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27.5.19

4 Amores: Pornea

Neste vídeo vamos começar nossa jornada pelo Amor, compreendendo desde o início que o Amor pode ser muitas coisas; os gregos tinham pelo menos 4 nomes para ele: Pornea, Eros, Filia e Ágape. Assim, o Amor é antes uma Caminho do que uma coisa só. Iniciando por Pornea, falaremos de como o instinto de perpetuação da espécie está por trás de muito do que fazemos no Amor; e ao final ainda convidamos Arthur Schopenhauer para nos falar um pouco mais sobre a Metafísica do Amor.

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28.11.12

Em nome do sexo

Texto de Alain de Botton em "Como pensar mais sobre sexo” (Ed. Objetiva) – trechos das pgs. 139 a 142. Tradução de Cristina Paixão Lopes. As notas ao final são minhas.

Seria tão melhor se não tivéssemos desejo sexual. Durante a maior parte de nossa vida, ele só representa problemas e angústias. Em nome dele, fazemos coisas revoltantes com pessoas de quem, na verdade, não gostamos, e acabamos nos sentindo nojentos e pecaminosos. As pessoas que desejamos geralmente nos dispensam por nos considerarem feios demais, ou não sermos seu tipo; os bonitinhos quase sempre já têm um namorado ou namorada. A maior parte da vida adulta envolve rejeição, música triste e pornografia ruim. É um milagre quando finalmente alguém se compadece e nos dá uma chance; mas, mesmo quando isso acontece, não muito tempo depois já começamos a nos interessar pelas pernas e cabelos de outras pessoas. Seria tão bom se não houvesse sexo – bom como são os meninos e meninas de 7 anos, cheios de doçura e encantamento com a vida dos saguis e veados [1].

Quando envelhecemos, podemos esperar o horror e a humilhação de não conseguir um bom desempenho, de olhar com luxúria para pulsos e tornozelos de pessoas que ainda eram bebês quando estávamos na universidade, e assistir ao lento colapso de nosso corpo, antes viçoso e elástico. Num dia ruim, a coisa toda parece feia para nos derrotar.

Mas há um outro lado, claro; um lado de êxtase e descoberta. Talvez o melhor momento para percebermos isso seja numa noite clara de verão numa cidade grande, por volta das 18h30, quando o trabalho em boa parte já acabou e as ruas cheiram a diesel, café, fritura, asfalto quente e sexo.

[...] O sexo nos faz sair de casa e de nós mesmos. Em nome dele, abrimos nossos horizontes e nos misturamos imprudentemente com membros aleatórios de nossa espécie. Pessoas que de outro modo se manteriam para si mesmas, que acreditam tacitamente que nada tinham em comum com a classe ordinária da humanidade, entram em bares e discotecas, sobem nervosas as escadas de cortiços, esperam em ambientes desconhecidos, [e] gritam para se fazerem ouvir acima da vibração da música [2].

[...] Em nome do sexo, expandimos nossos interesses e pontos de referência. Para nos ajustarmos aos nossos amantes, ficamos fascinados com a história dos móveis suecos do século XVIII, aprendemos sobre ciclismo de longa distância, descobrimos a porcelana sul-coreana. Por sexo, um carpinteiro robusto e tatuado se sentará em um café com uma delicada aluna de doutorado com franja, e ouvirá parcialmente uma torturante explicação sobre a palavra grega eudaimonia, deixado seus olhos traçarem padrões em sua impecável pele de porcelana, enquanto alguém grelha salsichas ao fundo.

[...] Somente pelo prisma do sexo o passado torna-se apropriadamente inteligível. A estranheza aparente da Roma Antiga e da China da Dinastia Ming não poderia, afinal, ter sido tão grande, apesar das barreiras da língua e da cultura, porque ali também as pessoas conheciam a força das fazes coradas e dos tornozelos bem-torneados. Durante o reinado de Montezuma I, no México, ou de Ptolomeu II, no Egito, deve ter sido mais ou menos igual entrar em alguém e suspirar ante a pressão de seu corpo contra o nosso.

Sem o sexo seríamos perigosamente invulneráveis. Poderíamos achar que não éramos ridículos. Não conheceríamos a rejeição e a humilhação tão de perto. Poderíamos envelhecer respeitavelmente, nos acostumaríamos aos privilégios e acharíamos que compreendíamos o que estava acontecendo. Poderíamos sumir apenas nos números e palavras. É o sexo que cria o estrago necessário nas hierarquias comuns de poder, status, dinheiro e inteligência [3].

O professor se colocará de joelhos e implorará para ser açoitado pela trabalhadora rural sem estudos. O CEO perderá a razão diante da estagiária; já não importará que ele comande alguns bilhões de dólares e que ela alugue um quartinho no porão. Sua única prioridade será o prazer dela; por ela ele aprenderá os nomes de bandas que não conhece, entrará numa loja e comprará um vestido amarelo-limão que não caberá nela; será delicado onde antes era indiferente, reconhecerá suas idiotices e sua humanidade; e quando tudo estiver terminado, ele se sentará em seu carro alemão do lado de fora da imaculada casa de sua família e chorará incontrolavelmente [4].

Talvez até mesmo abraçaremos a dor que o sexo nos causa, pois sem ela não conheceríamos tão bem a arte e a música. Haveria muito menos sentido nos Lieder de Schubert e na Ophelia de Natalie Merchant, nas Cenas de um casamento, de Bergman, e na Lolita de Nabokov. Estaríamos muito menos familiarizados com a agonia – e, portanto, muito mais cruéis e menos prontos a rir de nós mesmos. Quando já se tiver dito tudo de desprezível, mas justo, sobre nossos infernais desejos sexuais, ainda poderemos celebrá-los por não nos permitirem esquecer por mais do que uns poucos dias o que realmente está envolvido no viver uma vida humana encarnada, química e imensamente insana.

***

[1] Conforme Adão e Eva, antes de comerem do fruto proibido, e “descobrirem a nudez”. Mas é nossa sina inevitável: tornarmo-nos adultos.

[2] Segundo Schopenhauer, a força da vida é a grande responsável por muito do que fazemos, inconscientemente, no sentido de tentar propagar nossa prole adiante (sim, ele postulou isso muito antes da psicologia evolutiva). Muito do que os paulistanos fazem na Rua Augusta, assim como muito do que os cariocas fazem na Lapa, pode ser compreendido dessa forma: a maneira com que a vida anseia por si mesma. E, uma vez isto tendo sido compreendido, trazido à consciência, será tanto mais fácil “entrar em acordos” com nosso lado animal, nos tornando cada vez mais humanos, de fato.

[3] Pois o entendimento ao qual o sexo nos catapulta, o amor, este jamais seguiu hierarquias.

[4] A vida está sempre apontando para dentro: “Lá está o que procura!”, ela grita... Mas insistimos em ignorar nosso próprio pensamento e intuição, insistimos em procurar lá fora por fórmulas mágicas de sabedoria instantânea e, mais recentemente, por comprimidos de felicidade diluída.

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Crédito da imagem: Hans Neleman/Corbis

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14.11.12

Uma filosofia para o erotismo

Texto de Alain de Botton em "Como pensar mais sobre sexo” (Ed. Objetiva) – trechos das pgs. 29-31 e 41-42. Tradução de Cristina Paixão Lopes. As notas ao final são minhas.

Eles se deitam na cama e acariciam-se ainda mais [1]. Ele leva a mão para o meio das pernas dela e faz uma delicada pressão, percebendo, com intensa alegria, que ela está molhada. Ao mesmo tempo, ela o toca e fica satisfeita de forma equivalente ao sentir a extrema rigidez do pênis.

Se estas duas reações fisiológicas são emocionalmente tão satisfatórias (tão eróticas) é porque sinalizam um tipo de aprovação que está totalmente além da manipulação racional. Ereções e lubrificações simplesmente não podem ser estimuladas somente pela força de vontade e são, portanto, indícios de interesse particularmente verdadeiros e honestos [2]. Em um mundo em que falsos entusiasmos são frequentes, em que é muitas vezes difícil dizer se as pessoas estão nos dizendo a verdade ou se estão sendo delicadas apenas por educação, a vagina molhada e o pênis rígido funcionam como agente inequívocos de sinceridade [3].

[...] Os momentos em que o sexo domina nosso ser racional costumam ser altamente eróticos. Daqui a algumas semanas, nosso casal irá para o litoral passar o fim de semana. No sábado à noite, no hotel, depois de um dia de sol e banhos de mar, eles se deitarão juntos e começarão a conversar e, eventualmente, o assunto sobre fantasias sexuais irá surgir. Ambos admitirão que gostam muito de uniformes. [...] O erotismo em relação a uniformes parece brotar da lacuna entre o controle racional que eles simbolizam e o desejo sexual que pode, momentaneamente, mesmo que na fantasia, ganhar vantagem sobre ele.

Claro que, na maior parte do tempo, quando as pessoas conversam conosco – de médicos e enfermeiras a gerentes de investimento e contadores –, elas não estão molhadas ou com ereções; elas quase não nos notam e com certeza não estão dispostas a interromper um procedimento médico ou atrasar uma teleconferência por nossa causa. Essa indiferença profissional pode ser dolorosa ou humilhante para nós. Daí o poder particular da fantasia de que a vida pode ser virada de cabeça para baixo e suas prioridades normais podem ser revertidas [4].

