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28.6.15

O óbito da ignorância

A Casa Branca, pela entrada da noitinha, com iluminação especial em diversas cores, celebrando a decisão histórica da Suprema Corte americana.

Foi por conta de uma certidão de óbito que os EUA finalmente foram incluídos no rol dos países que deixaram de proibir o casamento entre pessoas do mesmo sexo, ao lado de Holanda (a pioneira) e diversos países europeus, assim como Uruguai, Argentina, Brasil, Canadá, México, África do Sul e Nova Zelândia:

Mapa com os países onde o casamento gay já é legal.

“Quando conheci meu marido, eu soube que queria ficar com ele pelo resto da minha vida, até que a morte nos separasse. A maioria das pessoas sente isso quando encontra o amor de sua vida”, disse a BBC o americano Jim Obergefell, 48 anos, ao falar sobre John Arthur, seu parceiro por 21 anos.

Eles se conheceram em 1992 e durante duas décadas construíram uma vida juntos em Cincinnati, Ohio. Em 2011, Arthur foi diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica, doença que não tem cura, e começou a perder o controle de seus movimentos musculares e a fala. Ambos sabiam que o tal “até que a morte os separe” estava cada vez mais próximo, e decidiriam aproveitar uma decisão prévia da Suprema Corte americana, de 2013, que permitia o seu casamento em certos estados da federação.

O casal arrecadou US$ 13 mil com familiares e amigos e alugou um jato com equipe médica para viajar a Maryland, Estado onde o casamento gay já era permitido na época. Em 11 de julho de 2013, Obergefell e Arthur trocaram votos e alianças em uma cerimônia de menos de dez minutos, realizada dentro do avião, na pista de um aeroporto em Baltimore.

Após voltarem para casa, entraram com uma ação para que o casamento fosse formalmente reconhecido na certidão de óbito, quando Arthur morresse. Após decisão favorável de um juiz federal, o Estado de Ohio recorreu, e o caso chegou à Suprema Corte.

Foi precisamente este caso que acarretou na decisão histórica e acirrada (5 votos a 4) do último dia 26 de julho de 2015, que basicamente estendeu o direito ao casamento homossexual de alguns estados para todo os EUA. Foi para que na certidão de óbito do grande amor de sua vida não constasse a palavra “solteiro” no lugar de “casado” que Obergefell, indiretamente, ajudou a acelerar o óbito da intolerância e da ignorância na maior potência do mundo ocidental.

Claro que, não fosse por este caso, teria sido por outros. Para além do apoio incondicional a decisão da maior rede social da internet, o Facebook, o que acarretou no florescimento de milhões de fotos de perfil mais coloridas nos dias subsequentes, essas foram algumas das grandes empresas que demonstraram explicitamente o seu apoio à decisão americana:

Logos da Apple, Microsoft, Google, Facebook, YouTube, Twitter, Tumblr AmericanAirlines, Uber e Vevo.

***

Uma questão bíblica
No Levítico, a Bíblia nos explica que “quando um homem se deitar com outro homem, como com mulher, ambos fizeram abominação; certamente morrerão” (Le 20:13). Teoricamente, todos os judeus andarilhos, que então viviam em tribos nos desertos do Oriente Médio, deveriam seguir estritamente tal lei ou seriam “punidos por Javé”. Isto fazia algum sentido na época, pois era um povo nômade, que não dispunha de cadeias para punir infratores, e nem podia se dar ao luxo de contar com homens “efeminados” que, para além de não poderem guerrear, não ajudariam na procriação, que era vital naqueles tempos.
Estar ainda ancorado nas leis do Levítico, mesmo no século XXI, é no mínimo uma enorme ignorância, até mesmo porque quem se vale dessa passagem para condenar a homossexualidade está sendo algo hipócrita, na medida em que provavelmente não segue as demais leis do mesmo livro da Bíblia, como por exemplo: “não cortar o cabelo muito curto, nem danificar as extremidades da barba” (Le 19:27); “sacrificar dois pombos a Deus 8 dias após cada menstruação” (Le 15:13-14); “jamais comer carne de porco” (Le 11:7) etc.

Pederastia
A origem desta palavra remonta a antiga Grécia, berço da democracia e de inúmeras ideias que até o nosso século ainda iluminam o Ocidente. Ela significa, literalmente, “amor por garotos”.
Na Antiguidade, a pederastia era uma relação entre um homem mais velho e um adolescente. Em Atenas este indivíduo mais velho era chamado de erastes, e sua função era a de educar, proteger, amar e agir como um exemplo para seu amado – chamado de eromenos, cuja recompensa para seu amante estaria em sua beleza, juventude e potencial.
Não está claro se tal relação passava muito além de uma iniciação sexual que durava não mais do que alguns anos, mas fato é que a sociedade grega não distinguia entre desejo e comportamento sexual com base no gênero de seus participantes, mas sim pela extensão com que tais desejos ou comportamentos se conformavam às normas sociais, que eram baseadas por sua vez no gênero, idade e status social.
Naquela época, o sexo entre homens era aceito, contanto que não deixassem de buscar constituir família nem de se alistarem para a defesa de suas cidades.

Bonobos
Os estudiosos perceberam apenas em 1928 que os bonobos formavam uma família diferente dentro da espécie dos chimpanzés, com um comportamento muito peculiar, em que o sexo está em primeiro lugar, funcionando como substituto da agressividade. O bonobo é um dos raros animais para quem não existe relação direta entre sexo e reprodução. Ou seja, como os humanos, eles fazem mais amor do que filhos. Ao contrário da maioria dos primatas, a sociedade dos bonobos é dominada pelas fêmeas e não pelos machos.
Este “matriarcado” só se torna efetivamente possível porque, ao contrário da maioria das fêmeas de outras espécies, que só são receptivas ao sexo no período fértil, as fêmeas bonobos são atrativas e ativas sexualmente durante quase todo o tempo. Além de intensa atividade sexual com seus parceiros, em que tomam a iniciativa, elas simulam relações com outras fêmeas – é justamente através do sexo que estabelecem as alianças entre si. Os machos também participam dessa espécie de homossexualidade light.
Este é apenas o mais evidente de muitos casos de relações homossexuais na natureza. Assim, se por acaso algum dito pastor, seguidor de algum estranho deus raivoso, lhe disser que ser gay é “antinatural”, você pode lhe responder assim: “Senhor Pastor, o senhor por acaso já ouvir falar dos bonobos?”.

A visão budista
Um dos alunos de Chagdud Tulku Rinpoche, o Precioso Senhor da Dança, um reconhecido mestre budista tibetano, conta que uma vez presenciou tal conversa do mestre com uma senhora que havia acompanhado uma de suas palestras:
Ela: “Mestre, o que é um homossexual?”; Ele: “Um homossexual é uma pessoa que faz sexo com o mesmo sexo.”; Ela: “Acho que o senhor não entendeu… Como o budismo vê o homossexualismo?”; Ele: “Nós não vemos o homossexualismo. No budismo, não temos o costume de ver as pessoas fazendo sexo.”; Ela: “Mestre, o que eu quero saber é a opinião do budismo sobre pessoas que fazem sexo com o mesmo sexo.”; Ele: “Alguém pode dar opinião sobre quem não conhece? Você está falando em “pessoas”. Que pessoas?”; Ela: “Qualquer uma! Qualquer uma!”; Ele: “Todas as pessoas são milagres.”; Ela: “Mas afinal o homossexualismo é certo ou errado?”; Ele: “Atos homossexuais consensuais são atos de amor.”
Tudo isso com a mesma expressão de quem vê um passarinho azul. Seguem-se aplausos e gargalhadas. Rinpoche sorri...
Há ainda este vídeo onde outro mestre, Dzongsar Khyentse Rinpoche, do Butão, fala mais prolongadamente sobre o tema. Em ambos os casos, vemos que os budistas estão mais preocupados com seu autoconhecimento e iluminação do que com a sexualidade alheia [1].

