Ateísmo 2.0: um elogio a religião
Em "Religião para ateus", um livro provocativo (e muito corajoso), o filósofo suiço Alain de Botton, que se declara ateu, defende que à sociedade secular têm muito o quê aprender com os aspectos positivos das grandes instituições religiosas. Aspectos esses que podem muito bem sobreviver mesmo quando Deus é deixado de lado. Nesta entrevista concedida ao blog do G1, Máquina de Escrever, de Luciano Trigo, Alain nos traz um panorama geral das ideias que defende no livro, e conceitua o "ateísmo 2.0":
- Você parece escrever em defesa de uma religião secular. Qual seria o sentido da fé e da religião, sem Deus?
[Alain de Botton] Minha proposta não é inaugurar uma nova religião, sem Deus. Esta seria uma idéia ousada e mesmo bastante louca. Em vez disso, o que sugiro é que os ateus deveriam aprender a roubar alguns elementos das religiões existentes e integrá-los ao mundo moderno. No meu livro, eu argumento que acreditar em Deus é algo implausível hoje e, para mim e muitas outras pessoas, algo simplesmente impossível. Ao mesmo tempo, eu admito que, quando se elimina a fé, abre-se espaço para o surgimento de alguns perigos. Eles não vão necessariamente acontecer, mas estão lá, e precisamos ter consciência deles.
Em primeiro lugar, existe o risco do individualismo excessivo, de colocarmos o ser humano no centro de todas as coisas. Segundo, existe o risco do perfeccionismo tecnológico, de acreditarmos que a ciência e a tecnologia podem oferecer soluções para todos os problemas humanos, e que é apenas questão de tempo os cientistas resolverem todos os males da condição humana. Terceiro, sem Deus é mais fácil perdermos a perspectiva de longo prazo, e enxergarmos o momento presente como a única coisa que importa, esquecendo a efemeridade do presente e deixando de reconhecer, de uma forma positiva, a natureza minúscula de nossas conquistas. Por fim, sem Deus existe o risco de desprezarmos a importância da solidariedade e de um comportamento ético.
Mas é importante sublinhar que é perfeitamente possível não acreditar em nada e ainda assim dar valor a todas essas lições vitais, da mesma forma que alguém pode ter uma profunda fé e ao mesmo tempo ser um monstro. Só estou tentando chamar a atenção para algumas coisas que podem se perder quando descartamos Deus de uma forma muito brusca. Com certeza podemos descartar Deus, mas podemos fazer isso com mais cuidado e reflexão, e mesmo com alguma nostalgia.
- Você começa o livro afirmando que os aspectos sobrenaturais das religiões são inteiramente falsos. Você não teme perder leitores, fazendo uma afirmação tão categórica?
[AB] Não, eu acho que a maioria das pessoas religiosas que lerem meu livro não ficará chocada ao se depararem com um ateu. Na verdade, elas podem até sentir curiosidade para ler um livro escrito por alguém que diz duas coisas que normalmente são consideradas incompatíveis: 1) Eu não tenho fé. 2) Eu tenho interesse na religião.
- Você concorda que a fé pode ter um papel terapêutico, ou que a religiosidade pode contribuir para um convívio mais pacífico e ético entre as pessoas?
[AB] Minha tese é que não é o elemento da fé presente na religião que traz paz para as pessoas, ou as leva a ter uma conduta ética. Ninguém precisa ter fé para entender o dever de não matar, ou o valor da gentileza. Isso é produto do trabalho da razão e da consciência, é algo perfeitamente possível sem a fé. É claro, por outro lado, que quando o homem que abandona a religião se esquece de ser bom, isso vira um problema. Em teoria, todos sabemos que devemos praticar o bem. O problema é que, na prática, isso é esquecido. E é esquecido porque o mundo moderno e secular acha que basta falar as coisas uma vez – seja bom, seja caridoso com os pobres etc. Por sua vez, todas as religiões fazem o oposto: elas insistem em nos mandar lembretes diariamente, ou mesmo mais de uma vez por dia, para façamos as coisas certas.
- Como você definiria o “Ateísmo 2.0”?