[...] Em nossos jogos sexuais, podemos reescrever o roteiro: agora a enfermeira deseja tanto fazer amor conosco que se esquecerá totalmente de que está ali para tirar uma amostra de sangue. [...] Ao transarmos apaixonadamente em uma cabine de banheiro de um hospital imaginário ou em um armário, a intimidade, ao menos simbolicamente, prevalece sobre o status e a responsabilidade. Muitos ambientes formais podem ser inesperadamente eróticos em si mesmos.

[...] Transar no fundo de um avião cheio de viajantes executivos é experimentar inverter a hierarquia normal das coisas, é tentar introduzir o desejo em um ambiente onde a fria disciplina geralmente predomina sobre os nossos desejos. A 10 mil metros de altura, a vitória da intimidade parece maior, e nosso prazer aumenta na mesma proporção. Dizemos que o cenário no banheiro do avião é “sexy”, mas o que realmente queremos dizer é que estamos excitados por termos superado um tipo de alienação do contrário opressiva.

O erotismo é, portanto, manifesto de forma mais clara na interseção entre o formal e o íntimo. É como se precisássemos ser lembrados das convenções para apreciar de maneira adequada as maravilhas de se estar desprevenido ou para continuar a ultrapassar os limites de nosso ser vulnerável a fim de sentir com real intensidade as qualidades especiais do local ao qual nos foi permitido acesso. Isso explica o apelo das lembranças da nossa primeira noite com alguém, quando os contrastes eram mais nítidos [5]. Por outro lado, mais tristemente, também explica a falta de erotismo que sentimos numa praia de nudismo ou com um parceiro de longa data que se esquece de esconder sua nudez contra os constantes perigos de nossa predatória ingratidão [6].

[...] Uma das dificuldades do sexo é que – no quadro mais amplo – ele não dura muito tempo. Mesmo em seus extremos, estamos falando de um fenômeno que pode ocupar apenas raramente duas horas, ou a duração aproximada de uma missa católica.

O ânimo, depois disso, tende a ser deprimido. A tristeza pós-coito normalmente se instala no casal. Pode haver um impulso de um ou ambos para dormir, ler o jornal ou fugir. O problema, em geral, não é o sexo em si, mas o contraste entre sua inerente ternura, energia e hedonismo, e os aspectos mais mundanos do resto de nossa vida, o eterno tédio, repressão, dificuldade e frieza. O sexo pode dar um alívio quase insuportavelmente grande aos desafios que enfrentamos [7].

Além disso, com nossa libido gasta, nossos entusiasmos anteriores podem parecer inibidoramente estranhos e desconectados do nosso eu cotidiano e de nossas preocupações triviais. Esforçamo-nos para ser sensíveis, mas um momento antes – é isso mesmo? – estávamos desesperados para chicotear nosso amante. Vivemos contentes num moderno mundo democrático, mas agora mesmo passamos parte da noite dando asas ao nosso desejo de ser um sádico nobre que aprisiona uma donzela numa masmorra medieval.

Nossa cultura os encoraja a reconhecer bem pouco de quem normalmente somos no ato sexual. Parece um processo puramente físico, sem importância psicológica. Mas, como vimos, o que acontece quando se faz amor está ligado a algumas de nossas ambições mais importantes. O ato do sexo acontece pelo roçar de órgãos, mas a excitação não é uma reação fisiológica grosseira; é um êxtase pelo encontro de alguém que pode ser capaz de solucionar alguns de nossos maiores temores e nos ajudar a construir uma vida em comum calcada em valores partilhados [8].

***

[1] Alain está usando como personagens um casal que está fazendo sexo pela primeira vez, neste trecho ele fala especificamente sobre a excitação que antecede o ato sexual em si.

[2] Em suma, não é possível fingir o genuíno interesse sexual, ao menos não sem o auxílio de drogas e lubrificantes. Mesmo os atores pornô mais profissionais necessitam de ajuda para manter o pênis ereto entre interrupções de cena, enquanto as atrizes pornô provavelmente têm de caprichar nos lubrificantes.

[3] Alain parece que pegou emprestada a ironia socrática, e a têm utilizado de forma magistral...

[4] Este é o princípio básico do período de Carnaval, quando a loucura e a fantasia “saem da toca” por breves momentos, e salpicam com um pouco de cor a um mundo excessivamente racional e cinzento. Mas felizes são aqueles que pulam o seu Carnaval todos os dias, em suas mentes livres de tabus e preconceitos descabidos. Mas é claro que existe o Carnaval, e os carnavais; Assim como existe a filosofia de Epicuro, e os que a interpretaram de forma absolutamente equivocada.

[5] Alain postula que as pessoas vivem em espécies de “casulos de intimidade”, e que a primeira noite de sexo com alguém é por si só especial, talvez principalmente, por ser a primeira vez que “penetramos no casulo alheio”. No sexo com intimidade, é preciso dar e receber, se expor para estar apto a explorar – é meio caminho andado para o amor em si.

[6] O amor que ainda não aprendeu a arder por si mesmo, quando depende de um erotismo renovado, esbarra na rotina da vida conjugal. Ou, em outras palavras: a intimidade é uma merda.

[7] Mas não faz milagres, particularmente em quantidade. E, mesmo na qualidade, o sexo nada resolve por si só: é preciso a Vontade para acender de uma vez a pira do próprio Amor. A sociedade moderna, algo esquizofrênica, de um lado “anuncia” por todos os cantos ao sexo como o grande catalisador da felicidade, mas de outro condena a promiscuidade e a infidelidade, para ainda assim escancarar a promiscuidade e infidelidade das celebridades nas revistas onde há mais fotos do que texto – e, para nossa surpresa, vendem como água. Há algo errado, definitivamente...

[8] Neste livro recente, primeiro com o selo de sua School of Life (“Escola da Vida”), uma espécie de “universidade da filosofia do dia a dia”, Alain de Botton me parece estar no auge da forma, mais irônico e original do que nunca – e mais pensador, mais filósofo, mais sábio. Há essa altura, já devem ter percebido que o próprio título do livro é uma provocação, uma provocação muito bem vinda: precisamos realmente pensar mais sobre sexo, mas com a mente, com a alma, não com o pênis ou a vagina, e muito menos com um Manual de Preceitos nas mãos. Chico teria adorado.

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Crédito da imagem: beyond/Corbis

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2.5.12

Ateísmo 2.0: Alain de Botton fala no TED

Em "Religião para ateus", um livro provocativo (e muito corajoso), o filósofo suiço Alain de Botton, que se declara ateu, defende que à sociedade secular têm muito o quê aprender com os aspectos positivos das grandes instituições religiosas. Aspectos esses que podem muito bem sobreviver mesmo quando Deus é deixado de lado. Nesta palestra memorável no TED, ele nos traz um breve e espirituoso resumo sobre as ideias que relata em seu livro:

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» Veja mais posts sobre Alain de Botton em nosso blog (incluindo alguns trechos do livro)

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20.2.12

A Festa dos Loucos

Texto de Alain de Botton em “Religião para ateus” (Ed. Intrínseca), tradução de Vitor Paolozzi – Trechos das pgs. 51 a 56. A introdução e os comentários ao final são meus.

Introdução
Neste livro provocativo (e muito corajoso), Alain, que se declara ateu, defende que a sociedade secular tem muito o que aprender com os aspectos positivos das grandes instituições religiosas. Aspectos esses que podem muito bem sobreviver mesmo quando Deus é deixado de lado. Neste trecho em específico ele faz um elogio ao senso de comunidade presente nas religiões organizadas...

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As religiões são sábias ao não esperar que lidemos sozinhos com todas as nossas emoções. Sabem como pode ser confuso e humilhante admitir desespero, luxúria, inveja ou egomania. Compreendem a dificuldade que temos para encontrar uma maneira de dizer à mãe, sem ajuda, que estamos furiosos com ela, ao filho que o invejamos ou ao futuro cônjuge que a ideia de casamento assusta tanto quanto alegra. As religiões, desse modo, nos dão dias especiais para que neles os sentimentos perniciosos possam ser processados. Elas nos dão versos para recitar e músicas para cantar enquanto nos transportam através das regiões traiçoeiras de nossas mentes.

Em essência, as religiões entendem que pertencer a uma comunidade é ao mesmo tempo bastante desejável e nada fácil. A esse respeito, são muito mais sofisticadas que os estudiosos seculares de teoria política que escrevem de forma lírica sobre a perda de um senso de comunidade enquanto se recusam a reconhecer os aspectos inteiramente obscuros da vida social [1]. As religiões nos ensinam a ser educados, a honrar uns aos outros e a ser fiéis e sóbrios, mas também sabem que, se não nos permitirem o contrário de vez em quando, quebrarão nosso espírito. Em seus momentos mais sofisticados, as religiões aceitam a dívida que bondade, fé e doçura têm com seus opostos.

O cristianismo medieval certamente compreendia essa dicotomia. Durante a maior parte do ano, pregava solenidade, ordem, moderação, camaradagem, sinceridade, amor a Deus e decoro sexual, e, então, na noite do ano-novo, abria as portas da psique coletiva e dava início ao festum fatuorum, a Festa dos Loucos. Durante quatro dias, o mundo ficava de cabeça para baixo: membros do clero jogavam dados em cima do altar, zurravam como burros em vez de dizer “amém”, faziam competições de bebedeira na nave, peidavam como acompanhamento à ave-maria e faziam sermões de galhofa, baseados em paródias do Evangelho (o Evangelho segundo o Traseiro da Galinha, o Evangelho segundo a Unha do Pé de Lucas). Após beber canecas de cerveja, eles seguravam os livros sagrados de ponta-cabeça, faziam orações para vegetais e urinavam em cima das torres dos sinos. “Casavam” burros, amarravam pênis gigantes de lã em suas batinas e tentavam fazer sexo com homens ou mulheres dispostos a tanto [2].