A Igreja, o Pecado e a Verdade
Se uma pessoa é gay, busca Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?”, afirmou o Papa Francisco em 2013, durante a entrevista concedida aos jornalistas que o acompanhavam no voo de volta à Itália depois da visita de uma semana ao Brasil, surpreendendo boa parte dos vaticanistas presentes.
É óbvio, no entanto, que não há nenhuma chance no horizonte próximo de que a Igreja Católica apoie o casamento homossexual. E nem há qualquer problema nisso... A luta pelos direitos dos gays é uma luta travada na esfera secular e laica, e não na esfera religiosa. O casamento gay nada tem a ver, nem poderia ter, com o casamento conforme os rituais da doutrina cristã.
Da mesma forma, além de certos ativistas da causa gay mais agressivos e ignorantes, nenhum gay ou simpatizante está querendo atacar ou denegrir a Igreja, e muito menos o Cristo, ao lutar por seus direitos, pela igualdade, a tolerância, o amor e, sobretudo, o fim da ignorância.
Afinal, foi ele mesmo, o doce rabi da Galileia, quem nos enxortou a amar a todos, a todos, sem exceção. E, se você ainda crê realmente que a homossexualidade é um tenebroso pecado, então eu lhe convido a conhecer a Verdade e se livrar das trevas da ignorância. Espero que o conteúdo deste artigo possa lhe ajudar em parte – afinal, foi também o rabi quem nos disse que a Verdade nos libertará...

***

[1] Vale lembrar, no entanto, que o casamento homossexual ainda não é permitido oficialmente nem no Tibete (China) nem no Butão.

Crédito das imagens: [topo] Monica M. Davey/EPA (Casa Branca com iluminação em homenagem a decisão histórica da Suprema Corte americana); [ao longo] Quartz (mapa com os países onde o casamento homossexual já se tornou legal); FCKH8.com (algumas das grandes companhias que apoiaram a decisão da Suprema Corte; para boicotá-las será necessário abandonar a era da internet e voltar a vida dos anos 1970/80).

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26.6.15

Hipátia e Sinésio, parte 2

« continuando da parte 1

A Herculiano,

[...] Nós vimos com nossos próprios olhos e ouvimos com nossos próprios ouvidos a Senhora [Hipátia] que presidia, com legitimidade, sobre os mistérios da filosofia. E se acaso aqueles que compartilham tal laço de união são chamados a se relacionar, daí uma lei divina nos incita, a nós que estamos unidos pela mente, a nossa melhor parte, a honrar as qualidades uns dos outros.

[...] Viver de acordo com a razão é o alvo de todos os homens. Busquemos, portanto, tal alvo em vida; supliquemos que Deus transforme nossos pensamentos em coisas divinas, e nos dediquemos, tanto quanto for possível, a colher a sabedoria de todos os lados.


Esta outra carta de Sinésio, da qual trago somente alguns trechos [1], foi endereçada a Herculiano em 395 d.C. Nesta época ambos eram alunos de Hipátia em Alexandria, porém Herculiano (de quem sabemos muito pouco além do nome e do fato de provavelmente se tratar de um membro de alguma família rica da região) foi obrigado a retornar a sua terra natal. Logo Sinésio seguiria o mesmo caminho, e após alguns anos inesquecíveis aprendendo com sua mestra, também retornaria para onde nasceu, Cirene.

Ele ainda teria viajado algumas vezes para visitar Hipátia nos anos seguintes, porém as visitas vinham se tornando cada vez mais raras e complicadas, primeiro porque Sinésio já havia e se casado e tido seu primeiro filho, e segundo porque sua capacidade intelectual o levou, ainda que provavelmente a contragosto, a atuar na esfera política.

Em 399 Sinésio chefiou uma comitiva até Constantinopla, para negociar uma redução de impostos para sua cidade junto ao imperador Arcádio. Foi obrigado a residir por cerca de 3 anos na cidade, mas finalmente retornou com sua missão cumprida. Talvez tenha conseguido visitar prolongadamente Alexandria durante os anos seguintes, mas logo foi obrigado a retornar a Cirene novamente, desta vez para uma tarefa ingrata: comandar a defesa de suas fronteiras contra invasores vindos do deserto.

Novamente foi vitorioso, tendo inclusive elaborado um novo modelo de catapulta para as defesas da cidade. Desta feita, seus concidadãos ficaram tão entusiasmados com seus serviços prestados que decidiram lhe conceder um presente que ele, na verdade, aceitou com muita relutância: o cargo de Bispo em Cirene.

Naquele século ainda não fazia muito tempo que o cristianismo tinha sido conclamado a “religião oficial” do Império Romano. Nesta aurora da igreja cristã, os cargos de liderança eclesiástica muitas vezes tinham mais a ver com os afazeres governamentais e políticos do que propriamente com a condução das práticas religiosas.

Noutra de suas cartas que sobreviveram aos séculos, Sinésio conversa com outro companheiro das aulas de Hipátia, Olímpio, sobre a necessidade de evitar a luta por cargos, honras e carreiras políticas que satisfaçam somente ambições superficiais, e não valores humanos autênticos. Nessa correspondência, Sinésio parece consciente de que não conseguirá mais se afastar das suas obrigações na vida pública, e fala acerca do prazer de ainda poder desfrutar de alguns períodos de tranquilidade nas paisagens rurais em torno de Cirene, inteiramente dedicados à reflexão: “Temos tempo para a filosofia, mas não para fazer o mal”.

Mas ah!, quem dera todos os bispos da igreja fossem homens como Sinésio, fosse assim não somente sua mestra poderia haver escapado de seu triste destino, como todo o mundo ocidental seria outro, melhor, mais justo e mais iluminado pelo sol... A história, infelizmente, não transcorreu dessa forma.

Os eventos que terminaram no brutal assassinato de Hipátia tiveram muito mais a ver com uma disputa política pelo poder em Alexandria do que propriamente com uma disputa religiosa, tanto mais com uma disputa entre o cristianismo e o helenismo. Não, a disputa mais incendiária, desde aquele tempo, já era entre cristãos e judeus...

Os dois atores principais que ansiavam estabelecer um poder hegemônico sobre o governo de Alexandria eram Orestes, o prefeito augustal e governador secular da cidade, e Cirilo, o Patriarca (espécie de arcebispo) alexandrino. Ora, muito embora um representasse diretamente a igreja cristã, e outro exercesse um cargo público, fato é que ambos eram batizados e professavam publicamente o cristianismo. Onde estava, portanto, a disputa entre cristãos, judeus e pagãos?

Ocorre que no início daquele século, Alexandria era uma das maiores cidades do mundo, e uma potência comercial onde residiam muitas comunidades de relativa riqueza. Dentre elas, a mais rica era certamente o grupo pagão, cuja ancestralidade helênica havia garantido nobres heranças. Logo após tínhamos a comunidade judaica e enfim a comunidade cristã, que exatamente por ser a mais pobre (em média), era também a mais numerosa.

Orestes, como governador astuto, tentava sustentar suas chances de ascensão à hegemonia praticando relações amistosas com todos os três grupos. Cirilo, por outro lado, sabia que a sua única chance de agaranhar o poder total sobre a cidade seria com a vitória do cristianismo sobre as demais crenças, assim eliminando de vez quaisquer chances que Orestes poderia ter de vencer aquele embate político. Vejam bem, “embate político”, pois naquele contexto a religião era usada como mera desculpa para manobrar o povo em direção a este ou aquele projeto de poder (como vemos, até hoje não mudou tanta coisa, não é mesmo?).

Pelos seus desentendimentos constantes com a comunidade judaica alexandrina, é presumível que Cirilo tivesse um ódio pessoal para com os judeus em geral. Após várias trocas de ameaças que evoluíram com os anos, os judeus organizaram um ataque que terminou por matar muitos monges armados (chamados parabolani, que eram uma espécie de “guarda armada do Patriarca”), assim como diversos cristãos desarmados, num incêndio criminoso numa igreja.

Cirilo respondeu duramente ao ataque, destruindo sinagogas, saqueando as casas dos judeus mais abastados, e enfim expulsando toda a comunidade judaica da cidade. Este foi um resultado catastrófico para as pretensões de Orestes, pois ao mesmo tempo perdera o apoio tanto de toda a comunidade judaica (que fora banida) como de muitos cristãos, que não perdoaram o ataque dos judeus e passaram a apoiar Cirilo.

Ao governador restava somente o apoio dos helênicos; e dentre eles, todos sabiam, a maior autoridade moral se centrava em Hipátia, que além de tudo era amiga pessoal de Orestes e muitas vezes lhe aconselhava diretamente... Ora, a luz de Hipátia era ofuscante demais para que Cirilo arriscasse um debate direto, era preciso se livrar da filósofa com uma artimanha mais suja e sorrateira, uma arma usada somente pelos homens mais mesquinhos e ignorantes, mas mesmo assim extremamente eficaz: a boataria.