[AB] O Ateísmo 1.0 tinha a ver com rejeição. Foi um movimento liderado por Christopher Hitchens e Richard Dawkins e se baseava numa hostilidade profunda, e mesmo numa agressividade em relação à religião. O Ateísmo 2.0 também rejeita Deus, mas é um movimento mais interessante, por enfatizar que podemos aprender com as religiões, ao invés de simplesmente atacá-las. É uma forma mais confiante e curiosa de ateísmo, uma forma que tem a coragem de se envolver e mesmo de simpatizar com o campo inimigo.
Eu escrevo para aqueles leitores que pensam ‘Eu realmente não consigo acreditar em nada sobrenatural, o lado sobrenatural das religiões não faz sentido para mim, MAS ao mesmo tempo eu adoro vários elementos da religião: o ritual a arquitetura, a conexão com o passado… Por que as pessoas devem ser obrigadas a fazer uma escolha tão brutal? Isto é, por que é preciso acreditar em toda sorte de coisas implausíveis para poder apreciar a arquitetura etc? Por que não acreditar em nada sobrenatural implica viver em um mundo dominado pela CNN? As alternativas não devem ser tão radicais.
- Como você avalia o recente debate sobre os chamados “novos ateus”, que opuseram Terry Eagleton a Christopher Hitchens e Richard Dawkins, que fizeram ataques pesados à religião?
[AB] Eu sou ateu, mas um ateu gentil. Não sinto necessidade de debochar daqueles que têm fé. Por isso realmente discordo do tom duro com que alguns ateus abordem a religião, como se ela fosse uma fábula suja. Respeito profundamente a religião, embora não acredite em nenhum de seus elementos sobrenaturais. Portanto, minha posição talvez seja incomum: eu sou um ímpio que respeita a fé.
- Ao resenhar o livro “A questão de Deus”, de Karen Armstrong, você parecia concordar que “nós somos limitados demais para entender Deus”, porque que a nossa natureza é efêmera e cheia de falhas. Seu pensamento mudou?
[AB] O ponto de partida da religião é que nós somos crianças e precisamos de um guia, de orientação. O mundo secular frequentemente se sente ofendido com isso, porque nesse mundo nós somos adultos e maduros, daí o desprezo por qualquer tipo idéia didática de orientação, de educação moral. Mas é claro que nós somos mesmo crianças, crianças grandes que precisam de orientação e de lembretes sobre como viver. O moderno sistema educacional se nega a oferecer isso. Somos tratados como se fôssemos totalmente racionais, razoáveis e com tudo sob controle. Na verdade somos seres muito mais angustiados e desesperados do que o sistema educacional moderno admite reconhecer. Quase todos nós vivemos à beira de um estado de pânico e terror boa parte do tempo. As religiões entendem isso. Então precisamos desenvolver uma consciência similar dentro das estruturas seculares.
- Você já disse que se envolveu com o tema da religião por causa de uma “crise de fé” – não por ter deixado de acreditar em Deus, mas porque, mesmo sem acreditar, você amava tanto a música de Bach. Para apreciar verdadeiramente a arte e a música de cunho religioso, você não acha que é preciso acreditar? Os descrentes não perderiam alguma coisa importante nessa experiência artística?
[AB] Existe uma idéia moderna de que nós encontramos na arte um substituto para a religião. Por isso muitas pessoas dizem que os museus são as igrejas de hoje. É uma imagem interessante, mas não é verdadeira. Não é verdadeira, principalmente, por causa da forma como os museus apresentam a arte do passado e do presente: eles evitam que se estabeleça um envolvimento emocional com as obras em exsposição. Os museus encorajam o interesse acadêmico, mas dificultam qualquer contato terapêutico. No meu livro eu recomendo que, mesmo que uma pessoa não tenha fé, ela pode usar a arte, mesmo a arte secular, como uma fonte de conforto e identificação, como orientação edificante. É isso o que as religiões fazem com a arte.