Mas nada disso era considerado apenas uma piada. Era sagrado, uma parodia sacra idealizada para garantir que durante todo o resto do ano as coisas permanecessem em ordem. Em 1445, a Faculdade de Teologia de Paris explicou aos bispos da França que a Festa dos Loucos era uma evento necessário no calendário cristão, “para que a insensatez, que é nossa segunda natureza, e inerente ao homem, possa se dissipar livremente pelo menos uma vez ao ano [3]. Barris de vinho de tempos em tempos estouram se não os abrimos para entrar um pouco de ar. Todos nós, homens, somos barris reunidos inadequadamente, e é por isso que permitimos à tolice em certos dias: para que, no fim, possamos regressar com maior fervor ao serviço de Deus”.

A moral que devemos tirar é que, se desejamos comunidades que funcionem bem, não podemos ser ingênuos quanto à nossa natureza. Precisamos aceitar a profundidade de nossos sentimentos destrutivos, antissociais. Não deveríamos exilar na periferia as festas e libertinagens para serem limpas pela polícia e condenadas por comentaristas. Deveríamos dar ao caos um lugar de destaque pelo menos uma vez por ano, designando ocasiões em que podemos ficar brevemente isentos das duas maiores pressões da vida adulta secular: ser racional e fiel. Deveríamos ter permissão para falar bobagens, amarrar pênis de lã em nossos casacos e cair na noite para festejar e copular aleatória e alegremente com estranhos e, então, retornar na manhã seguinte para nossos parceiros, que também teriam saído fazendo coisas semelhantes, ambos cientes de que não era nada pessoal, que foi a Festa dos Loucos que provocou as ações [4].

Aprendemos com a religião mais que os encantos da comunidade. Aprendemos também que uma boa comunidade aceita o que há em nós que, na verdade, não deseja a comunidade – ou, ao menos, não pode tolerá-la o tempo inteiro em suas formas ordenadas. Se temos nossas festas do amor, também devemos ter nossas festas dos loucos [5].

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[1] O modernismo e o racionalismo nos prometeram uma nova sociedade humanista, profundamente culta, organizada e, sobretudo, racional. Mas esqueceram de guardar um lugar para a loucura e as experiências religiosas, pois acharam que, com o tempo, elas simplesmente seriam deixadas de lado por todos, esquecidas... O pós-modernismo nos trouxe duas polaridades: De um lado, os religiosos que, além de não terem abandonado as experiências religiosas, pelo contrário, se voltaram para elas com ainda mais afinco – vide o crescimento dos movimentos evangélicos carismáticos, e de seitas de Nova Era em geral; De outro lado, os não religiosos, que não apenas jamais abandonaram totalmente a loucura, como têm tido imensa dificuldade em viver como seres “perfeitamente racionais”, e o avanço da depressão e do culto ao sexo exacerbado são apenas os sintomas mais visíveis deste fato.

[2] Como muitos outros ritos do cristianismo, a Festa dos Loucos tem origens bem mais antigas. Em Roma, havia uma festa homônima, onde vários representantes do panteão mitológico romano eram homenageados e adorados, entre eles Júpiter (senhor do Universo e do dia), perpassando tal deferência por Saturno (deus da agricultura) e finalizando-se os festejos na adoração e culto a Baco. Muitas culturas ainda mais antigas, no entanto, tinham a sua versão para a Festa dos Loucos: Na Antiguidade, essa festa era uma prática religiosa relacionada à fertilidade do solo. Era uma espécie de culto agrário em que os foliões comemoravam a boa colheita, o retorno da primavera e a benevolência dos deuses. No contexto da cultura egípcia, os ritos "festivos" constituíam-se, também, de oferendas ao deus Osíris, devido ao recuo das águas do rio Nilo. Os gregos aproveitavam o momento para homenagear Dionísio, deus do vinho e da loucura, e também Momo, o deus da zombaria.

[3] Segundo o padre e filósofo Anselmo Borges, “o homem não é só sapiens. Ele é sapiens e demens (sapiente e demente). Por mais que a sociedade tente ‘normalizar’ comportamentos, haverá sempre explosões de alegria, excessos, desmesuras e loucuras”.

[4] Antes colocar “na conta” da Festa dos Loucos nossos momentos anuais de afloramento da loucura “guardada em caixas do inconsciente”, do que deixá-la lá, trancada, causando sabe lá quais danos psíquicos. Claro que, existem outras formas menos “festivas” de lidar com essa loucura, mas isso cabe aos poucos sábios e místicos que aprenderam a lidar com ela, e dificilmente aqueles que foram educados para ser “racionais 100% do tempo”. Antes deixar essa loucura aflorar em uma festa de alegria e paz, ainda que regada a uma boa dose de sexo desenfreado, do que deixá-la se transformar em amargura, angústia, violência, preconceito, moralismo exacerbado e, finalmente, em puritanismo (o grande medo de que, em algum lugar, alguém possa simplesmente estar vivendo a vida, feliz). Ou, em outras palavras: faça amor, não faça guerra – nem que seja apenas uma vez ao ano.

[5] É claro que, a essa altura você já deve ter percebido, a Festa dos Loucos nada mais é, nos dias atuais, que o Carnaval. Ela sobreviveu, portanto, as civilizações e sociedades, desde a Antiguidade, pois talvez seja mesmo algo intrínseco ao ser humano.
Ainda se discute o significado do termo “Carnaval”: Para alguns, seria carrum navale (carro naval). Nas Saturnais, em Roma, um carro em forma de navio abria caminho por entre a multidão, que usava máscaras e se divertia. Já antes, na Grécia, se realizavam as célebres procissões dionisíacas, nas quais a imagem de Dioniso era transportada em navios com rodas, simbolizando que o deus tinha chegado a Atenas pelo mar. O significado mais aceito, entretanto, é carne vale: "Viva a carne!", enquanto "adeus à carne", na medida em que, antes da entrada no período quaresmal de 40 dias com jejuns, abstinência e sacrifícios, se festeja exaltadamente. Daí que o Carnaval esteja mais ligado à tradição de países católicos e que continuem expressões como "Domingo Gordo" e "Mardi Gras" (Terça-Feira Gorda).
Viva, enfim, o Carnaval, da melhor maneira que conseguir, como uma festa sagrada da vida e da loucura passageira, para que, no restante do ano, consiga deixar sua loucura lá, “domesticada”, amigável, à espera da próxima Festa. Para que a loucura, nalgum dia, não assuma o controle: “Você me deixou escondida por muito tempo, agora é a minha vez, e não terá mais volta!”

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Crédito da foto: Scott Stulberg/Corbis

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27.12.11

Ateísmo 2.0: um elogio a religião

Em "Religião para ateus", um livro provocativo (e muito corajoso), o filósofo suiço Alain de Botton, que se declara ateu, defende que à sociedade secular têm muito o quê aprender com os aspectos positivos das grandes instituições religiosas. Aspectos esses que podem muito bem sobreviver mesmo quando Deus é deixado de lado. Nesta entrevista concedida ao blog do G1, Máquina de Escrever, de Luciano Trigo, Alain nos traz um panorama geral das ideias que defende no livro, e conceitua o "ateísmo 2.0":

- Você parece escrever em defesa de uma religião secular. Qual seria o sentido da fé e da religião, sem Deus?

[Alain de Botton] Minha proposta não é inaugurar uma nova religião, sem Deus. Esta seria uma idéia ousada e mesmo bastante louca. Em vez disso, o que sugiro é que os ateus deveriam aprender a roubar alguns elementos das religiões existentes e integrá-los ao mundo moderno. No meu livro, eu argumento que acreditar em Deus é algo implausível hoje e, para mim e muitas outras pessoas, algo simplesmente impossível.  Ao mesmo tempo, eu admito que, quando se elimina a fé, abre-se espaço para o surgimento de alguns perigos. Eles não vão necessariamente acontecer, mas estão lá, e precisamos ter consciência deles.

Em primeiro lugar, existe o risco do individualismo excessivo, de colocarmos o ser humano no centro de todas as coisas. Segundo, existe o risco do perfeccionismo tecnológico, de acreditarmos que a ciência e a tecnologia podem oferecer soluções para todos os problemas humanos, e que é apenas questão de tempo os cientistas resolverem todos os males da condição humana. Terceiro, sem Deus é mais fácil perdermos a perspectiva de longo prazo, e enxergarmos o momento presente como a única coisa que importa, esquecendo a efemeridade do presente e deixando de reconhecer, de uma forma positiva, a natureza minúscula de nossas conquistas. Por fim, sem Deus existe o risco de desprezarmos a importância da solidariedade e de um comportamento ético.

Mas é importante sublinhar que é perfeitamente possível não acreditar em nada e ainda assim dar valor a todas essas lições vitais, da mesma forma que alguém pode ter uma profunda fé e ao mesmo tempo ser um monstro. Só estou tentando chamar a atenção para algumas coisas que podem se perder quando descartamos Deus de uma forma muito brusca. Com certeza podemos descartar Deus, mas podemos fazer isso com mais cuidado e reflexão, e mesmo com alguma nostalgia.