Numa comunidade composta majoritariamente de iletrados e propensos as mais diversas crenças mágicas, não foi muito difícil “convencer” as pessoas de que aquela mulher pagã, de família nobre e antiga, que se atrevia não somente a ensinar aos homens assuntos “não religiosos”, como também a aconselhar diretamente o governador, decerto seria uma diabólica praticante de magia negra, uma bruxa que seduzia a todos que escutavam suas palavras!

Assim chegamos aos tenebrosos eventos do dia 8 de março de 415 d.C., que prefiro não descrever, então os deixo com as palavras de Sócrates Escolástico [2]:

Foi então que a inveja se irrompeu contra esta mulher. Sucedia que ela passava muito tempo com Orestes, o que deu procedência as calúnias que a condenavam entre o povo ligado à Igreja, como se ela fosse a culpada de Orestes haver se distanciado do Patriarca. Com efeito, alguns homens que lhe faziam iradamente a mesma acusação a seguiram quando voltava para casa. Então, a arrancaram de sua carruagem e a arrastaram para o interior da igreja chamada Cesarion. Rasgaram suas roupas e depois a mataram usando cacos de cerâmica [ostraka]. Quando terminaram seu esquartejamento, tendo dilacerado cada um de seus membros, levaram o corpo para um lugar chamado Cinaron e lá o queimaram.

***

Assim deixou este mundo a maior das filósofas, cuja vida foi ainda mais grandiosa por haver sido a vida de uma mulher em meio a um mundo de homens, um brutal mundo de homens...

Se nos serve de algum consolo, tal notícia nunca chegou aos ouvidos de Sinésio, que havia morrido pelo menos um ano antes, em meio à amargura de não receber mais nenhuma correspondência de sua mestra.

Não nos cabe dizer o motivo exato pelo qual Hipátia deixou de responder ao seu querido e fiel aluno. Na sua condição de bispo, o envolvimento de Sinésio na disputa em Alexandria provavelmente não teria a auxiliado em muita coisa, embora certamente colocasse o seu cargo e a sua própria vida em risco. A filósofa, em sua sabedoria, provavelmente estaria a par do fato, e preferiu deixar que Sinésio pensasse que ela o havia esquecido.

Mas se há uma coisa essencial nesta triste e grandiosa história, é que ela não pode e não deve, jamais, ser esquecida...

***

[1] Fonte original (em inglês): Livius.org. A tradução é de Rafael Arrais.

[2] Trecho de Historia ecclesiastica. Retirado do livro de Maria Dzielska.

Bibliografia
Hipátia de Alexandria, Maria Dzielska (Relógio D’Água); Wikipedia; Livius.org

Vídeo
Este artigo serviu de base para o roteiro do vídeo Hipátia de Alexandria, a grande mestra no canal Conhecimentos da Humanidade do YouTube.

Crédito da imagem: Ágora/Alexandria/Divulgação (apesar de se valer de diversas “licenças poéticas e românticas”, este filme estrelado por Rachel Weisz no papel de Hipátia é, no geral, bem intencionado, e certamente merece ser visto)

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24.6.15

Hipátia e Sinésio, parte 1

A Filósofa,

Eu lhe saúdo, e lhe peço que saúde seus fortunados amigos por mim, majestosa Mestra. Há tempos venho lhe reclamando por não ser digno de uma resposta, mas hoje sei que não sou vítima do seu desprezo por nenhum erro de minha parte, mas porque sou desafortunado em muitas coisas, em tantas quanto um homem pode ser.

Se apenas eu pudesse receber novamente suas cartas e saber como todos estão passando – tenho certeza que estão felizes e desfrutando de boa fortuna – eu ficaria aliviado, neste caso, da metade dos meus próprios problemas, ao me alegrar pela sua felicidade. Mas hoje o seu silêncio é mais uma adição as minhas tristezas.

Eu perdi meus filhos, meus amigos, e a boa vontade de todos. A maior de todas as perdas, no entanto, é a ausência do seu espírito divino. Eu tive esperança de que isto sempre permanecesse em mim: a capacidade de vencer tanto os caprichos da fortuna quanto as voltas sombrias do destino.


A carta acima [1] foi escrita por Sinésio de Cirene no ano 413 d.C. Provavelmente seria tratada como um relato de pouca importância histórica, fruto do fim de vida amargo de um filósofo do século V, não fosse pela sua célebre destinatária, a qual o escritor lamenta profundamente a ausência: a “filósofa” em questão era exaltada como um “espírito divino” não somente por Sinésio, como por praticamente todos os seus discípulos. Ela era Hipátia de Alexandria, a mulher mais sábia de seu século, cuja luz e a lenda ainda irradiam até a era moderna.

Eis como Sócrates Escolástico, um historiador de sua época, a descreveu em sua obra Historia ecclesiastica [2]:

Havia uma mulher em Alexandria chamada Hipátia, filha do filósofo Théon, que galgou tantas realizações na literatura e na ciência, que ultrapassou em muito os filósofos de seu tempo. Tendo sido versada nos ensinamentos de Platão e Plotino, ela explicava os princípios da filosofia para os seus ouvintes, muitos dos quais viajavam enormes distância para serem instruídos por ela. Por conta de seu autocontrole e serenidade, frutos do cultivo de sua mente, ela aparecia muitas vezes em público na presença dos magistrados da cidade, e não se sentia envergonhada em participar das assembleias dos homens. Pois todos os homens que tinham notícia de sua extraordinária dignidade e virtude eram seus admiradores.

Apesar de haver sido uma das mentes mais brilhantes de seu tempo, Hipátia é mais conhecida pela maneira brutal com que foi assassinada; assim como pela forma com que as lendas em torno do ocorrido alimentaram a curiosidade tanto de pagãos quanto de cristãos, tanto de adeptos da ciência e da racionalidade quanto de homens e mulheres de fé. Antes de sabermos como ela morreu, no entanto, talvez seja mais proveitoso saber como viveu...

Residiu a vida toda em Alexandria, tendo sido descendente de uma família de relativa nobreza e destaque na sociedade da época. Seu pai, Théon, era um cientista muito conhecido, membro do Museu (ou Templo das Musas, onde também residia a célebre Biblioteca da Alexandria [3]), escritor e filósofo com especial interesse no hermetismo. Apesar do que dizem as lendas, era o pai de Hipátia o amante do paganismo (ao menos publicamente), e não ela, que ficou conhecida em seu tempo bem mais pela sua vasta erudição em ciências matemáticas e astronômicas, assim como em filosofia, do que por algum conhecimento particular dos rituais pagãos.

A sua vida privada, no entanto, era bem mais envolta em mistérios... Apesar de não nos restar nenhuma obra escrita de Hipátia que não seja relacionada à ciência [4], felizmente algumas cartas de Sinésio sobreviveram aos séculos, e nos confirmam em parte o que muitos estudiosos da sua vida intuíram.

Hipátia formou um círculo intelectual composto por discípulos que eram como que “alunos particulares”, alguns deles por muitos anos, outros ainda (como o próprio Sinésio) que a trataram como mestra até o fim da vida. Tais alunos vinham da própria Alexandria, de outras regiões do Egito, da Síria, de Cirene e Constantinopla. Pertenciam a famílias ricas e influentes; com o tempo, vieram a ocupar posições de comando na hierarquia do Estado ou na ordem eclesiástica do cristianismo nascente.

Em torno de sua mestra, esses discípulos formavam uma comunidade cujos fundamentos eram o sistema de pensamento platônico e os laços profundos de amizade. Aos conhecimentos transmitidos pelo “espírito divino” de Hipátia, davam o nome de “mistérios”. Tais conhecimentos, estes sim, eram mantidos inteiramente secretos, e jamais transmitidos a qualquer um que não fosse iniciado nos assuntos divinos e cósmicos.

Ainda que pouco saibamos atualmente sobre o que Hipátia e o seu círculo de discípulos estudavam em segredo, é certo que, entre os seus textos sagrados, contavam-se os Oráculos Caldaicos. Esses textos do hermetismo eram caros tanto ao pai de Hipátia, que os lecionou a própria filha em casa, quanto a Sinésio, que em suas obras demonstra estar plenamente familiarizado com a sua temática.

Seja como for, fato é que se Hipátia foi uma pagã no âmbito privado, jamais demonstrou, na esfera pública, nenhum interesse particular por frequentar templos dos deuses gregos ou participar de seus rituais. Ao que tudo indica, Hipátia foi muito mais uma mística do que uma adepta do ritualismo religioso.