- Dostoievski escreveu que, se Deus não existe, tudo é permitido. Jean-Paul Sartre, ao contrário, sugeriu que a ausência de Deus torna as coisas mais difíceis, porque o homem carrega toda a responsabilidade por seus atos…
[AB] Boa parte do moderno pensamento moral foi marcada pela ideia de que um colapso na fé necessariamente provocou um dano irreparável na nossa capacidade de construir um padrão ético convincente em nossa conduta. Mas esse argumento, embora ateísta na aparência, reconhece uma dívida com a mentalidade religiosa, já que somente se acreditássemos mos em alguma medida que Deus existe haveria fundamentos para a moral, ou seja, esses fundamentos seriam sobrenaturais na sua essência. É uma tese que sugere que o reconhecimento da não-existência de Deus é capaz de abalar os nossos princípios morais. Contudo, se afirmarmos desde o começo que Deus é uma invenção, então essa tese se transforma numa tautologia: por que nos daríamos ao trabalho de sentir o peso da dúvida ética se sabemos que todas as normas atribuídas a seres sobrenaturais são no fundo apenas o produto do trabalho de nossos ancestrais demasiado humanos?
As origens da ética religiosa estão na necessidade prática das nossas comunidades ancestrais de controlar os impulsos para a violência de seus membros, induzindo neles hábitos e comportamentos que levassem à harmonia e ao perdão. Os códigos religiosos começaram como preceitos preventivos, que foram então projetados no céu e refletiram de volta na Terra, em formas desencarnadas e majestáticas. Os deveres de sermos solidários ou pacientes nasceram da consciência de que estas são qualidades que protegem a sociedade da fragmentação e da autodestruição. Essas regras eram tão vitais para a nossa sobrevivência que por milhares de anos não tivemos a coragem de admitir que fomos nós mesmos quem as formulamos, porque isso as deixaria mais vulneráveis ao escrutínio crítico e à manipulação sem reverência. Nós tivemos que fingir que a moralidade vem do céu, de forma a protégé-la de nossas próprias imperfeições e fraquezas.
Mas se hoje podemos abrir mão dessa espirtualização das leis éticas, não temos motivo algum para abandonarmos inteiramente essas leis. Continuamos precisando de exortações para sermos solidários e justos, mesmo se não acreditamos que existe um Deus que deseja que nós sejamos assim. Para andar na linha, não precisamos mais da ameaça do Inferno ou da promessa do Paraíso. Precisamos apenas ser constantemente lembrados de que somos nós mesmos – ou, ao menos, aqueles mais maduros e racionais entre nós. Que geralmente aparecem nos momentos de nossas crises e angústias – que queremos lever o tipo de vida que, no passado, nos era recomendada ou imposta por seres sobrenaturais imaginários. Uma evolução adequada da moralidade, da superstição para a razão, significa que devemos nos reconhecer como os criadores de nossos próprios mandamentos morais.
- O comunismo soviético não foi uma tentativa de criar uma religião sem Deus, na medida em que usava a propaganda para controlar as pessoas? E, o que dizer da religião do livre mercado? Será que não existiram sempre religiões sem Deus, e que essas experiências não dão certo justamente por faltar o elemento espiritual?
[AB] Nós nos assustamos com muita facilidade. Frequentemente, quando alguém propõe uma ideia válida nessa area, as pessoas dizem: e Hitler e Stálin? Mas a alternativa não é essa. Podemos ter uma moralidade pública sem cair no fascismo, podemos até aceitar algum nível de censura – por exemplo, no caso da pornografia – sem cairmos numa ditadura, e podemos ter uma grande arquitetura cívica, sem que ela seja promovida por governantes em busca da própria glória. É certo que no século 20 houve tendências assustadoras, mas não devemos por isso ser pouco ambisiosos em relação àquilo que podemos fazer. Nem precisamos nos entregar ao capitalismo de livre Mercado sob a liderança espiritual da televisão a cabo.
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Crédito da foto: Divulgação (Alain de Botton)
Marcadores: Alain de Botton, ateismo, ecumenismo, entrevista, filosofia, Luciano Trigo, religião
2 comentários:
Nossa, obrigada pela entrevista. Eu tenho procurado bastante sobre o Alain depois do "Religião para ateus", mas não tinha visto essa daqui.
Pois é, eu estava procurando pelo vídeo de um Espaço Aberto Literatura da Globo News que tem uma outra entrevista com ele.. Não achei o vídeo, mas achei essa entrevista que é bem melhor do que a outra até (apesar de não ser vídeo).
Aliás esse Luciano Trigo é um excelente jornalista. Pena que o blog dele fique meio perdido no meio do amontoado de informações da Globo.com :(
Abs
raph
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