- Você começa o livro afirmando que os aspectos sobrenaturais das religiões são inteiramente falsos. Você não teme perder leitores, fazendo uma afirmação tão categórica?

[AB] Não, eu acho que a maioria das pessoas religiosas que lerem meu livro não ficará chocada ao se depararem com um ateu. Na verdade, elas podem até sentir curiosidade para ler um livro escrito por alguém que diz duas coisas que normalmente são consideradas incompatíveis: 1) Eu não tenho fé. 2) Eu tenho interesse na religião.

- Você concorda que a fé pode ter um papel terapêutico, ou que a religiosidade pode contribuir para um convívio mais pacífico e ético entre as pessoas?

[AB] Minha tese é que não é o elemento da fé presente na religião que traz paz para as pessoas, ou as leva a ter uma conduta ética. Ninguém precisa ter fé para entender o dever de não matar, ou o valor da gentileza. Isso é produto do trabalho da razão e da consciência, é algo perfeitamente possível sem a fé. É claro, por outro lado, que quando o homem que abandona a religião se esquece de ser bom, isso vira um problema. Em teoria, todos sabemos que devemos praticar o bem. O problema é que, na prática, isso é esquecido. E é esquecido porque o mundo moderno e secular acha que basta falar as coisas uma vez – seja bom, seja caridoso com os pobres etc. Por sua vez, todas as religiões fazem o oposto: elas insistem em nos mandar lembretes diariamente, ou mesmo mais de uma vez por dia, para façamos as coisas certas.

- Como você definiria o “Ateísmo 2.0”?

[AB] O Ateísmo 1.0 tinha a ver com rejeição. Foi um movimento liderado por Christopher Hitchens e Richard Dawkins e se baseava numa hostilidade profunda, e mesmo numa agressividade em relação à religião. O Ateísmo 2.0 também rejeita Deus, mas é um movimento mais interessante, por enfatizar que podemos aprender com as religiões, ao invés de simplesmente atacá-las. É uma forma mais confiante e curiosa de ateísmo, uma forma que tem a coragem de se envolver e mesmo de simpatizar com o campo inimigo.

Eu escrevo para aqueles leitores que pensam ‘Eu realmente não consigo acreditar em nada sobrenatural, o lado sobrenatural das religiões não faz sentido para mim, MAS ao mesmo tempo eu adoro vários elementos da religião: o ritual a arquitetura, a conexão com o passado… Por que as pessoas devem ser obrigadas a fazer uma escolha tão brutal?  Isto é, por que é preciso acreditar em toda sorte de coisas implausíveis para poder apreciar a arquitetura etc? Por que não acreditar em nada sobrenatural implica viver em um mundo dominado pela CNN? As alternativas não devem ser tão radicais.

- Como você avalia o recente debate sobre os chamados “novos ateus”, que opuseram Terry Eagleton a Christopher Hitchens e Richard Dawkins, que fizeram ataques pesados à religião?

[AB] Eu sou ateu, mas um ateu gentil. Não sinto necessidade de debochar daqueles que têm fé. Por isso realmente discordo do tom duro com que alguns ateus abordem a religião, como se ela fosse uma fábula suja. Respeito profundamente a religião, embora não acredite em nenhum de seus elementos sobrenaturais. Portanto, minha posição talvez seja incomum: eu sou um ímpio que respeita a fé.

- Ao resenhar o livro “A questão de Deus”, de Karen Armstrong, você parecia concordar que “nós somos limitados demais para entender Deus”, porque que a nossa natureza é efêmera e cheia de falhas. Seu pensamento mudou?

[AB] O ponto de partida da religião é que nós somos crianças e precisamos de um guia, de orientação. O mundo secular frequentemente se sente ofendido com isso, porque nesse mundo nós somos adultos e maduros, daí o desprezo por qualquer tipo idéia didática de orientação, de educação moral. Mas é claro que nós somos mesmo crianças, crianças grandes que precisam de orientação e de lembretes sobre como viver. O moderno sistema educacional se nega a oferecer isso. Somos tratados como se fôssemos totalmente racionais, razoáveis e com tudo sob controle. Na verdade somos seres muito mais angustiados e desesperados do que o sistema educacional moderno admite reconhecer. Quase todos nós vivemos à beira de um estado de pânico e terror boa parte do tempo. As religiões entendem isso. Então precisamos desenvolver uma consciência similar dentro das estruturas seculares.

- Você já disse que se envolveu com o tema da religião por causa de uma “crise de fé” – não por ter deixado de acreditar em Deus, mas porque, mesmo sem acreditar, você amava tanto a música de Bach. Para apreciar verdadeiramente a arte e a música de cunho religioso, você não acha que é preciso acreditar? Os descrentes não perderiam alguma coisa importante nessa experiência artística?

[AB] Existe uma idéia moderna de que nós encontramos na arte um substituto para a religião. Por isso muitas pessoas dizem que os museus são as igrejas de hoje. É uma imagem interessante, mas não é verdadeira. Não é verdadeira, principalmente, por causa da forma como os museus apresentam a arte do passado e do presente: eles evitam que se estabeleça um envolvimento emocional com as obras em exsposição. Os museus encorajam o interesse acadêmico, mas dificultam qualquer contato terapêutico. No meu livro eu recomendo que, mesmo que uma pessoa não tenha fé, ela pode usar a arte, mesmo a arte secular, como uma fonte de conforto e identificação, como orientação edificante. É isso o que as religiões fazem com a arte.

- Dostoievski escreveu que, se Deus não existe, tudo é permitido. Jean-Paul Sartre, ao contrário, sugeriu que a ausência de Deus torna as coisas mais difíceis, porque o homem carrega toda a responsabilidade por seus atos…

[AB] Boa parte do moderno pensamento moral foi marcada pela ideia de que um colapso na fé necessariamente provocou um dano irreparável na nossa capacidade de construir um padrão ético convincente em nossa conduta. Mas esse argumento, embora ateísta na aparência, reconhece uma dívida com a mentalidade religiosa, já que somente se acreditássemos mos em alguma medida que Deus existe haveria fundamentos para a moral, ou seja, esses fundamentos seriam sobrenaturais na sua essência. É uma tese que sugere que o reconhecimento da não-existência de Deus é capaz de abalar os nossos princípios morais. Contudo, se afirmarmos desde o começo que Deus é uma invenção, então essa tese se transforma numa tautologia: por que nos daríamos ao trabalho de sentir o peso da dúvida ética se sabemos que todas as normas atribuídas a seres sobrenaturais são no fundo apenas o produto do trabalho de nossos ancestrais demasiado humanos?

As origens da ética religiosa estão na necessidade prática das nossas comunidades ancestrais de controlar os impulsos para a violência de seus membros, induzindo neles hábitos e comportamentos que levassem à harmonia e ao perdão. Os códigos religiosos começaram como preceitos preventivos, que foram então projetados no céu e refletiram de volta na Terra, em formas desencarnadas e majestáticas. Os deveres de sermos solidários ou pacientes nasceram da consciência de que estas são qualidades que protegem a sociedade da fragmentação e da autodestruição. Essas regras eram tão vitais para a nossa sobrevivência que por milhares de anos não tivemos a coragem de admitir que fomos nós mesmos quem as formulamos, porque isso as deixaria mais vulneráveis ao escrutínio crítico e à manipulação sem reverência. Nós tivemos que fingir que a moralidade vem do céu, de forma a protégé-la de nossas próprias imperfeições e fraquezas.

Mas se hoje podemos abrir mão dessa espirtualização das leis éticas, não temos motivo algum para abandonarmos inteiramente essas leis. Continuamos precisando de exortações para sermos solidários e justos, mesmo se não acreditamos que existe um Deus que deseja que nós sejamos assim. Para andar na linha, não precisamos mais da ameaça do Inferno ou da promessa do Paraíso. Precisamos apenas ser constantemente lembrados de que somos nós mesmos – ou, ao menos, aqueles mais maduros e racionais entre nós. Que geralmente aparecem nos momentos de nossas crises e angústias  – que queremos lever o tipo de vida que, no passado, nos era recomendada ou imposta por seres sobrenaturais imaginários. Uma evolução adequada da moralidade, da superstição para a razão, significa que devemos nos reconhecer como os criadores de nossos próprios mandamentos morais.

- O comunismo soviético não foi uma tentativa de criar uma religião sem Deus, na medida em que usava a propaganda para controlar as pessoas? E, o que dizer da religião do livre mercado? Será que não existiram sempre religiões sem Deus, e que essas experiências não dão certo justamente por faltar o elemento espiritual?

[AB] Nós nos assustamos com muita facilidade. Frequentemente, quando alguém propõe uma ideia válida nessa area, as pessoas dizem: e Hitler e Stálin? Mas a alternativa não é essa. Podemos ter uma moralidade pública sem cair no fascismo, podemos até aceitar algum nível de censura – por exemplo, no caso da pornografia – sem cairmos numa ditadura, e podemos ter uma grande arquitetura cívica, sem que ela seja promovida por governantes em busca da própria glória. É certo que no século 20 houve tendências assustadoras, mas não devemos por isso ser pouco ambisiosos em relação àquilo que podemos fazer. Nem precisamos nos entregar ao capitalismo de livre Mercado sob a liderança espiritual da televisão a cabo.

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Crédito da foto: Divulgação (Alain de Botton)

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25.11.11

Educação secular, parte 2

« continuando da parte 1

Texto de Alain de Botton em “Religião para ateus” (Ed. Intrínseca), tradução de Vitor Paolozzi – Trechos das pgs. 101 a 104, e 134. Os comentários ao final são meus.