Suas lições públicas incluíam, além da filosofia platônica, preciosas instruções da matemática e astronomia. As suas conferências tinham lugar tanto em sua própria casa, quando aberta ao público, como nas salas de leitura alexandrinas. Em ambos os casos, não era incomum ser acompanhada por multidões de admiradores e curiosos.

Ocasionalmente também era chamada a intervir nos assuntos da polis, atuando como conselheira dos assuntos municipais. A filha de Théon detinha uma grande autoridade moral, e todos os historiadores da época concordam em descrevê-la como um modelo de coragem ética, retidão, sinceridade, dedicação cívica e elevação intelectual.

Apesar de provavelmente ter sido belíssima em sua juventude, também sempre foi uma reconhecida adepta da sophrosyne, uma espécie de “estado de espírito” que, de acordo com o conceito grego antigo, incluía o bom senso e a moderação, a sanidade moral, o autocontrole e o autoconhecimento. Isso também se refletiu em sua vida sexual: Hipátia se conservou virgem por toda a vida, e não há sequer um relato consistente de quaisquer casos amorosos que tenha tido, seja com homens ou com mulheres. Aos que a questionavam sobre “quando afinal iria se casar”, ela respondia que “já era casada com a Verdade” [5].

E há quem tenha dito que o brutal assassinato de Hipátia tenha marcado o fim do helenismo e o início da hegemonia cristã. Tais lendas quase sempre mostram uma Hipátia jovem e bela sendo morta por uma multidão de fanáticos... Como ocorre muitas vezes em lendas históricas, o relato em si passa consideravelmente distante da verdade: Hipátia não poderia haver sido uma mestra tão jovem, a lecionar para homens bem mais velhos, e discursar para multidões.

Já sobre a questão entre o helenismo e o cristianismo, como já dissemos, Hipátia tampouco tinha qualquer predileção por um ou por outro – a ela interessava somente a Verdade. Tanto que um dos seus discípulos mais fiéis, e também um dos homens que mais a amou, um dia tornou-se bispo, e o seu nome era Sinésio de Cirene, o Bispo Filósofo.

» Na próxima parte, a triste e trágica morte da mulher mais sábia de Alexandria...

***

[1] Fonte original (em inglês): Livius.org. A tradução é de Rafael Arrais.

[2] Fonte original (em inglês): Wikipedia. A tradução é de Rafael Arrais.

[3] Na Grécia antiga o museu era um templo das musas, divindades que presidiam a poesia, a música, a oratória, a história, a tragédia, a comédia, a dança e a astronomia. Esses templos, bem como os de outras divindades, recebiam muitas oferendas em objetos preciosos ou exóticos, que podiam ser exibidos ao público mediante o pagamento de uma pequena taxa. Dos museus da Antiguidade, o mais famoso foi o criado em Alexandria por Ptolomeu Sóter em torno do século III a.C., que continha estátuas de filósofos, objetos astronômicos e um jardim botânico, embora a instituição fosse primariamente uma academia de filosofia, e mais tarde incorporasse uma enorme coleção de obras escritas, dando origem a célebre Biblioteca de Alexandria.

[4] E mesmo essas são, em teoria, somente edições de célebres matemáticos e astrônomos da época. Devido à dificuldade em se atribuir autoria feminina a quaisquer obras da época, fica impossível confirmar o quanto dessas “edições” não se tratavam, na realidade, de “adições”.

[5] Segundo a enciclopédia bizantina Suda, ela foi esposa de “Isidoro, o Filósofo” (aparentemente Isidoro de Alexandria); porém, Isidoro só nasceu muito depois da morte de Hipátia, e não se conhece nenhum outro filósofo com este nome que seja seu contemporâneo. A Suda também afirmou que “ela permaneceu virgem” e que rejeitou o candidato mostrando lençóis manchados de sangue afirmando que eles demonstravam que não havia “nada de belo” no desejo carnal – um exemplo de fonte cristã fazendo uso de Hipátia como símbolo de virtude.

Bibliografia
Hipátia de Alexandria, Maria Dzielska (Relógio D’Água); Wikipedia; Livius.org

Vídeo
Este artigo serviu de base para o roteiro do vídeo Hipátia de Alexandria, a grande mestra no canal Conhecimentos da Humanidade do YouTube.

Crédito da imagem: Wikipedia (pintura de Charles William Mitchell [1885], provavelmente baseada nas lendas que chegavam a ver Hipátia como espécie de “heroína erótica da razão”).

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22.6.15

Olhos Azuis

Foi numa escola da pacata cidade de Riceville, no interior do estado de Iowa, nos Estados Unidos, que um dos experimentos sociológicos mais impactantes e esclarecedores do século passado foi primeiramente implementado em crianças, e nem mesmo Jane Elliott poderia prever a forma como ele moldaria as vidas de todos naquela classe infantil.

Era 5 de abril de 1968, e o célebre ativista dos direitos humanos, Martin Luther King Jr., acabara de ser assassinado no dia anterior. Jane pensou em como poderia ensinar sobre os efeitos devastadores do racismo na sociedade americana da época, e elaborou um experimento que duraria todo o dia de aula, onde as crianças (todas elas brancas, como Jane) seriam obrigadas a sentir na pele, ainda que de forma branda e temporária, o que significava exatamente ser um negro na sociedade da época.

Jane decidiu que as crianças de olhos castanhos seriam "inferiores", e deveriam usar uma espécie de colar pelo resto do dia de aula. Então, a professora passou o resto do dia incentivando os alunos de olhos azuis ou verdes, e descriminando os que usavam os colares... Ela mesma não sabia o que poderia ocorrer, mas aquele dia se tornou ao mesmo tempo traumático e inesquecível para boa parte dos seus alunos.

Desde então Jane teve de conviver com a raiva da maioria dos moradores da cidade, seus filhos foram importunados por boa parte da vida escolar, o restaurante dos seus pais fechou as portas por falta de clientes etc. Mas Jane não se arrependeu, não desistiu, pois ela compreendeu que havia tocado fundo na ferida, e que precisava seguir em frente se quisesse realmente fazer alguma diferença na conscientização das pessoas para este problema que, tantas vezes, é ignorado ou tratado como "algo de menor importância", ao menos pelo grupo dominante.

No documentário Blue Eyed (Olhos Azuis), que podemos assistir abaixo na íntegra, vemos como décadas depois o experimento de Jane ainda continua atual e impactante, mesmo quando aplicado a "adultos brancos de olhos azuis", em plena Nova York... Na cerca de uma hora e meia de filme, vemos como muitos adultos da classe dominante jamais tiveram alguma ideia de como é passar uma tarde sendo tratado como "inferior". Acredito que toda a experiência por que passaram foi muito importante para que passassem a enxergar o racismo pelo que ele realmente é, em essência: uma grandiosa e persistente ignorância.

Mas a grande questão é, "Terá mudado alguma coisa de 1968 para cá?". Sim, mudou, e para melhor, como deve ser... No entanto, como infelizmente costuma ocorrer, se trata de uma mudança lenta, lenta demais. Poderíamos erguer um céu de irmandade e tolerância neste mundo, mas para tal ainda falta nos livrarmos das travas da ignorância, uma reflexão de cada vez. Para você, também pode começar hoje:

Ao final da Segunda Guerra, quando eles limpavam os campos de concentração na Alemanha, um ministro luterano disse: "Quando se voltaram contra os judeus, eu não era judeu e não fiz nada. Quando se voltaram contra os homossexuais, eu não era homossexual e não fiz nada. Voltaram-se conta os ciganos e também não fiz nada. Quando se voltaram contra mim, não havia mais ninguém para me defender." Pensem sobre isso... (Jane Elliott)

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Crédito da foto: Google Image Search/Divulgação (Jane Elliott)

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19.6.15

Retratos de Fé

Normalmente não damos muita atenção as produções dos canais de TV públicos, mas sua qualidade vem gradualmente melhorando... Prova disso é a série Retratos de Fé, da TV Brasil.

