam então a série dos sonhos de vida de uma vontade em si indestrutível, até que ela, instruída e aperfeiçoada por tantos e tão diversos conhecimentos sucessivamente obtidos, sempre em novas formas, viesse a se suprimir a si mesma [4].

[...] A verdade aqui expressa não era totalmente desconhecida, embora jamais tenha sido remetida ao seu sentido real e exato, como o permite fazer nossa teoria da essência superior e metafísica da vontade, e da natureza secundária e apenas orgânica do intelecto. Com efeito, encontramos a doutrina da metempsicose, dos tempos mais antigos e mais nobres da humanidade, sempre espalhada sobre a terra, como a crença da grande maioria do gênero humano, e mesmo, na verdade, como doutrina de todas as religiões, com exceção da judaica e das duas religiões que surgiram desta [5]; todavia, no budismo, como já disse, nós a encontramos na sua expressão mais sutil e próxima da verdade. Enquanto os cristãos se consolam pela esperança de se reverem em um outro mundo, onde se reencontra, ao mesmo tempo, a individualidade completa, para as outras religiões, pelo contrário, aquele reconhecimento começa a se operar desde já, embora incógnito.

Isto é, no círculo de nascimentos e em virtude da metempsicose, ou palingenesia, as pessoas que hoje estão em contato ou relação íntima conosco também nascerão, ao mesmo tempo que nós, na próxima geração, e terão relações e disposições idênticas, ou pelo menos análogas, sejam estas amigáveis ou hostis.

[...] Sobre a universalidade da crença na metempsicose, Obry nos diz, com razão, no seu excelente livro Du Nirvana indien, p.13: “Esta velha crença fez a volta ao mundo, e estava de tal modo expandida na alta antiguidade, que um douto anglicano a julgou sem pai, sem mãe, e sem genealogia”. Já ensinada nos Vedas, como em todos os livros sagrados da Índia, a metempsicose é, como se sabe, o núcleo do bramanismo e do budismo, e reina até hoje por toda a Ásia não conquistada pelo islamismo, isto é, em mais da metade do gênero humano, como a crença mais sólida, e como influência prática de uma força inimaginável. Ela foi também um elemento de fé dos egípcios (Heródoto, II, 123); Orfeu, Pitágoras e Platão a adotaram com entusiasmo, e os pitagóricos, sobretudo, a mantiveram firmemente. [...] Ela era também o fundamento das religiões dos druidas. Existe até uma seita maometana no Hindustão, os bohrahs [6]. [...] Mesmo entre os americanos (índios) e povos negros, a até mesmo entre os australianos (aborígenes), encontram-se traços dela.

[...] Essa doutrina disseminada por todo o gênero humano, e tão evidente para os sábios como para o povo, encontra uma obstáculo no judaísmo e nas duas religiões que dele se originaram, cuja teoria da criação a partir do nada tem a difícil tarefa de estabelecer conexão com a crença de uma permanência eterna de seu ser a parte post. Se é verdade que, a ferro e fogo, essas religiões conseguiram expulsar da Europa e de uma parte da Ásia aquela crença originária e consoladora da humanidade, resta saber por quanto tempo. Conseguir isso sempre foi difícil: atesta-o a história dos primeiros tempos da igreja; a maior parte dos heréticos, por exemplo, os simonistas, basilidianos, valentinianos, marcionistas, gnósticos e maniqueus, admitiam aquela crença antiga [7]. Os próprios judeus, em parte, a incorporaram, como testemunham Tertuliano e Justino (em seus diálogos). O Talmud relata que a alma de Abel passou para o corpo de Seth, e depois para o de Moisés. Até mesmo a passagem da Bíblia, em Mateus 16, 13-15, só adquire um sentido razoável dentro da hipótese do dogma da metempsicose. Lucas, que certamente também a admite (9, 18-20), acrescenta que um dos antigos profetas ressuscitou, insinuando aos judeus a suposição de que um antigo profeta possa ter ressuscitado em carne e osso: mas, como eles sabiam, tal profeta já estava enterrado no túmulo havia seiscentos ou setecentos anos, portanto era pó havia muito tempo, e isso seria uma absurdo manifesto.