Na esfera secular, podemos ler os livros certos, porém frequentemente deixamos de fazer perguntas diretas a partir deles, declinando de propor questionamentos vulgares e neorreligiosos porque temos vergonha de admitir a verdadeira natureza de nossas necessidades interiores. Estamos inevitavelmente apaixonados pela ambiguidade, sem espírito crítico contra a doutrina modernista de que a grande arte não deveria ter conteúdo moral ou desejo de mudar seu público [1]. Nossa resistência a uma metodologia parabólica vem de um confuso desprazer por utilidade, didatismo e simplicidade, e de uma inquestionável suposição de que qualquer coisa que uma criança possa entender seja infantil por natureza [2].

No entanto, o cristianismo sustenta que, apesar das aparências externas, partes importantes de nós mantêm as estruturas mais básicas da primeira infância. Por conseguinte, da mesma maneira que as crianças, precisamos de assistência. Devemos ser alimentados, de modo lento e cuidadoso, com conhecimento, assim como a comida é cortada em pedacinhos para as crianças conseguirem mastigar. Qualquer coisa além de umas poucas lições em um dia nos esgotará indevidamente.

[...] As técnicas que a academia tanto teme – a ênfase na conexão entre ideias abstratas e nossa vida, a lúcida interpretação de textos, a preferência por sumários em detrimento de totalidades – sempre foram os métodos das religiões, que precisavam enfrentar, séculos antes da invenção da televisão, o desafio de apresentar ideias vívidas e pertinentes a plateias impacientes e distraídas. Elas sempre souberam que o maior perigo não era a simplificação excessiva de conceitos, mas a erosão do interesse e do apoio devido à incompreensão e à apatia. Reconheceram que a clareza preserva as ideias, em vez de as enfraquecer, pois cria uma base sobre a qual o trabalho intelectual de uma elite pode mais tarde se apoiar.

O cristianismo tinha confiança em que seus preceitos eram robustos o bastante para ser compreendidos em diversos níveis, que podiam ser apresentados na forma de xilogravuras toscas para o homem simples da paróquia ou discutidos em latim por teólogos na Universidade de Bolonha, e que cada repetição endossaria e reforçaria as outras [3].

No prefácio de uma compilação dos seus sermões, John Wesley explicou e defendeu sua adesão à simplicidade: “Planejo verdades simples para pessoas simples: portanto (...) abstenho-me de todas as especulações belas e filosóficas; de todas as argumentações complicadas e intrincadas; e, tanto quanto possível, até mesmo da exibição de conhecimento. Meu plano é (...) esquecer tudo o que já li na minha vida.” [4]

[...] Os maiores pregadores cristãos foram vulgares no melhor sentido. Ao mesmo tempo em que não abdicavam das suas aspirações à complexidade ou às percepções, desejavam ajudar aqueles que os ouviam. Em contraste, construímos um mundo intelectual cujas instituições mais celebradas raras vezes consentem em perguntar, quanto mais em responder, sobre as questões mais sérias da alma.

Para lidar com as incoerências da situação, poderíamos reformar nossas universidades e eliminar campos como história e literatura, que, no fim das contas, são categorias superficiais que, ainda que cubram um material valioso, em si mesmas não percorrem os temas que mais atormentam e atraem nossa alma [5].

As universidades redesenhadas do futuro recorreriam ao mesmo catálogo de cultura tratado por suas equivalentes tradicionais, promovendo o estudo de romances, histórias, peças e pinturas, mas ensinariam esse material visando a iluminar a vida dos estudantes, em vez de apenas estimulá-los a atingir objetivos acadêmicos. Anna Karenina e Madame Bovary seriam, desse modo, alocados em um curso sobre as tensões do casamento, e não em um outro, focado em tendências narrativas na ficção do séculos XIX, da mesma maneira que as recomendações de Epicuro e Sêneca apareceriam no currículo de um curso sobre morrer, e não em uma pesquisa acerca da filosofia helenística.

Seria exigido que os departamentos confrontassem diretamente as áreas mais problemáticas de nossa vida. Ideias de assistência e transformação, que hoje pairam de maneira fantasmagórica sobre discursos em cerimônias de formatura [6], ganhariam forma e seriam explorados em instituições locais com a mesma abertura com que são nas igrejas. Haveria aulas sobre, entre outros tópicos, estar sozinho, reavaliar o trabalho, melhoras as relações com as crianças, reconectar-se à natureza e enfrentar doenças. Uma universidade interessada nas verdadeiras responsabilidades dos artefatos culturais dentro de uma era secular estabeleceria um Departamento de Relacionamentos, um Instituto de Morrer e um Centro para o Autoconhecimento [7].

[...] Muitos dos métodos das religiões, embora distantes das concepções contemporâneas de educação, deveriam ser considerados essenciais a qualquer plano para transmitir ideias, sejam elas teológicas ou seculares, de modo mais eficaz a nossa mente porosa. Essas técnicas merecem ser estudadas e adotadas, a fim de que tenhamos, no tempo que nos resta, uma chance de cometer pelo menos um ou dois erros a menos que a geração anterior.

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[1] Paradoxalmente, conforme Tolstói já dizia, “todos pensam em mudar a humanidade, mas quão poucos pensam em mudar a si próprios”. E, além de não pensarem em mudar a si próprios, os “modernistas” ainda condenam quem sugira qualquer mudança “aos outros”. Entretanto, continuam esperançosos em “mudar a humanidade”, sabe-se lá como ou quando.

[2] Este é sem dúvida o livro mais original de Alain; Neste parágrafo encontram-se resumidos tantos conceitos que merecem uma avaliação mais cuidadosa, principalmente no trecho final, que eu recomendaria que o lessem e relessem...

[3] Aqui Alain está sendo otimista demais com a questão da “interpretação em vários níveis”. Se com isso quer dizer que tal evangelização em vários níveis ocasionou apenas o crescimento da Igreja, tem até razão. Mas se quer dizer que a essência dos textos bíblicos foi compreendida corretamente – ou seja, como metáforas em vários níveis de interpretação – pela maioria dos ditos cristãos, obviamente está equivocado.

[4] O ateu secular intelectual pode estar se indagando se isso não seria “infantilizar o conhecimento” (no contexto do primeiro parágrafo), mas aí é que se engana – simplificar não é “infantilizar”, e muitas vezes nossa educação é falha em supor que todos estamos perfeitamente familiarizados com, por exemplo, questões científicas. Em sua lendária série de TV Cosmos, Carl Sagan nos deu um belo exemplo de simplificação da ciência, da filosofia, e até da mitologia e religião, sem, no entanto, “infantilizar” nada: a isso também chamamos divulgação científica.

[5] Não se assustem: ele está propondo que eliminemos as aulas de história e literatura, e passemos a estudá-las de verdade: através de algo mais próximo dos sermões, das questões da alma.

[6] Ou, nem tão fantasmagórica assim, neste discurso de Steve Jobs. Aliás, Jobs, que nunca se graduou, provavelmente seria um assíduo estudante em um Curso de Caligrafia e Design Aplicado a Existência.

[7] Alain está aqui indo muito a frente de nosso tempo. Provavelmente morreremos sem ver a Academia aderindo a sermões, mas me parece inevitável que isso venha a ocorrer lá na frente, após o fim de todas as primaveras árabes e capitalistas... Nesse meio tempo, entretanto, talvez fosse uma boa reflexão para as pequenas igrejas, centros espíritas e terreiros (etc.): não poderíamos ajustar nossa linguagem, de modo a não necessariamente exigir que alguém creia em Deus, ou espíritos, para que possa assistir a nossas palestras e, por que não, participar efetivamente de nossas atividades de caridade? Humanos, todos nós somos humanos!

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Crédito da foto: Divulgação (Ed. Intrínseca - Noite de palestra e autógrafos do autor, na Livraria Cultura do Shop. Fashion Mall, no Rio de Janeiro, em 24/11/11)

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24.11.11

Educação secular, parte 1

Texto de Alain de Botton em “Religião para ateus” (Ed. Intrínseca), tradução de Vitor Paolozzi – Trechos das pgs. 95 a 100. A introdução e os comentários ao final são meus.

Introdução
Neste livro provocativo (e muito corajoso), Alain, que se declara ateu, defende que à sociedade secular têm muito o quê aprender com os aspectos positivos das grandes instituições religiosas. Aspectos esses que podem muito bem sobreviver mesmo quando Deus é deixado de lado. Neste trecho em específico ele faz uma comparação entre a atual educação secular, e a educação cristã...

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Temos familiaridade suficiente com as principais categorias das humanidades, da maneira como são entendidas nas universidades seculares – história, antropologia, literatura e filosofia –, assim como com os tipos de perguntas que aparecem nos exames: Quem foram os carolíngios? Onde surgiu a fenomenologia? O que Emerson queria? Sabemos também que esse esquema deixa os aspectos emocionais de nossas personalidades para se desenvolverem espontaneamente, ou no mínimo de maneira privada, talvez quando estivermos como nossas famílias ou em solitárias caminhadas pelo campo [1].

Em contraste, o cristianismo se ocupa desde o início com nosso lado interior e confuso, declarando que nenhum de nós nasce sabendo como viver; somos, por natureza, frágeis e caprichosos, sem empatia e atormentados por fantasias de onipotência, estando a uma distância enorme da capacidade de reunir até mesmo uma fração do bom senso e da calma que a educação secular toma como ponto de partida para sua pedagogia [2].