Esta série consiste de episódios de pouco mais de 20 minutos onde há um espaço aberto para que os mais variados grupos religiosos possam transmitir a sua mensagem de fé e expressar o que há de sagrado em sua doutrina de forma direta, sem nenhum tipo de mediação ou interferência ideológica. A cada semana, um episódio aborda um determinado credo, cujos seguidores entrevistados podem se expressar livremente na tela, apresentando suas concepções, crenças, cerimônias, vivências e manifestações religiosas, num verdadeiro aprofundamento religioso. Vejamos um trailer da série:

O que achei mais interessante nesta série é que ela é realmente ecumênica, abrindo espaço tanto para vertentes cristãs evangélicas as mais diversas (como a Bola de Neve e a Igreja Quadrangular) até as crenças mais antigas e ancestrais (como as tradições indígenas e os cultos de origem africana). Para terem uma ideia, há até mesmo um episódio sobre Wicca, e outro exclusivo para Ateus e Agnósticos, numa abordagem realmente livre de preconceitos... Para assistir todos os episódios da série online e gratuitamente, basta acessar o site da série e escolher o que deseja ver.

Para episódios inéditos, basta sintonizar na TV Brasil toda a quinta-feira às 20h (horário de Brasília), com reprises aos sábados, às 10h.

***

Crédito da imagem: Retratos de Fé/TV Brasil/Divulgação (filmagens do primeiro episódio, sobre o Islamismo no Brasil)

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15.6.15

Entre a esquerda e a direita: os comentários (parte 4)

Parte da série “Entre a esquerda e a direita”, onde Alfredo Carvalho e Igor Teo responderam minhas perguntas, e agora estou comentando os assuntos abordados. Para conhecer mais sobre a proposta da série e seus participantes, não deixe de ler nossa apresentação.

Uma questão de escala
É interessante como muitas vezes o significado de uma palavra, sua etimologia original, se perde ou se altera com o passar dos séculos e das sociedades. Talvez o exemplo mais claro disso seja o que ocorreu com o termo “candidato”.

Na Roma antiga, um candidato a um cargo público precisava se dispor a passar por uma espécie de ritual, onde ele atravessava uma praça pública vestindo tão somente um manto branco. Era um ato simbólico, é claro, mas sua simbologia era muito instrutiva: a brancura do manto (candidus) simbolizava a pureza de sua moral e de seu caráter, o que era essencial para administrar os assuntos públicos. Era tão óbvio há milênios quanto hoje: nenhum cidadão vai querer eleger um mau caráter, um corrupto, para gerir uma cidade-estado ou um país, até mesmo porque isso significa, basicamente, gerir o dinheiro dos impostos pago por todos, ou quase todos.

Ora, é evidente que, tanto na Roma antiga quanto nas democracias atuais, qualquer candidato vai buscar ocultar os seus “pontos fracos”, e enaltecer suas habilidades de bom governante. Isto está bom, é assim que fazemos quando queremos convencer aos outros das nossas qualidades, até mesmo numa entrevista de emprego...

O grande problema surge quando, ao invés de contar somente com a sua lábia, inteligência e oratória, ao invés de se apresentar somente com um manto branco em praça pública, o tal candidato passa a dispor de um conglomerado de agências de marketing e propaganda política, chefiadas por marqueteiros profissionais, verdadeiros magos do convencimento alheio, ao custo de muitos, muitos milhões de reais.

É dessa forma que, se após eleito o candidato talvez possa, quem sabe, atuar de forma livre (contanto que retribua as “doações” das empresas a sua campanha, é claro), é cada vez mais claro e evidente que, nos programas da TV, e até mesmo nos debates ao vivo, não é o próprio candidato quem fala, mas a sua “equipe de marketing” quem fala por ele. E assim chegamos a candidatos que são verdadeiras caricaturas de si mesmos, e que, uma vez chegando ao poder, assumem finalmente as suas personalidades reais (ou quase sempre, dependendo das estatísticas de aprovação nas pesquisas pós-eleições).

Assim sustentamos um sistema perverso de corrupção da democracia, um sistema que se retroalimenta, e se torna cada vez mais perigoso: um candidato precisa gastar milhões em sua campanha para convencer o eleitorado de que ele é o melhor (pois não há, de fato, outra opção para se vencer eleições majoritárias no Brasil e em muitos outros países); para conseguir tantos milhões, o candidato ou o seu partido político precisam convencer muitas grandes empresas de que eles têm uma boa chance de vencer (pois as grandes empresas jamais “doam” aos que não têm chance alguma, ou você pensou que se tratava de alguma ideologia?); para justificarem o gasto milionário em “doações eleitorais”, as grandes empresas precisam analisar cuidadosamente quais contratos superfaturados podem conseguir “lá na frente”, assim justificando seus investim... ops, suas “doações”, desculpem...

Finalmente, após as eleições as grandes empresas vão de vento em popa nos negócios, já que “a sorte lhes sorriu” e os candidatos em que “apostaram” acabaram vencendo. Logo, nas próximas eleições, as “doações” podem ser ainda mais substanciais, o que torna o custo das eleições em geral cada vez maior, e a chance de vencer um candidato realmente “puro”, como teoricamente eram os romanos antigos, vai se aproximando muito rapidamente de zero.

Portanto, a única forma de encerrar esse ciclo vicioso do Grande Negócio Eleitoral é reduzir drasticamente a escala do negócio como um todo: as eleições devem ser muito, muito mais baratas; e muito, muito mais amadoras!


Uma questão de lógica
Jan Larsson é um dos marqueteiros mais experientes do cenário político sueco; ocorre que isso jamais fez dele um administrador de campanhas suntuosas, cheias de propagandas pirotécnicas e curtas metragens exuberantes onde basicamente mais se atacam aos adversários do que se propõem políticas para melhorar o país. Ele tem bons conselhos para nós:

“Exatamente pelo fato de as campanhas publicitárias serem uma ferramenta tão cara e tão poderosa, é preciso ser cuidadoso e não exagerar na sua utilização.”

Até 2013, campanhas publicitárias de partidos políticos na TV eram proibidas na Suécia. Em 2014, pela primeira vez, fizeram uma experiência: no canal 4 da TV comercial, o eleitorado assiste a breves comerciais políticos de cerca de 40 segundos de duração, veiculados entre anúncios de margarina e barras de chocolate... Os comerciais são curtinhos mesmo, até mesmo porque os partidos não teriam recursos para filmar anúncios mais longos.

Na Suécia, o financiamento privado não passa de cerca de 30% do custo das campanhas, praticamente o oposto do que ocorre por aqui. Será que isso pode ser perigoso para nós? Vejamos o que diz Larsson:

“Seria um absurdo da minha parte expressar opiniões pessoais sobre a democracia brasileira, mas naturalmente é preciso tomar muito cuidado ao permitir que o dinheiro controle a informação. Especialmente quando não se tem um sistema rígido para controlar quem financia os partidos políticos. Se a distribuição de recursos para os partidos é justa, então todos têm as mesmas oportunidades. Mas quando você permite que grandes empresas e organizações controlem o financiamento dos partidos, põe-se em risco uma coisa extremamente fundamental, que se chama democracia.”

E é assim que, enquanto na “Suécia tropical” temos eleições cada vez mais caras e suntuosas, onde até mesmo grandes humoristas trazem seu show para as propagandas políticas, na Suécia real, tanto o oposto, os comerciais são curtos e semiamadores, e todo o embate político se dá nos debates televisivos (onde se evita a todo custo os ataques pessoais, pois os eleitores não suportam isso) e no “corpo a corpo” dos militantes, que muitas vezes chegam até a emprestar seus megafones aos militantes adversários, já que todos eles estão nas ruas antes para fazer prevalecer a democracia do que somente para vencer uma eleição.

Então me digam, honestamente, onde os mantos brancos sairiam de suas vitórias eleitorais mais sujos e maltrapilhos, num país recém-saído da miséria, onde as eleições são caríssimas, ou num país rico onde as eleições são baratas? Para mim, pelo menos, parece ser uma pura e simples questão de lógica.

» Em breve, “Gérard, por que não vem pegar uma praia?”

***

» Ver os posts mais recentes desta série

Crédito da imagem: Wikipedia (vestuário usado na Roma antiga)

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12.6.15

O eco de uma era distante

Ao contrário de muitos músicos e bandas que trago aqui para o blog, Pink Floyd dispensa apresentações. O que eu quero aqui, no entanto, é lhes fazer refletir sobre a magia da música, principalmente da música que se eleva, e recai, e se eleva, e nessa progressão infindável, imita a vida e as eras humanas. Nessa obra-prima da história desta arte, Echoes, a banda britânica nos leva a uma viagem inefável que parece nos tocar profundamente a alma... O fato de terem escolhido tocá-la nas ruínas de Pompéia somente enaltece a essência de tais ecos, ecos do passado distante, ecos da angústia perante o futuro, ecos do momento divino em que dois olhares se entrecruzam, e subitamente percebem que nunca deixaram de coexistir na eternidade.