A transmigração de almas e expiação por meio desta de todas as faltas cometidas em uma vida anterior, o cristianismo substituiu pela doutrina do pecado original, isto é, pela expiação pelo pecado de um outro indivíduo. As duas doutrina identificam, e por certo com uma intenção moral, o homem existente com um outro que existiu anteriormente: a transmigração de almas por uma assimilação imediata, o dogma do pecado original por uma aproximação indireta [8].

***

[1] Não conseguimos representar a eternidade em nosso próprio pensamento, pois o próprio ato de representação é temporal. Desse modo, é preciso filosofar acerca da eternidade de uma forma “aproximada”.

[2] Schopenhauer entendia a reencarnação como um mecanismo pelo qual sua “força da vida” fazia com que as potencialidades dos seres (a espécie, a vontade) se desenvolvessem ao infinito. Ele certamente não acreditava que as personalidades (o indivíduo, o intelecto) permaneciam intactas de geração em geração – estas eram aniquiladas, pois que surgiam com o nascimento e “eram esquecidas” com a morte.

[3] E outros a chamam reencarnação, mas termos são apenas termos: o importante é o que cada um compreende de seus conceitos.

[4] Apesar de não ficar muito claro o que o filósofo alemão quis dizer, podemos tirar daí a curiosa concepção de que a “força da vida” também pode evoluir, e que todos somos partes de sua evolução. Me lembrei da famosa frase de Carl Sagan: “Nós somos uma forma do Cosmos conhecer a si mesmo”.

[5] Em realidade, mesmo na forma mais profunda do judaísmo, a cabala, existia a crença arraigada na reencarnação – e que persiste até os dias atuais entre inúmeros judeus. “Não é possível entender a cabala sem acreditar na eternidade da alma e suas reencarnações” (Rabi Arieh Kaplan). Entre os essênios e gnósticos, que muitos compreendem como “os verdadeiros cristãos primitivos” (antes de Constantino inaugurar sua Igreja), a reencarnação e o evolucionismo também sempre foram pontos chave de sua doutrina espiritualista. Mesmo na Bíblia “editada” por Constantino “sobraram” algumas passagens que remetem a tal conceito, conforme o próprio Schopenhauer descreve a seguir.

[6] Os Drusos e algumas outras seitas islâmicas crêem na reencarnação, embora muitas delas não creiam. As seitas islâmicas que aceitam a reencarnação sustentam suas controvérsias citando passagens do Alcorão, as quais prestam-se a uma interpretação a favor de tal crença. Por exemplo; “Como deixais de acreditar em Alá se estivestes mortos e Ele vos deu a vida. Depois Ele vos dará a morte, e novamente a vida, e depois para Ele voltareis”. (Surah. 2 versículo 28); e “E Alá vos fez com que nascesseis da terra, fazendo-vos depois voltar a ela, e Ele vos dará a luz novamente, um nascimento.” (Surah. 71, versículos 17-18). M. M. Picktall. The Meaningof the Glorious Koran: An Explanatory Translation. New York: The New American Library, 1953.

[7] Vê-se que Schopenhauer estudou a fundo inúmeras religiões e suas histórias, antes de falar do assunto – provavelmente muito, muito mais do que a grande parte dos eclesiásticos que resume todo seu conhecimento apenas a sua própria doutrina (a qual, muitas vezes, creem ser “infalível”).

[8] Que cada um julgue, por si só, por toda a lógica e toda a justiça que é capaz de conceber, qual faz mais sentido, qual está mais próxima da realidade que a Natureza nos exibe em todos os dias e todas as noites.

***

Crédito da imagem: Bobaumicheduw

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2 comentários:

Anonymous Petri disse...

Estou me sentindo um pouco bobo agora. Não tinha idéia de que Schopenhauer fosse assim, acho que adquiri algum preconceito das aulas de filosofia. Reverteu mas reforçou certas idéias que eu tinha da continuidade da inteligência.

Agradecido

25/9/11 14:17  
Blogger raph disse...

Eu tampouco tinha noção da relação estreita entre Schopenhauer e o budismo e hinduísmo até recentemente. Continuo gostando de muita coisa que ele disse (particularmente acerca da metafísica do amor e da morte), e não gostando de algumas tantas (particularmente quando refletia o machismo de sua época, ou a própria depressão).

Abs
raph

26/9/11 00:04  

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