O cristianismo está focado em ajudar uma parte de nós que a linguagem secular tem dificuldade até mesmo em nomear, que não é exatamente a inteligência ou a emoção, nem o caráter ou a personalidade, mas outra entidade, ainda mais abstrata, ligada a todas essas de maneira imprecisa e diferenciada delas por uma dimensão ética e transcendental adicional – e à qual podemos nos referir, seguindo a terminologia cristã, como alma. Tem sido a tarefa essencial da máquina pedagógica cristã cultivar, tranquilizar, confortar e guiar nossas almas.

Ao longo da história, o cristianismo se dedicou a longos debates acerca da natureza da alma, especulando como poderia ser sua aparência, onde se localizaria e a melhor forma de educá-la. Na sua origem, os teólogos acreditavam que ela se assemelhava a um bebê em miniatura inserido por Deus na boca de uma criança no momento do nascimento. Na outra extremidade da vida do indivíduo, a hora da morte, o bebê-alma seria, então, expelido pela boca. [...] Uma boa alma era aquela que conseguira encontrar respostas apropriadas para as grandes questões e tensões da existência, uma alma marcada por virtudes pias, como fé, esperança, caridade e amor.

Por mais que possamos discordar da visão do cristianismo com relação àquilo de que nossa alma necessita, é difícil invalidar a provocativa tese subjacente, que não parece ser menos relevante no domínio secular que no religioso – a tese de que temos em nós um núcleo precioso, infantil e vulnerável, que deveríamos nutrir e cuidar ao longo de sua turbulenta jornada pela vida [3].

Por seus próprios padrões, o cristianismo, portanto, não tem escolha senão colocar sua ênfase educacional em questões explícitas: Como podemos viver juntos? Como toleramos os defeitos dos outros? Como aceitar nossas próprias limitações e amainar a raiva? Um grau de didatismo zeloso é mais uma exigência que um insulto. A diferença entre a educação cristã e a secular se revela com particular clareza nos respectivos métodos característicos de instrução: a educação secular fornece aulas, o cristianismo, sermões.

Em termos de intenção, poderíamos dizer que uma se preocupa em transmitir informação, a outra, em mudar nossa vida. Pela própria natureza, os sermões assumem que seus ouvintes estão perdidos, de alguma maneira importante. Os títulos dos sermões de um dos mais famosos pregadores da Inglaterra do século XVIII, John Wesley, já mostram o cristianismo procurando oferecer conselhos práticos a respeito de uma série de desafios comuns da alma: “Sobre seu gentil”, “Sobre manter-se obediente aos pais”, “Sobre visitar os enfermos”, “Sobre a cautela com a intolerância”. Por mais que seja improvável que os sermões de Wesley seduzam ateus por meio de seus conteúdos, eles tiveram sucesso, assim como um bom número de textos cristãos, em categorizar o conhecimento sob títulos úteis.

Ao passo que, a princípio, Matthew Arnold, John Stuart Mill e outros tinham a esperança de que as universidades pudessem fornecer sermões seculares que nos informassem como evitar a intolerância e como encontrar coisas valiosas a dizer ao visitarmos pessoas doentes, esses centros de aprendizado nunca ofereceram o tipo de orientação no qual as igrejas se focaram, a partir de uma crença de que a academia não deveria fazer quaisquer associações entre obras culturais e sofrimentos individuais [4].

Seria uma afronta chocante à etiqueta universitária perguntar o que um livro de literatura [não religiosa] poderia nos ensinar de útil sobre o amor, ou sugerir que os romances de Henry James possam ser lidos como parábolas sobre se manter honesto em um escorregadio mundo mercantil. Contudo, a busca por parábolas é exatamente o que se encontra no núcleo da abordagem dos textos cristãos.

O próprio Wesley era um homem profundamente erudito [...] Ele possuía um grande conhecimento textual de Levítico e Mateus, Coríntios e Lucas, mas citava versos desses apenas quando podiam ser integrados em uma estrutura parabólica e usados para aliviar as tribulações de seus ouvintes. Assim como todos os pregadores cristãos, ele via a cultura principalmente como um instrumento, observando quais regras gerais de conduta cada passagem bíblica poderia exemplificar e promover.

» Na continuação, o Dpto. de Relacionamentos, o Instituto de Morrer e o Centro para o Autoconhecimento :)

***

[1] Em entrevista num programa brasileiro, o médico Patch Adams (que é ateu), diz que costuma perguntar as pessoas que encontra: “Qual é sua estratégia de amor para a vida?”. Dentre jornalistas, médicos, cientistas, etc., normalmente ninguém sabe responder...

[2] É que não somos exatamente máquinas que se auto educam pelo mero registro e computação de informações sobre o mundo. No fundo, todos sabemos que somos seres que interpretam informações e têm sentimentos específicos sobre o mundo, que precisam ser encarados, expostos, analisados, “apaziguados”, etc. Embora qualquer educador secular provavelmente já saiba disso, ele raramente saberá como ensinar nesse formato. E, assim então, tudo permanece como está – até que venha a primavera.

[3] Você pode estar agora se perguntando se de Botton é realmente ateu. Sem dúvida: ele chega a dizer que cresceu com a certeza de que Deus não existia. A questão é que de Botton é um grande filósofo e, talvez mesmo por conta disso, um ateu sem preconceitos com as coisas “irracionais”.

[4] Arnold e Mill foram defensores dos objetivos da educação após o Iluminismo. Segundo Arnold a universidade era “um lar para o que melhor foi dito e pensado no mundo”. Para Mill, “o propósito das universidades não é produzir advogados, médicos ou engenheiros competentes. É criar seres humanos capazes e cultos”. E, voltando a Arnold, uma educação cultural deveria inspirar em nós “um amor pelo vizinho, um desejo de acabar com a confusão humana e diminuir sua miséria”. Infelizmente, até hoje a educação secular está algo distante desses objetivos essenciais.

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Crédito da imagem: Hulton-Deutsch Collection/Corbis

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1.6.10

Onde está o seu deus?

No início do século II d.C., no mercado principal de Enoanda, cidade de 10 mil habitantes no sudoeste da Ásia Menor, foi erigida uma enorme muralha de oitenta metros de largura e quase quatro metros de altura, com inscrições baseadas na filosofia de Epicuro, e cuja finalidade era atrair a atenção dos compradores. Era uma espécie de alerta:

“Comidas e bebidas requintadas... de modo algum libertam do mal ou proporcionam a saúde da carne. Deve-se atribuir à riqueza excessiva o mesmo grau de inutilidade que representa acrescentar água a um recipiente que já estava prestes a transbordar. Os verdadeiros valores não são gerados por teatros e termas, perfumes e essências... mas pela ciência natural.”

O muro foi pago por Diógenes, um dos homens mais ricos de Enoanda, que desejava, 4 séculos após Epicuro e seus amigos terem fundado o Jardim de Atenas, compartilhar os segredos da felicidade que ele havia descoberto na filosofia de Epicuro.

O antigo filósofo cuja maior parte das obras se perdeu foi bem mais incompreendido – ou analisado de forma superficial – do que compreendido. Dizem que tudo que ensinava era a busca pelo prazer (hedonismo) e o materialismo (atomismo), mas é preciso desconhecê-lo profundamente para tais tipos de hiper-simplificações de seu pensamento.

Sobre a busca do prazer, Epicuro em realidade afirmava que “o homem que alega não estar ainda preparado para a filosofia ou afirma que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou assemelha-se ao que diz que é jovem ou velho demais para ser feliz.” Longe de ensinar uma busca desenfreada por prazeres mundanos, ele defendia que uma vida equilibrada e na companhia de boas amizades era todo o necessário para a felicidade – neste caso, pão e água eram suficientes... “De todas as coisas que nos oferecem a sabedoria para a felicidade de toda a vida, a maior é a aquisição da amizade... alimentar-se sem a companhia de um amigo é o mesmo que viver como um leão ou um lobo.”

Poucos foram aqueles que, ao longo da história, enxergaram o quanto a filosofia de Epicuro sempre se fez necessária para nos afastar das tentações e desejos inúteis da vida em sociedade. Ele separava os desejos da seguinte forma:

O que é essencial para a felicidade

Natural e necessário Natural mas desnecessário Nem natural nem necessário
Amigos, Liberdade, Reflexão, Casa, Comida, Roupas Palacete, Terma privativa, Banquetes, Empregados, Peixe, Carne Fama, Poder, Status

Dizem também que Epicuro era ateu. Mas de fato tudo o que defendia era que os deuses viviam em uma realidade muito superior a mundana, de modo que provavelmente não estariam preocupados com nossos afazeres, e nem era necessário que nos afligíssemos com eles ou que preparássemos rituais e oferendas para aplacar sua ira ou barganhar por favores sobrenaturais.

Para Epicuro, isso tudo era fonte de angústias desnecessárias... Porque se preocupar com política, com os deuses, com o acúmulo de riquezas ou com a morte, se o prazer da vida está exatamente em compartilhá-la com os amigos, em não viver com mais do que o necessário, e na constante reflexão sobre a natureza infinita do Cosmos?

Em sua recusa em se preocupar com um panteão de deuses com seus próprios afazeres e em sua exaltação da felicidade que advém da vida harmoniosa, em contato constante com os amigos e a natureza, Epicuro era bem mais religioso que a maioria dos eclesiásticos – e bem mais monoteísta que a maioria dos religiosos que dizem seguir somente a um único Deus, mas que ao fim do dia seguem a vários...