Ouçam aos acordes do tempo, ouçam com atenção...

***

Lá no alto, os albatrozes flutuam imóveis pelo ar
E abaixo das ondas, nos labirintos das cavernas de corais
O eco de uma era distante vem florescendo pela areia
E tudo é verde e submarino

E ninguém nos conduziu a terra
E ninguém sabe dos "comos" e "porquês"
Mas algo se espanta e experimenta
E inicia a subida em direção à luz

(...)

Estranhos passando pela rua
Por acaso dois olhares separados se encontram
E eu sou você e o que eu vejo sou eu
E eu pego em sua mão
E a conduzo através da terra
E me ajudo a compreendê-la da melhor forma
E ninguém nos incita a prosseguir
E ninguém nos obriga a fechar os olhos
E ninguém diz nada
E nada experiencia...
E ninguém voa em torno do sol

(...)

Todos os dias você cai sobre meus olhos despertos
Me convidando e incitando a subir
E através da janela eles entram, fluindo por asas de luz...
Um milhão de embaixadores da manhã
E ninguém mais me canta canções de ninar
E ninguém mais vem fechar meus olhos
E então eu escancaro as janelas abertas
E clamo por você através do céu...


(tradução da letra original em inglês, por Rafael Arrais)

***

» Veja David Gilmour e Richard Wright tocando Echoes décadas depois, em Gdańsk, Polônia.

Crédito da imagem: Pink Floyd Live at Pompeii/Divulgação

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5.6.15

Mergulhando em corações, parte 2

Conto pessoal, da série “Festa estranha”, com depoimentos de Rafael Arrais acerca de suas experiências espiritualistas. Baseado (ou não) em fatos reais. Os nomes usados são fictícios (exceto para pessoas públicas).


« continuando da parte 1

A festa prosseguiu com apresentações de danças tradicionais indianas e curiosos desfiles de moda [1], e Atmaji se parecia com qualquer um de nós, aplaudindo junto com todos, sorrindo junto com todos... Para mim, isto indicava muito mais a sua sabedoria interior do que o contrário. Até aquele momento eu ainda não havia chegado a uma conclusão se ele era mesmo um mestre ou não. Foi somente quando a música começou que eu me decidi...

Atmaji não era somente um sábio conhecedor profundo de diversos tipos de yoga em sua terra natal, ele era um dançarino nato! E ele não dançou de sua cadeira, evidentemente, ele veio para o meio do palco, para o meio da tenda e, com pés descalços sob os tapetes, como boa parte dos presentes, dançou com todos nós... Foi ali que eu me decidi – afinal, eu só poderia acreditar num mestre que saiba dançar ao lado de todos.

Ao som de diversas melodias distintas, dançamos os cânticos de devoção a Krishna e Rama [2], que aposto que muitos de vocês já ouviram algum dia: Hare, Hare Krishna, Krishna Krishna, Hare Hare ô ô... Hare, Hare Rama, Rama Rama, Hare Hare ô ô...

Todos dançavam com total liberdade. Não existia coreografia, nenhuma espécie de passo decorado, nem muito menos danças de casal, embora muitas vezes as pessoas se dessem as mãos ou atravessassem um ou ambos os braços através dos ombros das outras... Dizem que eu mesmo acabei sambando nalgum momento, mas isso não posso confirmar :)

Havia um garoto mais jovem, no final da adolescência, que estava tão empolgado que, num movimento brusco enquanto dançava junto a Atmaji, acabou acertando seu queixo com uma cabeçada involuntária. Eu observei a cena de perto e me impressionei com a forma como ele reagiu, ou melhor, como não reagiu. Apenas sorriu, foi como se nada tivesse ocorrido. De fato, nada havia ocorrido, nada além daquela bela dança de almas numa noite enluarada do centro do Brasil.

Mas toda dança tem seu fim, e ao final daquela dança abriu-se espaço para algo ainda mais belo – os presentes na festa fizeram perguntas ao mestre, e ele respondia, com breves intervalos para um ou outro sorriso [3].

Uma mulher estava triste porque, apesar de ter passado a semana com Atmaji e praticado diversas meditações e rituais de purificação, acabou reagindo mal a uma provocação em casa, e discutiu rispidamente com alguém próximo. Ela se sentia culpada de haver “falhado”, e chegou a chorar enquanto relatava o ocorrido... Após Abhishek haver traduzido a pergunta para o inglês, eis o que seu mestre respondeu:

Você não é o pecado, você é o observador do pecado. Isto já passou, e você não pode fazer nada em relação ao que já foi. Concentre-se no que pode fazer daqui para frente. Ninguém se iluminou da noite para o dia.

Um homem pergunta sobre o que é a iniciação pela qual Abhishek passou, e que todos teriam a oportunidade de passar, se fosse o seu desejo, no dia seguinte. Ele estava especialmente preocupado com a perspectiva de, quem sabe, ter de abandonar a sua religião atual. E o mestre lhe disse:

A iniciação é como a morte para o seu eu mundano, para que o seu novo eu divino possa florescer em todo o seu esplendor. Isso não tem a ver com igrejas, mas com a sua relação com a sua essência divina. Você poderá continuar na sua religião atual, no problem.

Uma mulher quis saber se é possível estar “sempre feliz”, como Atmaji aparentava. E quando passamos por grande tristeza, como fazer para continuar no caminho espiritual? O mestre ficou sério e respondeu:

Eu tento levar a vida com bom humor, esta leveza em relação às coisas é essencial. Mas isso não significa que, se um parente meu morre, eu não deva ficar triste, eu não deva chorar. Nós devemos viver o momento, completamente! Se o momento é de tristeza, viva esta tristeza. Se o momento é de alegria, viva esta alegria. Mas não ignore jamais o que ocorre com você. É preciso, a cada momento, estar muito atento ao que se passa em nosso interior.

Outra mulher relata que esteve presente em todos os eventos com Atmaji ao longo da semana que antecedeu a festa, mas que continuava em dúvida se deveria ou não participar da iniciação do dia seguinte. Ela relatou com convicção que Atmaji apareceu em alguns dos seus sonhos recentes, incluindo o da noite anterior, e acabou lhe convencendo a fazer a iniciação. O mestre, após rir de quase gargalhar, disse assim:

Eu senti que você estava pronta, então fui até o seu sonho para lhe dar a minha opinião sobre o assunto...

Estranho, não? Mas não havia sido a única... A Vânia, minha amiga do Mayhem, a quem conheço há alguns anos e de quem não tenho nenhuma razão para duvidar, já havia nos dito que Atmaji tinha aparecido num de seus sonhos, e que foi por conta disso, principalmente, que havia decidido vir naquela festa. O detalhe é que foi a Vânia quem nos chamou e estimulou a ir (além de mim e do Marcelo, ainda veio outro integrante do Mayhem, o namorado da Vânia), portanto não fosse por essa estranha prática de visitação dos sonhos alheios, quem sabe nenhum de nós teria conhecido o mestre indiano.

Já pelo final da festa quase todos fizeram uma fila enorme para serem abençoados por Atmaji. Eu preferi ficar fora da fila de início, e observar a reação das pessoas após haver meditado um tantinho ao seu lado, o que sempre terminava com um efusivo e prolongado abraço.

Foi assim que percebi que muitos tinham reações espontâneas ao seu lado. Uns riam, como ocorria comigo; uns choravam; e ainda outros (como era o caso de MarciAisha) riam e choravam ao mesmo tempo!

Quando finalmente chegou a minha vez, e ele novamente levou as minhas mãos de encontro as suas, percebi que a energia que sentia não tinha relação propriamente com a pessoa de Atmaji, mas com o espelho que ela havia se tornado. Ele apenas refletia a luz que vinha de algum canto do cosmos, e a luz foi criada para ser refletida.

De olhos fechados, eu tentei me conectar com essa luz, para que ela jorrasse ainda mais, em cântaros, sobre nós, sobre os que estavam naquela festa tão familiar, sobre a vizinhança, o país, o mundo inteiro... Nossas mãos de moviam juntas e em posição de reza, para o alto de nossas cabeças. Não me senti impelido a tal, de fato era como se alguém alheio a nós dois estivesse no comando daqueles movimentos todos... Uma coisa divina, pois de fato somos todos da raça dos deuses.

