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26.12.17

Como me tornei terapeuta

Sendo um psicanalista, as pessoas costumam me perguntar o que é necessário para se tornar um também. Neste texto pretendo responder a essa pergunta, compartilhar um pouco do meu próprio trajeto, e dizer por que a psicanálise pode ser interessante para você caso também queira ser um terapeuta.

Primeiramente, a profissão de psicanalista não é regulamentada pelo governo. Não há um diploma ou uma instituição que possa garantir este título, embora existam cursos e sociedades que ofereçam uma formação profissional ao aspirante a terapeuta. Eu diria que, para ser um bom psicanalista, cursos e diplomas são tão necessários quanto para um bom jardineiro. Obviamente, seu aprimoramento técnico e criativo irá lhe auxiliar na arte da jardinagem, mas o que lhe faz um verdadeiro jardineiro é o quão belo você consegue manter o seu jardim. Na psicanálise não é diferente.

Sigmund Freud propôs a formação do psicanalista baseada no tripé análise pessoal, supervisão e estudo teórico. Como vocês podem perceber, não há uma grade curricular obrigatória, estipulação de carga horária mínima ou qual instituição está apta a conceder o título. Pelo contrário, como Jacques Lacan dizia, “o analista só se autoriza por si mesmo”. O caráter – digamos – anárquico de nossa formação nos confere um interessante diferencial.

Considerando que um percurso é sempre singular a cada sujeito, a psicanálise entende que não há normativas quanto ao que seria um “verdadeiro percurso analítico”. Cada analista deve inventar o seu próprio caminho, a sua própria formação, respeitando apenas os critérios básicos de legitimidade do tripé proposto por Freud.

Certamente esse modelo mais liberal de formação, em que cada um deve buscar por si próprio construir uma trajetória de vida que lhe torne apto a ser um bom analista, parece à primeira vista propício aos charlatães. É por isso que o analista deve se colocar à prova na sociedade. Se sua autorização é uma auto-rização, o reconhecimento do psicanalista não deve se resumir às quatro paredes do seu consultório, mas ele deve estar na pólis.

Se você procura um terapeuta, não vá a qualquer um apenas porque você recebeu seu cartãozinho. Procure profissionais que você já tem algum nível de conhecimento para confiar o importante trabalho que vocês irão desenvolver. Afinal, é de sua vida que estamos tratando. Mesmo quando for uma indicação, procure conhecer esse profissional através de artigos ou vídeos que ele produziu, qual sua formação acadêmica, o que ele tem feito. Ou seja, o que seu terapeuta pode transmitir de sua trajetória pessoal.

E como funciona o tripé psicanalítico?

1. Estudo teórico: Todo analista deve estudar a psicanálise. Obviamente. A partir de Lacan surgiram as escolas de psicanálise. Uma escola não oferece um curso ou um diploma de psicanalista. Estar numa escola não autoriza ninguém a ser analista. A escola é uma instituição em que analistas e estudantes de psicanálise podem se reunir para discutir o seu campo, trocar ensinamentos e avançar as investigações psicanalíticas.

Porém, a formação teórica não se resume ao estudo realizado na escola. Um analista não deve conhecer apenas a psicanálise, mas também a sua interlocução com outros campos. Contam aqui graduações acadêmicas, seminários de filosofia, conhecimentos de religião, atividade política, e por aí vai. Não são propriamente os diplomas que contam, mas a maestria particular que cada um desenvolve a partir de seus variados estudos. Não há uma receita universal, mas cada analista terá suas próprias particularidades e afeições.

Podemos apenas universalizar que o analista tem uma formação contínua: ele jamais deve parar seus estudos, como se os tivesse concluído, mas deve estar sempre avançando em suas investigações, mantendo-se atualizado quanto às transformações do mundo, esteja filiado a uma instituição ou de maneira independente.

2. Supervisão: Durante os primeiros anos da formação, é importante que o aspirante a analista esteja amparado por outro analista mais experiente. Pode-se encontrar um supervisor numa escola, mas não necessariamente. Com seu supervisor, o estudante poderá discutir seus primeiros casos clínicos, esclarecer dúvidas, tornar-se ciente de suas dificuldades pessoais, até que com o passar do tempo possa prescindir dele. Porém, mesmo analistas mais antigos e experientes jamais prescindem de eventualmente reunirem-se com outros analistas para discutir as questões clínicas, ainda que com menor frequência por terem adquirido maior autonomia.

3. Análise pessoal: Chegamos finalmente ao mais importante do tripé. Estudo contínuo e supervisão são fundamentais, mas é a análise pessoal que torna alguém propriamente um analista. Um terapeuta jamais se resumirá a uma função técnica, alguém que coleciona métodos para simplesmente aplicá-los. Trata-se de uma arte. De uma maestria adquirida com o tempo. O analista é, antes de qualquer coisa, analista de si mesmo.

É preciso que se atravesse a própria análise, que seja capaz de mergulhar em sua própria intimidade com sinceridade, para poder se tornar analista de outra pessoa. Só assim nos tornamos capazes de suportar as angústias de um outro ser humano, quando conhecemos suficientemente as nossas próprias. Como eu disse antes, não importam os diplomas e conhecimentos de um jardineiro se ele não é capaz de cuidar de um belo jardim. Quem não enfrentou a própria análise ainda não está apto a analisar outras pessoas.