Pensemos nos dias atuais, em que a maior religião e o maior deus passam desapercebidos da grande maioria, embora quase todos acabem rezando para ele: o deus do consumo. Seus evangelizadores estão em cada canal de TV paga ou aberta, sua bíblia é ensinada desde as “orientações vocacionais” das escolas aos “discursos sobre a dura realidade da vida e sobre como um bom salário é mais importante do que tudo”... Andando pelas ruas, vemos suas orações expostas em outdoors e páginas de jornal. Ele é tão poderoso que abocanhou até mesmo o tempo – “tempo é dinheiro, eu sou o tempo, eu sou o seu deus!”

Ao contrário do deus de Epicuro, que podia ser encontrado em qualquer grama de jardim, nalgum galho partido ou nos sorrisos dos amigos, este deus é feito sobretudo de coisas sem vida e de desejos desenfreados; muito embora possa parecer “onipresente” em nosso dia a dia – uma roupa de grife, um terno, um celular, um videogame, um carro, um iate... Ele nunca se cansa, e o tempo é a prova:

Porcentagem dos norte-americanos que declararam os seguintes itens como necessários

  1970 2000
Segundo carro 20% 59%
Segunda televisão 3% 45%
Mais de um telefone 2% 78%
Ar-condicionado no carro 11% 65%
Ar-condicionado em casa 22% 70%
Lava-louças 8% 44%

Hoje em dia vivemos correndo, "utilizando" todas as horas do dia. Comendo em fast-foods e tendo relacionamentos no estilo fast – simples, rápidos, indolores, muitas vezes “anestesiados”. Se nos angustiamos com a vida ou se caímos em depressão, oramos também ao grande profeta do deus do consumo – o guardião dos comprimidos em seu manto de tarja preta... Com tudo isso economizamos bastante tempo. Tempo para...?

Não era esse tipo de religião que Epicuro professava. Ele preferia simplesmente ser livre, talvez por reconhecer que perto da imensidão da natureza, suas angústias e desejos eram como poeira e folhas espalhadas pelo vento em seu jardim.

Quaisquer que sejam as diferenças entre as pessoas e seus desejos e angústias, elas não são nada perto das diferenças entre os seres humanos mais poderosos e os grandes desertos, as altas montanhas, geleiras e oceanos, a luz das estrelas. Existem fenômenos naturais tão grandes que tornam as variações entre duas pessoas quaisquer ridiculamente pequenas. Ao passar um tempo em amplos espaços, a consciência de nossa própria insignificância na hierarquia social pode se transformar na consciência reconfortante da insignificância de todos os seres humanos no Cosmos.

Podemos superar o sentimento de que somos insignificantes não nos tornando mais importantes ou desejando fama, poder ou status, mas reconhecendo a insignificância relativa de todos. Nossa preocupação com quem é alguns milímetros mais alto do que nós pode dar lugar a uma reverência a coisas infinitamente maiores que nós, uma força que podemos ser levados a chamar de natureza, vida, infinito, eternidade – ou simplesmente Deus.

Mas, sobretudo, quem mantém os pés no chão florido das amizades duradouras e a mente na imensidão estelar do Cosmos, este não poderá jamais ser seduzido pelas efêmeras promessas dos arautos do deus do consumo, tampouco necessitará recorrer a tratar da angústia com comprimidos (*). Este tem a seu lado o amor ao saber, as reflexões diárias, a liberdade de pensamento: este encara toda angústia e todo desejo por si mesmo, ou talvez com a ajuda de amigos. Seres reais, não imaginários nem inanimados – aí está o deus de Epicuro. Onde está o seu deus?

***

(*) Certas doenças necessitam de medicação, e é excelente dispor da medicina atual para tratá-las. O que não podemos é usar comprimidos como muletas - nesse sentido nossos comprimidos serão nossos deuses, e nós os seus fantoches. Por outro lado, também é necessário "cortar o mal pela raiz": a filosofia nos ajuda a evitar a necessidade de comprimidos, evitando antes a doença.

Leitura recomendada: “As consolações da filosofia” e “Desejo de status” – ambos de autoria de Alain de Botton e publicados no Brasil pela Editora Rocco. As citações de Epicuro e Diógenes foram retiradas do primeiro.

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Crédito das imagens: Bettmann/Corbis (anúncio de cigarros de 1936) [topo], Iplan/amanaimages/Corbis [ao longo].

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12.4.10

Reflexões sobre o mal, parte 2

continuando da parte 1...

Escuridão (substantivo): 1. Ausência de luz; 2. Breu.

Os mestres da escuridão

Era abril de 65 d.C., em uma villa aos arredores de Roma. Um centurião romano havia chegado à casa de um dos grandes filósofos do estoicismo com instruções do imperador: Sêneca deveria dar cabo de sua vida imediatamente. Aos 28 e portador de distúrbios mentais, Nero havia sido informado de que havia uma conspiração para afastá-lo do trono. Fora de si, procurava vingar-se indiscriminadamente. Embora não houvesse provas do envolvimento de Sêneca no conluio e apesar do fato de ele ter sido preceptor de Nero por cinco anos e ter atuado como seu leal ministro durante uma década, Nero o havia sentenciado à morte por medidas acautelatórias. Àquela altura ele já havia promovido o assassinato de seu meio-irmão, de sua mãe e de sua esposa; havia também se livrado de um grande número de senadores e cavaleiros, atirando-os aos crocodilos e leões, e incendiado Roma – Exaltado, comemorou ao vê-la consumida pelas chamas [1].

Ao tomarem conhecimento da ordem de Nero, seus amigos empalideceram e começaram a chorar. Mas Sêneca permaneceu impassível:

“Onde está sua filosofia, perguntou ele, e o que foi feito da decisão de jamais se deixarem abater diante da iminência de qualquer desgraça que, durante tantos anos, todos vêm incentivando uns aos outros a manter? Certamente ninguém ignorava que Nero era cruel – acrescentou – Depois de matar a mãe e o irmão, só lhe restava matar seu conselheiro e preceptor.”

Impassível até o fim, aquele que sempre esteve pronto para a sorte e o revés da Fortuna, despediu-se deste mundo com a tranqüilidade daqueles sábios que estavam em paz com a própria consciência: “Devo minha vida a filosofia” – afirmava, e realmente seguiu-a até o fim.

Eis que há muitos que consideram Nero um dos “mestres da escuridão”, um dos seres mais malévolos que já habitaram o planeta. Mas em que exatamente Nero era mestre? Perseguiu, torturou e matou qualquer um que fosse contra sua opinião, e mesmo aqueles que nunca foram, mas que em sua paranóia achou que fossem... Colocou fogo na própria cidade e tocou alegremente sua lira enquanto ela ardia em chamas... Condenou a morte uma das pessoas mais sábias de sua época, que inclusive foi seu mentor em filosofia durante anos...

Que tipo de “mestre” é esse? Um ser que não aceita frustrações? Que sente-se perseguido aonde quer que vá? Que apesar do imenso poder, apesar de todo seu império, nunca chegou nem perto de conquistar a si mesmo? Ora, isso mais me parece com um bebê mimado, que não aceitava um “não” da realidade (a deusa Fortuna a que Sêneca gostava de se referir)... Mas então, muitos podem afirmar que se tratava apenas de um doente mental.

Passemos adiante então: Século XX... Adolf Hitler, o grande “anticristo” responsável direto pela morte de milhões nas grandes guerras mundiais. Documentos apresentados durante o Julgamento de Nuremberg indicam que, no período em que Adolf Hitler esteve no poder, grupos minoritários considerados indesejados - tais como Testemunhas de Jeová, eslavos, poloneses, ciganos, homossexuais, deficientes físicos e mentais, e judeus - foram perseguidos no que se convencionou chamar de Holocausto. O grande líder carismático do Nazismo, que conseguiu convencer quase toda a Alemanha a acompanhá-lo em uma “marcha de purificação”, na tentativa de fazer uma “seleção natural forçada” que deixasse na face do planeta apenas sua adorada raça ariana.

Onde foi parar aquele jovem que desejava tornar-se um pintor em Viena? De onde vieram tais delírios de grandeza? Tamanha ignorância perante a natureza? Será mesmo que – apesar de todo seu conhecimento oculto – achou mesmo que poderia “bancar o Deus”, o “administrador supremo” das etnias da Terra? Aonde queria chegar ó grande “mestre da escuridão”?

Há quem acredite até os dias atuais que ele foi um grande líder do mal, um digno representante do mítico Satanás em nosso plano físico. Quanta inteligência, quanta força, quanto conhecimento usado para o mal!

Será mesmo? Será que aquele homem de origem humilde (fazia questão de esconder de onde veio), que inicialmente inclinou-se para as artes (de onde nunca deveria ter saído), era mesmo este homem impassível, este “senhor das trevas”?

Os fatos históricos falam por si mesmos: Adolf Hitler cometeu suicídio no seu quartel-general (o Führerbunker), em Berlim, a 30 de abril de 1945, enquanto o exército soviético combatia já as duas tropas que defendiam o Führerbunker (a francesa Charlemagne e a norueguesa Nordland). Segundo testemunhas, Adolf Hitler já teria admitido que havia perdido a guerra desde o dia 22 de abril, e desde já passavam por sua cabeça os pensamentos suicidas.

