Após quase 9 meses de intenso trabalho de tradução, as Edições Textos para Reflexão têm o prazer de lançar um dos maiores livros sagrados do mundo, o Bhagavad Gita, a sublime canção da Grande Índia.
Para tal empreitada, Rafael Arrais usou como base a tradução clássica do sânscrito para o inglês de Sir Edwin Arnold (1885), conforme compilada pela American Gita Society. E, com a experiência de já haver traduzido o Tao Te Ching da versão inglesa de James Legge, além do Gitanjali de Tagore e do Profeta de Gibran, ambos diretamente do original em inglês, procurou trazer um resultado final ao mesmo tempo profundo e acessível, numa linguagem moderna, porém ancorada na essência ancestral da sabedoria hindu.
A edição digital e a impressa vêm rechadas de notas, incluindo muitas citações de célebres pensadores ocidentais simpáticos ao Gita, como Joseph Campbell e Arthur Schopenhauer. O nosso intuito é trazer a filosofia perene da antiga Índia para os dias atuais, pois que apesar de a guerra dos Kurus e dos Pândavas ter sido narrada há milênios, ela não deixa de estar sendo lutada ainda hoje, ainda neste momento, na alma de todos nós.
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À seguir, um trecho do Capítulo II - O conhecimento transcendental:
Os ensinamentos de Krishna começam pelo verdadeiro conhecimento da alma e do corpo
Lorde Krishna disse: Você se entristece por aqueles que não são dignos da sua tristeza, mas ainda assim suas palavras trazem grãos de verdade. Elas exprimem a sabedoria do mundo exterior, mas são ainda insuficientes para satisfazer à mente interior. Os sábios, em realidade, não se deixam abater nem pelos vivos nem pelos mortos. (2.11)
Jamais houve um tempo em que todos esses reis, você, ou eu, não existíssemos; tampouco haverá algum tempo futuro em que deixaremos de existir. [1] (2.12)
Assim como a alma adquire um corpo de criança, um corpo de jovem e um corpo de velho durante sua vida, da mesma forma, a alma adquire outro corpo após a morte. Isto é muito claro para os sábios. (2.13)
Ao contato dos sentidos, as formas e objetos dão vasão a sensações de frio e calor, de dores e prazeres. Todas essas sensações são transitórias e impermanentes. Dessa forma, devemos aprender a suportá-las sem nos apegarmos a elas, ó Arjuna. (2.14)
Pois uma pessoa verdadeiramente calma e tranquila, que não se deixa afligir ou apegar por essas formas e objetos, e permanece sempre estável em meio às dores e aos prazeres, se torna apta a trilhar o caminho para a imortalidade. (2.15)
O Espírito é eterno, o corpo é transitório
O Espírito invisível (atma) é eterno, e o corpo visível é transitório. A realidade da relação entre ambos é certamente conhecida pelos sábios, que investigaram a si mesmos por um longo tempo, e finalmente chegaram a verdade sobre sua própria essência. (2.16)
O espírito que preenche todo este universo é indestrutível. Ele está em tudo e abarca a todas as coisas. Ninguém pode destruir o que é imperecível. (2.17)
Mas os corpos que abrigam momentaneamente o Espírito eterno, imutável e incompreensível, esses são perecíveis, ó Arjuna. Dessa forma, se prepara para a batalha! (2.18)
Aquele que pensa que o Espírito é um assassino se comporta como aquele que pensa que o Espírito pode ser assassinado, e ambos vivem na ignorância, pois o Espírito nem mata e nem pode ser morto. (2.19)
O Espírito jamais nasce ou, nalgum tempo, morre. Ele não vem à existência, nem cessa de existir. Ele é incriado, eterno, permanente e primordial. Quando o corpo perece ou é destruído, o Espírito perdura. (2.20)
Ó Arjuna, como pode uma pessoa que sabe que o Espírito é indestrutível, eterno, incriado e imutável, matar alguém, ou fazer com que qualquer um seja morto? (2.21)
A morte e a transmigração da alma
Assim como alguém veste uma nova roupa após se livrar da antiga, da mesma forma, a entidade viva da alma individual adquire novos corpos após descartar os antigos. [2] (2.22)
As armas não perfuram tal Espírito, o fogo não o queima, a água não o umedece, e o vento não o deixa seco. O Espírito não pode ser perfurado, queimado, umedecido ou ressecado. Ele é eterno e preenche a tudo o que há. Ele é imutável, permanente, o ancestral de todos. (2.23-24)
Nós sabemos que ele é inefável, incompreensível, incognoscível, que mora além das palavras e do intelecto. E, se você também sabe disso, não deve se deixar afetar pela tentação de tentar conceber o inconcebível. [3] (2.25)
E ainda, ó Arjuna, que você creia que a alma nasce e morre junto com o corpo, isso ainda não seria motivo para tamanha tristeza. Pois que a morte é algo certo para aquele que nasce, e o nascimento necessariamente antecede aquele que vive. Dessa forma, um deriva do outro, e ambos são inevitáveis. Ó príncipe, não se lamente em demasia sobre o que é inevitável. (2.26-27)
Todos os seres são imanifestos, invisíveis aos olhos do corpo, antes do nascimento e após a morte. O período de sua manifestação física é transitório, passageiro, e compreende tão somente uma única vida. Ante tal fato, o que há para nos afligir? (2.28)
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[1] Conforme dizia Joseph Campbell, grande estudioso de mitologia do século XX: “O mito é algo que não existe, mas que existe sempre”.