Então o movimento terminou no peito do mestre, e subitamente eu senti, ainda que por um momento tão breve quanto eterno: era como se eu estivesse mergulhando num coração gigante, como se o mundo inteiro se conectasse por aquele eixo de vermelhidão. Foi então que, numa mesma noite, numa mesma festa divina, eu não somente conheci um mestre, como mergulhei no Coração do Mundo.

Ao final, era desse poema de Rumi que eu me lembrava, inscrito em fogo em minha alma...

Sofreste em excesso
por tua ignorância,
carregaste teus trapos
para um lado e para outro,
agora fica aqui.

Na verdade, somos uma só alma, tu e eu.
Nos mostramos e nos escondemos tu em mim, eu em ti.
Eis aqui o sentido profundo de minha relação contigo,
porque não existe, entre tu e eu, nem eu, nem tu.


Para Vanessa, Marcos, Vinícius, MariAisha, Anny, Edilene, Nilton e Åsa... Foi inesquecível!

***

[1] A Om Namastê, o espaço onde se realizou a festa, além de ter aulas de meditação e yoga, é também uma loja de roupas indianas. Para quem morar em Campo Grande/MS e se interessar, vale a visita.

[2] Krishna é a personificação humana (avatar) do Espírito eterno ou Ser Supremo, representado pelos três grandes deuses hindus: Brâma, Vishnu e Shiva; pela ordem, o criador do universo, o mantenedor, e o destruidor e renovador. Já Rama é um dos avatares do deus Vishnu. Ambos são personagens importantíssimos nos Vedas.

[3] Na realidade houve esta festa num sábado à noite, e uma iniciação na tarde do domingo seguinte, no mesmo local, e que eu não descreverei neste conto. Não tenho certeza de quais perguntas foram feitas num dia ou noutro, pois estive presente em ambos, e em ambos Atmaji abriu espaço para as perguntas das pessoas. As respostas do mestre no texto são em realidade aproximações do que eu me lembro de ter ouvido, conjuntamente com alguns vídeos que tenho visto onde ele expõe o seu pensamento.

» Saiba mais sobre Atmaji em seu site (em inglês): upanisha.org

Crédito das fotos: Om Namastê (o espaço onde foi realizada a festa; obs.: o sujeito dançando é Atmaji)

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4.6.15

Mergulhando em corações, parte 1

Conto pessoal, da série “Festa estranha”, com depoimentos de Rafael Arrais acerca de suas experiências espiritualistas. Baseado (ou não) em fatos reais. Os nomes usados são fictícios (exceto para pessoas públicas).


Há anos atrás Marcos estava meio desiludido com toda a sua busca espiritual. Havia nascido no Brasil, mas morado no Japão, nos EUA e noutros cantos deste planetinha, até que resolveu “se aposentar do trabalho formal” e viajar para a Índia, em busca da fonte original de tantos textos sagrados que havia lido ao longo da juventude.

Marcos estava num restaurante indiano, não propriamente “afogando as mágoas”, pois dificilmente se acha bebida alcóolica por lá [1], mas antes, quem sabe, finalmente encarando a própria tristeza. Faltava ainda algo em sua busca, algo essencial...

Dizem que quando o discípulo está pronto, o mestre aparece, e foi exatamente neste restaurante que Marcos encontrou Atmaji conversando com amigos, admiradores e discípulos. Marcos entrou na roda, e nunca mais saiu... Virou um dos discípulos de Atmaji, e ainda hoje vive entre o Oriente e o Brasil. É através de seu mestre que prossegue firme em seu caminho de autoconhecimento e autorrealização, seja acordado ou sonhando.

A diferença é que não existe mais Marcos. Desde que foi iniciado no ashram [2] de Atmaji, aquele que era Marcos vem, passo a passo, se transformando em Abhishek Ji. Não se trata só da mudança do nome mundano para o nome divino – lentamente, ele mesmo também morre para o seu eu anterior, e renasce como alguém destinado a iluminação.

Atmaji é, quem sabe, décadas mais velho que Abhishek, mas já alcançou a iluminação há muitos anos. Fora farmacêutico e praticante de diversos tipos de yoga, mas após haver alcançado a iluminação, fez como outros mestres, e resolveu dedicar o restante dos seus dias neste planetinha para tentar auxiliar os demais a se iluminarem junto com ele...

Foi assim que ele concordou em acompanhar Abhishek numa viagem pelo Brasil e, eventualmente, até a sua cidade natal, Campo Grande/MS, que curiosamente é a mesma cidade em que eu vivo hoje. Afinal, não estaria lhes contando toda essa história se não houvesse eu mesmo os encontrado por essas bandas de cá.

***

Para nós que seguimos na trilha espiritual através do estudo de diversas religiões, doutrinas, filosofias e mitologias diferentes, quase que como “turistas de egrégoras”, a melhor coisa é poder contar com amigos na caminhada. No caso, foi através de amigos tanto do Mayhem [3] quanto de um grupo que se reúne para entoar mantras hindus e sufis que eu fiquei sabendo da tal Festa Indiana do sábado a noite, que por acaso era organizada por Abhishek e pelos donos do espaço de meditação e yoga onde ela seria realizada.

A primeira coisa que notei ao chegar com a Vânia, uma amiga do Mayhem, foi a bela decoração do lugar. A festa seria num espaço aberto, onde montaram uma tenda (também aberta) com um longo tapete, cheio de almofadas decoradas, sofás e bancos longos de madeira, tudo no estilo indiano. As pessoas podiam ficar sentadas no tapete, nas almofadas ou nos bancos, e apreciar a miríade de pequenas velas, vasos de plantas e estatuetas de deuses hindus. Atrás das cadeiras onde sentariam Atmaji e seu discípulo brasileiro, podíamos admirar um belo pôster de Krishna e Radha, sua amante.

Lá me acomodei no espaço de um dos longos bancos, próximo a Marcelo, outro amigo do Mayhem, e ao grupo dos mantras. O interessante é que havia encontrado MarciAisha (que era quem organizava a entoação de mantras semanal num studio de dança árabe) exatamente através de minhas traduções de Rumi, o poeta sufi persa. MarciAisha me procurou nas redes sociais querendo saber mais sobre Rumi, e assim ficamos amigos... Pois bem, e eu estava lá naquela festa principalmente por conta de outra tradução que venho tocando neste ano, a do Bhagavad Gita [4].

Ou seja, a minha ideia era mais me “ambientar” neste universo do hinduísmo, e ter uma experiência direta com seus cantos, sua dança, e seus seguidores. Para falar a verdade, não imaginava que o tal “guru iluminado” fosse acrescentar muito a minha noite naquela festa, mas logo veria que estava muito enganado...

Assim que Atmaji e Abhishek chegaram, boa parte das cerca de 60 pessoas da festa foi ao seu encontro para abraçarem e tirarem fotos com o mestre indiano. Após algum tempo, foi nossa vez de nos aproximar... Foi MarciAisha (que já o conhecia) quem me apresentou a Abhishek, e após conversarmos rapidamente sobre viagens de trens na Índia e traduções do Gita em inglês, chegou a minha vez de ser apresentado ao mestre.

Ora, eu definitivamente não chamo muita gente de mestre. Que eu me lembre, nesta vida encontrei pessoalmente somente dois: o Professor Hermógenes, com quem dialoguei algumas vezes no Rio de Janeiro (onde nasci), e Marcio Lupion, de quem vi somente uma palestra uma vez (e foi o suficiente)... Mas quando me aproximei de Atmaji e olhei seus olhos por detrás das lentes de seus óculos, fui repentinamente inundado de uma doce e perene alegria. Era como se ele, como os demais mestres que havia tido o privilégio de encontrar, vivesse num outro tempo, num mundo mais próximo da essência das coisas do que de seu fluxo constante e ilusório.

Ele juntou minhas mãos com as dele e, num inglês tipicamente indiano, me perguntou meu nome, onde nasci e há quanto tempo morava em Campo Grande. Eu respondi tudo em meio às risadinhas que me surgiam a boca, só por estar por ali ao seu lado. Depois nos abraçamos... Eu tive vontade de ficar abraçado por muito tempo, e ele não esboçava nenhuma reação de encerrar tal abraço. No fim das contas, fui eu quem ficou meio sem jeito e me apartei...