Um tiro na cabeça. Ó grande “mestre do mal”, é este o seu legado, é esta a sua força e sua determinação? Quando as coisas desandam e a realidade intervém, quando o poder esvai das mãos como óleo, é essa a sua demonstração de coragem? Meu caro artista frustrado, antes tivesse aproveitado sua vida para estudar as cores e o claro-escuro, a música e a filosofia, até mesmo na literatura oculta teria tido um melhor proveito... Ó grande conquistador, tudo o que conquistou foram sangue e ossos, que todos que o amaram seguiram uma ilusão – uma “nuvem de vontade” que se desfez na primeira brisa da Fortuna. Teria sido melhor conquistar a si próprio, e ter conquistado algo de real nessa existência!

Eis que todos esses “mestres da escuridão” apenas nos demonstraram o quão ignorantes, fracos e mimados, foram em suas patéticas existências. Afinal quem é mais forte, àquele que açoita por se achar no direito de julgar quem é bom e quem é mal, ou aquele que, mesmo em sendo açoitado, mesmo diante da morte, permanece impassível em sua confiança em si mesmo e na grandeza de seus ideais? – sejam eles vindos de sua religião ou filosofia ou ciência, ou de qualquer combinação entre elas...

O grande Sêneca tinha um conselho para aqueles que, em tendo seus desejos diminuídos ou extinguidos pela realidade, se tornavam raivosos e descontrolados – parecendo antes com animais do que com “senhores das trevas”:

“Não existe caminho mais rápido para a insanidade. Muitas pessoas irritadas atraem a morte para seus filhos, a pobreza para si e a ruína para seus lares, negando que estão encolerizadas, da mesma forma que os loucos negam a própria insanidade. Inimigos de seus amigos mais chegados... indiferentes às leis... agem pela força... O maior de todos os males apodera-se deles, o mal que supera todos os vícios.”

Raiva e irracionalidade, delírios de grandeza, ignorância plena das leis naturais que ditam em qualquer pedra e qualquer galho partido, e em cada uma das estrelas do céu: estamos todos conectados.

Oh! O mal, o “grande mal” – é só a ilusão dos fracos, o beco sem saída dos desesperados... Desistam dessas promessas feitas pelo mais medíocre dos mitos, venham para o outro lado, venham para onde há música! Há que se conquistar a si mesmo, esta sim é a verdadeira força [2], a verdadeira virtude:

Pois que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? (Cristianismo)

Melhor é o que demora a irar-se do que o poderoso; e o que controla o seu ânimo do que aquele que toma uma cidade. (Judaísmo)

O maior guerreiro não é aquele que vence em batalhas milhares de homens, mas aquele que vence a si mesmo. (Budismo)

A mais excelente jihad é a da conquista do ego. (Islamismo)

Aquele que vence os outros é forte; aquele que vence a si mesmo é poderoso. (Taoísmo) [3]


A seguir, será que nossa consciência conhece nosso mal?...

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[1] O primeiro parágrafo foi retirado do texto de Alain de Botton em "As consolações da filosofia" (editora Rocco). Também utilizei ao longo do artigo algumas citações de Sêneca e Tácito (interpretado por David) conforme constam no mesmo livro. A tradução é de Eneida Santos.

[2] Uns acreditam que toda força está somente na ação, mas outros compreendem quanta força pode haver na inação. Gandhi nos ensinou a reconquistar um império utilizando outra espécie de força, infelizmente ainda desconhecida da maioria de nós.

[3] Citações de trechos das respectivas doutrinas religiosas de acordo com o livro “Unidade”, de Jeffrey Moses (editora Sextante). Obviamente que o conceito de cada palavra deve ser analisado dentro do contexto, o “poderoso” do Judaísmo não é o mesmo do Taoísmo.

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Crédito da imagem: Wilhelm von Gloeden/Alinari Archives/CORBIS (homem vestido como o imperador Nero)

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24.2.10

O cão e a carroça

Texto de Alain de Botton em "As consolações da filosofia" (editora Rocco) com citações de filósofos estóicos. Tradução de Eneida Santos. As notas ao final são minhas.

Os estóicos lançavam mão de uma imagem para evocar nossa condição de criaturas fortuitamente capazes de efetuar mudanças, apesar de sujeitas às necessidades extremas. Somos como cães amarrados a uma carroça que, a qualquer instante, pode se colocar em movimento. O comprimento de nossa trela é suficiente para nos permitir uma certa liberdade de movimento, mas não nos concede a autonomia necessária para vagarmos a nosso bel-prazer.

A metáfora foi formulada pelos filósofos estóicos Zenão de Cício (fundador da escola estóica) e Crisipo e relatada pelo sacerdote romano Hipólito:

“Quando um cão atrelado a uma carroça quiser acompanhá-la, ele é puxado por ela e avança, fazendo com que seu gesto espontâneo coincida com a necessidade. Mas se o cão decidir não se mexer, o movimento da carroça o obrigará a segui-la, de qualquer maneira. O mesmo acontece com os homens: mesmo que não queiram, eles são forçados a obedecer o que o destino lhes reservou.”

Naturalmente, um cão é livre para ir onde bem entender. Mas, como sugere a metáfora de Zenão e Crisipo, se seus movimentos estão tolhidos é melhor trotar para acompanhar a carroça do que ser arrastado e estrangulado por ela. Embora o primeiro impulso do animal talvez seja o de lutar contra a guinada repentina do veículo que o obriga a tomar uma direção imprevista, seu sofrimento só dura enquanto durar sua resistência.

Assim Sêneca se posicionou sobre o assunto [1]:

“Ao lutar contra o laço, o animal o aperta mais... qualquer cabresto apertado irá machucar menos o animal se ele se mover com ele do que se lutar contra ele. Somente a capacidade de resistência e a submissão à necessidade proporcionam o alívio para o que é esmagador.”

Para reduzir a violência de nossa insubordinação contra acontecimentos que tomam rumos opostos ao que desejávamos, devemos refletir que também nós temos um cabresto em volta do pescoço. O sábio aprenderá a identificar de imediato o que é necessário e o seguirá, em vez de deixar-se exaurir em protesto. Quando um homem sábio é informado de que sua mala se perdeu em trânsito, ele precisará de poucos segundos para resignar-se. Sêneca relatou de que forma o fundador do estoicismo se comportou quando soube que havia perdido todos os seus pertences:

“Ao ser avisado sobre um naufrágio e ser alertado para o fato de que sua bagagem havia afundado, Zenão comentou: ‘A Fortuna [2] me desafia a ser um filósofo menos sobrecarregado.’”

Isso pode soar como uma receita para a passividade e a placidez, um incentivo à resignação diante das frustrações que poderiam ter sido vencidas. Mas a argumentação de Sêneca é mais sutil. Existe o mesmo grau de irracionalidade em se aceitar como necessário algo que não é necessário e em se rebelar contra algo que é necessário. Podemos, com a mesma facilidade, cometer o mesmo erro, ao aceitarmos o desnecessário e negarmos o possível, e negarmos o necessário e desejarmos o impossível. Cabe à capacidade de raciocínio estabelecer a distinção.

Não importa que semelhanças possam existir entre nós e um cão atrelado, nós possuímos uma vantagem crucial: podemos raciocinar e o cão, não. O animal sequer percebe de imediato que foi amarrado a uma trela e nem entende a relação entre as guinadas da carroça e a dor que sente no pescoço. Ele se sentirá confuso com as mudanças de direção e será difícil para ele calcular a trajetória da carroça, portanto sofrerá puxões constantes e dolorosos. Mas a razão nos capacita a teorizar com precisão sobre a rota de nossa carroça e isto nos oferece uma oportunidade, única entre os seres vivos, de aumentar nosso senso de liberdade ao assegurar uma boa folga entre nós e a necessidade [3]. A razão nos permite determinar quando nossos desejos estão em conflito irrevogável com a realidade e nos desafia a não sentir revolta ou amargura, e sim a nos submetermos de bom grado às necessidades. Talvez sejamos impotentes para alterar determinados acontecimentos, mas permanecemos livres para escolher que atitude tomar em relação a eles, e em nossa aceitação espontânea da necessidade encontramos uma liberdade característica.

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[1] Este trecho faz parte do capítulo intitulado “consolação para a frustração”,  baseado no pensamento do Sêneca. Como este livro também deu origem a um documentário da BBC, é possível ver o capítulo inteiro – incluindo a metáfora do cão, onde a carroça é sutilmente substituída por uma bicicleta pilotada pelo próprio Alain – no vídeo abaixo (e suas seqüências):

[2] Os estóicos freqüentemente faziam referências aos deuses não em um sentido religioso, mas no sentido dos arquétipos e conceitos universais que estes representavam. Epicteto ficou conhecido por “antecipar” o monoteísmo ao chamar a Zeus de Deus dos deuses. Zenão e Sêneca se referiam a Fortuna como uma referência ao destino, a sorte, aos acontecimentos da vida e da natureza sobre os quais não tínhamos controle algum.

[3] A melhor maneira de assegurar esta “folga” é exatamente avaliar de forma racional as nossas necessidades: que na maior parte das vezes, poderemos nos contentar com pouco, e a felicidade freqüentemente reside nas coisas simples, das quias infelizmente negligenciamos o real valor na maior parte da vida. No capítulo sobre Epicuro, intitulado “consolação para quando não se tem dinheiro suficiente”, Alain fala exatamente sobre isso. Sim, o livro é altamente recomendado e de simples leitura...

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Crédito da foto: Carlos Moraes

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