[2] Conforme bem notou Arthur Schopenhauer, célebre filósofo alemão, em Da morte, metafísica do amor, do sofrimento do mundo (Ed. Martin Claret):
“Sobre a universalidade da crença na metempsicose [reencarnação], Obry nos diz, com razão, no seu excelente livro Du Nirvana indien, p.13: “Esta velha crença fez a volta ao mundo, e estava de tal modo expandida na alta antiguidade, que um douto anglicano a julgou sem pai, sem mãe, e sem genealogia”. Já ensinada nos Vedas, como em todos os livros sagrados da Índia, a metempsicose é, como se sabe, o núcleo do bramanismo e do budismo, e reina até hoje por toda a Ásia não conquistada pelo islamismo, isto é, em mais da metade do gênero humano, como a crença mais sólida, e como influência prática de uma força inimaginável. Ela foi também um elemento de fé dos egípcios (Heródoto, II, 123); Orfeu, Pitágoras e Platão a adotaram com entusiasmo, e os pitagóricos, sobretudo, a mantiveram firmemente. [...] Ela era também o fundamento das religiões dos druidas. [...] Mesmo entre os americanos (índios) e povos negros, a até mesmo entre os australianos (aborígenes), encontram-se traços dela.”
[3] Realmente se trata de um assunto complexo. Eu gosto muito da forma como John Galsworthy, escritor britânico, o resumiu: “As palavras são cascas de sentimento”. Mas, no que se refere a análise da transcendência dos mitos, talvez ninguém seja maior autoridade no tema, no Ocidente, do que Joseph Campbell. Permita-me citar uma de suas respostas a Bill Moyers em O Poder do Mito, onde ele falava sobre “a eternidade”:
“A fonte da vida temporal é a eternidade. A eternidade se derrama a si mesma no mundo. É a ideia mítica, básica, do deus que se torna múltiplo em nós. Na Índia, o deus que repousa em mim é chamado o “habitante” do corpo. Identificar-se com esse aspecto divino, imortal, de você mesmo é identificar-se com a divindade.
Ora, a eternidade está além de todas as categorias de pensamento. Este é um ponto fundamental em todas as grandes religiões do Oriente. Nosso desejo é pensar a respeito de Deus. Deus é um pensamento. Deus é um nome. Deus é uma ideia. Mas sua referência é a algo que transcende a todo pensamento. O supremo mistério de ser está além de todas as categorias de pensamento.
[...] As melhores coisas não podem ser ditas porque transcendem o pensamento. As coisas um pouco piores são mal compreendidas, porque são os pensamentos que supostamente se referem àquilo a respeito de que não se pode pensar. Logo abaixo dessas, vêm as coisas das quais falamos. E o mito é aquele campo de referência àquilo que é absolutamente transcendente.”
Em suma, o que todos esses sábios estão tentando nos dizer é que não basta ler o manual de natação, é preciso mergulhar, pois o mergulho não pode ser descrito em palavras. Há um “deus” que é tão somente uma palavra, e há a experiência de Deus. Só quem passa por tal experiência, sabe...
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