Em seguida, vieram outros conversar com Atmaji, e eu fiquei me perguntando, “Por que era tão importante ele saber onde nasci e há quanto tempo moro aqui?”.


» Na continuação, um mergulho no Coração do Mundo...

***

[1] Embora isso possa estar mudando.

[2] Ashram, na antiga Índia, era um eremitério hindu onde os sábios viviam em paz e tranquilidade no meio da natureza. Hoje, o termo ashram é, normalmente, usado para designar uma comunidade formada intencionalmente com o intuito de promover a evolução espiritual dos seus membros, frequentemente orientado por um místico ou líder religioso.

[3] O Projeto Mayhem é basicamente um grupo de colaboradores, leitores, estudantes e simpatizantes do Teoria da Conspiração, o portal ocultista de Marcelo Del Debbio. Deu tão certo que hoje existem grupos em muitas cidades do país.

[4] A quem possa interessar, o livro de Rumi já foi lançado; já o Bhagavad Gita continua sendo traduzido...

» Saiba mais sobre Atmaji em seu site (em inglês): upanisha.org

Crédito das fotos: Om Namastê (o espaço onde foi realizada a festa)

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2.6.15

A ascensão de Fernando Pessoa

Quanto mais se pensa que sabia de Fernando Pessoa, quanto mais se investigam seus heterônimos, seus escritos deixados em velhos baús e, principalmente, o misticismo latente de sua vasta obra poética, mais se desvela, mais luz do Alto nos chega refletida em tremenda pureza!

Neste vídeo do programa Presença e Harmonia, da AMORC (Antiga e Mística Ordem Rosa Cruz, a qual Pessoa dedicou direta ou indiretamente diversos poemas), Frater Fabio Mendia – doutorando de ciências da religião e pesquisador da obra pessoana – recita e analisa com muita propriedade este que é um dos poemas ainda desconhecidos de Pessoa, e que circula principalmente entre o meio esotérico, por conta da sua abissal profundidade mística.

Como este poema não é encontrado nem mesmo nos mais conhecidos arquivos online da obra pessoana, encontrei somente alguns trechos dele na internet, no que fui obrigado a preencher as lacunas somente por ouvir a recitação de Mendia. Portanto, não devem tomar o texto abaixo como final, embora esteja tão próximo quanto possível.

É bem claro que o sentido profundo deste poema pode ser inalcançável pelos não iniciados nos caminhos espirituais, e é exatamente por isso que recomendamos enormemente que vejam as explicações de Mendia no vídeo antes de iniciar a sua leitura (ou releitura)...

Obs.: ele inicia a leitura do poema em 6:45

***

[Morning star (Estrela da manhã)]

I. A dúvida

Depus, cheio de sombra e de cansaço,
As armas da magia entre onde estão
Os livros sacros com quem tive o laço
Que dá à alma a Força e a Visão.
Ai, não pude depor meu coração!

Quão alto fui para o que todos são!
Quão baixo para quanto quis em mim!
Vi e toquei o que a outros é visão
Em sombras ou desejos, vaga e escura,
Na confusão da confusão sem fim.
Sou hoje minha própria sepultura.
Tenho deserto e alheio o coração.

Quantos, com longo estudo e fiel vontade,
Tentam pisar as sendas do Poder,
Sem que sintam uma única verdade,
Sem que invocado espírito apareça,
Sem que o dominem, se é aparecido,
Sem que sintam, como eu, sobre a cabeça,
A coroa dos magos – ah, mas essa,
Se é de glória no nítido esplendor,
É de espinhos no íntimo sentido.

Por mais alto que o mago suba e atinja
O comércio com os Anjos que há no além,
E da cor lívida do além se tinja,
Que mais que os outros que aqui dormem tem?

Se a ilusão, os símbolos e a sombra
São o que tudo rege,
Regerão o mesmo além que o nosso esforço empana
Com que delusão assim sem sombra?

Se tudo que nos fala nos engana
Por que é que os Anjos não enganarão?


II. A desilusão da razão

Vi Anjos, toquei Anjos, mas não sei
Se Anjos existem
. Tal me achei ao fim
Desse caminho de que regressei
E vi que nunca sairei de mim.

Vã ciência!
Ainda que aqui no rito certo
Os Anjos certos viessem a chamada,
Servos da invocação que os trouxe perto,
Mestres do templo que lhes foi a estrada...

Arte vã!
Pois tudo ainda em que há obtido
Deixas névoas que somos tais quais são,
Sem mais que uma presença sem sentido,
Passando como um cheiro, ou um ruído,
Nas câmaras rituais de ilusão.

Anos e anos de confusa ciência,
Lida e relida até ser meu ser,
Me ergueram a submersa consciência
A superfície clara do querer!

Tracei os signos certos, invoquei!
Obedeceram Anjos ao que eu quis...
Nada sou, nada fiz e nada sei!
Quantos se orgulhariam do que eu fiz...

(...)


III. A morte

Quem me diz que não há um Senhor do mundo?
Um espírito que me ilude?
Quem me diz que quanto mais no incógnito me aprofundo,
Mais de ilusão e de erro não me inundo?

Só sei que quanto maior, mais infeliz...
Ah, já não mais fé nem ciência nem certeza
Do que sou eu pra mim.
Vermes me minam de outra pior,
Bem mais negra natureza
Dos que ao mestre destroem na outra vala...

Tudo me é obscuro, ainda que com destreza
O caminho das sombras me ilumine
As dez luzes divinas da Cabala.


IV. A purificação

Meus pés pisam a câmara do meio,
Minhas mãos tocam o que os Anjos são.
Já de onde estou, percebo o limiar do íntimo sacrário.
Sinto o ar do ulterior silêncio tocar meu seio,
E rasgam-se olhos no meu coração!

Mas o que é tudo isso,
Se isso não é nada?
Que sei eu disso?
Que bem pode ser
Aquela aérea e falsa e linda estrada
Que nos desertos se consegue ver?

Venci? Perdi-me? Não sei dizer...
Poder! Poder!
Ah! A eterna maldição da substância do mundo!

Quem me dera me nascer a um novo coração
Só a ânsia de ser mesquinho,
Só um sono cheio de perdão...
E ser agora qual menino eu era,
Dos mesmos Anjos mais fiel vizinho...

Caminhei como os homens.
Sou como esse que viajou países por achar,
E não achou mais neles do que houvesse
Na pátria onde se houve de apartar.

Tudo é aqui:
Mais mar ou menos mar
.


V. O renascimento

Ah, não é senão essa outra coisa da alma
Que era no fundo incógnito que tem,
[Que] anseia pela grande, a verdadeira calma,
Sem querer nem poder... O sumo bem!

Então, com o escopro e o malhete do Alcançar,
Quebrei a pedra cúbica do altar!
E a pedra cúbica abriu-se em cruz...

Quebrar ao altar... Então a mim quebrei!
Então em sangue, sobre o centro da cruz me derramei...
E ali, sacrificado ou sacrifício,
Exausto, nulo, senti meu enfim
Aquele coração que era fictício!

Consegui!
Paz profunda meu irmão...

(...)


VI. A ascensão [Isaac Luria]

Em nós o fogo reina:
Que primeiro é desejo,
E depois, ardendo mais,
Deste mesmo desejo se purifica.

Consome aquilo de que se alimenta:
Os diversos desejos queima iguais,
E quer ser fogo universal e inteiro,
Chama sem lume, de si mesma rica.

Ah, mas depois que tudo é consumado,
Que o fogo por ser fogo pode arder,
Depois que é em si mesmo sublimado,
Com tal ardência exacerbado dura,
Que a si mesmo se queima, e faz não ser,
Seu ardor para dentro vira ansiado,
E a chama pura torna-se luz pura.

Assim tornado o ser que sou comigo,
Vi que quando cercara o que eu quisera,
Altar ou vara, livro e templo,
Nunca fora de mim estivera...
Só por um julgá-lo tal, fora inimigo.

E então vi que essa cruz em que converso,
[Onde] jazia o altar outrora meu,
Era em cruz de luz todo o universo,
E que essa cruz era quem fora eu.

Sobre ela, a luz perfeita em mim erguida
Caíra numa inteira identidade,
Pois essa pedra cúbica partida
E a minha alma em luz pura resolvida
Eram a mesma coisa:
Eram a Vida e a Verdade.


Fernando Pessoa

***

Crédito da foto: Google Image Search

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