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23.10.17

Gibran e a nudez na arte

Recentemente tivemos muitas polêmicas envolvendo arte, nudez e sexualidade no país. Agora que a “fervura” já passou, penso que ficou mais simples identificar os extremos: gente que nunca vai em galerias de arte invadindo exposições com certa truculência e vendo pedofilia onde não havia; e, no polo oposto, gente não admitindo que as pessoas se sintam nem um tiquinho incomodadas com uma criança tocando a perna de um homem nu.

Eu a princípio nem iria trazer este assunto aqui para o blog, mas por acaso estou no meio da leitura do fantástico O grande amor do profeta, com as cartas trocadas entre Khalil Gibran e sua grande amiga e confidente, Mary Haskell, incluindo trechos do diário dela. Ocorre que há um século atrás, Haskell esteve decorando o interior de seu colégio em Cambridge (próximo a Boston) com alguns dos quadros de Gibran (que também foi exímio pintor). Conforme as obras continham nudez, e o colégio era frequentado por menores de idade, houve protestos dos pais, e então o que se seguiu está descrito no livro (organização de Virginia Hilu, tradução de Valerie Rumjanek, editora Record).

Penso que este episódio secular ainda é capaz de jogar alguma luz até mesmo em nossa polêmica atual:


Mary Haskell
Escola Cambridge (Cambridge – Massachusetts)
10/10/1920

[...] Não cheguei a lhe mandar minha carta devido a uma nuvem dentro de mim, e porque queria muito lhe falar sobre isso e ao mesmo tempo não lhe queria contar coisa alguma. Pois fiquei magoada, e o fato de dizer-lhe iria magoá-lo também. Mas vou lhe contar tudo:

Uma senhora me disse que não matricularia seu filho em meu colégio porque eu tinha O Crucificado [um dos quadros de Gibran] na parede. E dois ou três professores disseram que achavam desaconselhável pendurar na parede A Mãe Celestial e, até mesmo, O Cordeiro Orou em Seu Coração [mais quadros, todos de temática místico-cristã]. Ainda agora, não consigo compreendê-los, e isso torna as coisas confusas a meus olhos, enquanto escrevo.

O pior de tudo é escrever a você sobre isto. Se pudesse ocultar o rosto que faz com que as pessoas vejam o que eu sinto, eu o ocultaria. Dizem que os quadros fazem as meninas se sentirem constrangidas e que elas não são capazes de sentir o lado “espiritual” dos desenhos.

O que sinto a respeito dos nus dos quadros que tenho aqui é que as meninas têm uma sorte extraordinária de tê-los a sua volta, entre as pessoas que amam e respeitam. Sua presença lhes ensina que nada há de vergonhoso na nudez ou no corpo humano – e que isto não é um tabu entre pessoas esclarecidas – e que não precisa causar constrangimento a uma moça. Os quadros são uma presença silenciosa e tranquilizadora. E, se uma menina deseja ver corpos nus, que os veja abertamente aqui, e seja poupada da vergonha por seu desejo.

Se ela quer ver nudez, por que não satisfazer seu desejo? Não vejo nada de mal nisso. Ter aqui todos os quadros que amo seria a coisa melhor que esta escola poderia fazer pela juventude – e não é preciso que se diga uma só palavra acerca de um único quadro para que ele produza efeitos positivos. O próprio fato de estarem nesta escola parece dizer às moças: “O que veem em nós é bom, e é bom que o vejam”.

A preocupação com a influência que os quadros possam exercer nas meninas parece-me, apenas, parte de uma mentalidade complicada e cheia de temores. Digo a mim mesma que é “natural” e lembro a mim mesma o quanto desta mentalidade eu tinha e ainda tenho. Mas o que realmente não sei é quando enfrentá-la ou deixá-la de lado, se a escola está envolvida. E, por não saber o que fazer, nada fiz. Coloquei O Crucificado em meu próprio quarto, e O Contemplador [outro quadro de Gibran, porém sem nudez] ficou ótimo no lugar do primeiro, no meu gabinete.

Com amor,
Mary


Khalil Gibran
Nova York
11/10/1920

Adorada Mary:

A coisa mais sensata e delicada a ser feita é retirar das paredes todos os quadros que ofendem as meninas e suas mães. Pensar que um desenho meu está causando constrangimento a alguém, físico ou espiritual, é uma fonte de sofrimento e infelicidade para mim.

Não podemos pregar a castidade do nu. As pessoas devem descobri-la por si mesmas. Não podemos conduzir as pessoas ao coração da vida. Elas devem ir por sua própria vontade, e cada uma deve ir só.

Eu lhe imploro, querida Mary, que retire todo desenho sobre o qual você tenha ouvido a mais leve restrição.

E, afinal de contas, por que motivo isto deveria perturbá-la ou a mim? Não há nada que deva fazer com que as coisas se tornem negras diante de seus olhos ou diante dos meus. O que as pessoas sentem ou pensam faz parte da vida, e você e eu sempre aceitamos tudo na vida. A raiz de uma árvore não é inferior ao seu ramo mais elevado.

Com amor,
Khalil


***

Crédito das imagens: Khalil Gibran (alguns de seus quadros)

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