Não existe autoanálise. Esse é o fracasso da autoajuda. Sozinho consigo mesmo, o sujeito é capaz de criar as mais diferentes racionalizações, fugas, mentiras para não se haver com aquilo que lhe é mais verdadeiro. Pois a verdade geralmente é incômoda demais ao ego. É preciso que a análise seja um discurso dirigido a um outro, e que esse outro esteja ali para pontuar o que não se deve ignorar. Só existe análise com um psicanalista. Terapia com um terapeuta.

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Existem muitos caminhos terapêuticos. Dentro da psicologia mesmo existem diferentes abordagens. Por que então a psicanálise?

Não há uma resposta absoluta para essa pergunta. Cada pessoa terá suas diferentes preferências e filiações teórico-políticas. Posso responder apenas porque a psicanálise fez mais sentido para mim. Talvez outro caminho possa fazer mais sentido para a sua história.

Meu primeiro contato com a psicanálise foi ainda criança, por volta dos 10 anos, quando fui levado a um analista por meus pais. Anos depois, quando entrei na faculdade de psicologia, eu já sabia que a psicanálise, embora também ensinada nos cursos de psicologia, não se reduz a última. Psicologia e psicanálise são campos diferentes, com profissionalidades diferentes, ambas aptas ao exercício terapêutico.

O psicólogo é uma profissão regulamentada, adquirida apenas através de um curso de graduação. Existem muitas atuações para um psicólogo, a depender de suas variadas especializações. O psicanalista, por sua vez, é uma função a qual exercemos. Particularmente, eu adquiri as duas formações. Mas nem todo psicanalista vem da psicologia. Alguns se tornam psicanalistas após um curso de medicina, filosofia ou, comumente, outras ciências humanas.

Minha escolha pela psicologia se deu por considerá-la uma ciência abrangente para conhecer as diferentes interseccionalidades que lidam com o ser humano, tema que sempre me intrigou bastante. Mas desde o primeiro período da graduação jamais abandonei outros estudos. Para falar a verdade, muitas vezes passava mais tempo na seção de filosofia das livrarias que propriamente na seção de psicologia.

Foi por volta da metade da graduação que comecei a estagiar com um professor que era psicólogo e psicanalista. Com ele iniciei na clínica, recebendo pacientes, e desde então nunca mais parei. Quanto ao estudo teórico, dediquei-me a uma intensa atividade acadêmica durante e após a graduação. Mas minha formação analítica ocorreu, como era de se esperar, em minha própria análise.

Foi durante a faculdade que retomei também a minha análise pessoal, pausada após uma significativa melhora daquelas questões que me levaram a um analista quando ainda era criança. Dando prosseguimento quando mais velho, foi ouvindo a mim mesmo, minhas incongruências, divisões, conflitos, paradoxos, angústias, que comecei a desenvolver um saber que não está nos livros ou nas teorias. Trata-se de um saber de si, um saber da vida, algo que os franceses chamam de savoir-faire, um saber-fazer. Isto é, saber fazer com a própria vida.

Porque não existem regras prontas para a vida. Há muitas teorias, técnicas e filosofias que podemos tomar conhecimento por livros, por aulas ou pela internet. Mas nenhum saber externo pode dizer a verdade sobre nós. É preciso conhecê-la aos poucos, ouvir a si próprio numa escuta aberta, numa paixão pela verdade, ainda que muitas vezes ela possa ser dolorosa ao ego. Se você tem essa coragem, a psicanálise é para você.

Entrar numa análise é desejar conhecer as profundezas daquilo que a maioria decide apenas ignorar. As saídas superficiais podem parecer mais simples. Antidepressivos, ansiolíticos e toda uma gama de drogas que, ainda que em muitos casos sejam necessárias, estão longe do uso banalizado que se adquiriu atualmente. Ou prazeres superficiais, fugazes, que, mesmo com eles, ainda sentimos a vida vazia de sentido, valor ou desejo.

Imagine que você possa ter uma vida satisfeita que independa do uso de drogas psiquiátricas, que sabemos trazer restrições à vida e efeitos colaterais. Que você possa encontrar algo que lhe faça vibrar. Valorizar o que é importante para você e desprender-se do que lhe faz mal. Viver sem estar limitado por medos incompreensíveis ou restrições absurdas.

Eu diria que os ganhos de uma análise são incomparáveis. Não por propaganda, mas por minha própria experiência. Se eu não tivesse feito análise, certamente teria uma vida muito diferente da que tenho hoje. Talvez precisasse de drogas psiquiátricas para viver e funcionar socialmente, estaria atormentado por fantasmas familiares, medos e inseguranças quanto a vida, diante de questões que pude trabalhar de um outro modo na análise.

Estamos acostumados a esperar soluções muito fantásticas para nossos problemas. Encontramos por aí propagandas de mudanças radicais para a vida: largar o emprego e viajar o mundo, ter uma experiência sexual muito perigosa, encontrar o amor da sua vida e tudo se tornar perfeito a partir de então, iniciar uma nova dieta revolucionária que mudará o seu corpo. Tudo muito espetacular. Também muito ideológico.

Mas às vezes você não precisa de muita coisa. E a psicanálise está aí para demonstrar isso. Só colocar umas palavras no lugar que fica tudo bem. É falar, escutar-se e também se calar. Porque a vida é muitas vezes inconsistente, absurda, frustrante. Mas acompanhada por amores, sonhos, realizações e alegrias. Basta encontrar a sua medida.

Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.

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Crédito da imagem: Gerome Viavant/unsplash (arte de Alexander Milov para o Burning Man)

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