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27.2.19

A realidade existe?

Parece estranho iniciar um texto com um título cuja resposta soaria tão auto evidente. Mas é claro que a realidade existe, não? Podemos tocar as coisas, senti-las, percebê-las. No entanto, os argumentos filosóficos nunca são simples assim. Segundo Immanuel Kant, nós nunca temos acesso aos reais objetos do mundo. Sempre que vemos um objeto, o percebemos mediado pelas ideias que temos sobre ele.

Imagine que você tenha diante de si um par de óculos. Você pode até percebê-los, mas poderia compreender qual a sua real natureza, o que de fato ele é? Kant diria que não, pois a percepção do objeto que tem diante de si está mediada por todas as ideias que você possui anteriormente sobre ele: a cor que você associa a outras cores que viu antes, seu uso que foi socialmente aprendido, suas lembranças e afetos de pessoas que usavam óculos, o que pode significar uma pessoa que usa óculos, e por aí vai. Ou seja, os óculos nunca serão apenas os óculos.

O real dos objetos do mundo é impossível na perspectiva kantiana. Isto não quer dizer que o real não exista. Ele só não é assimilável, pois sempre que trazemos um objeto à consciência, o trazemos através de significados previamente possuídos. Um objeto é sempre um objeto parcialmente construído pela nossa subjetividade, digamos assim.

Ou seja, se o objeto real é inalcançável, tudo que podemos saber e investigar são as nossas próprias ideias sobre ele. Temos, portanto, o nosso argumento 1: Não podemos saber a realidade, mas podemos investigar as nossas ideias sobre a realidade.

As ideias de Kant influenciaram bastante a filosofia, mas não foram unanimidade. Outro filósofo importante nessa discussão foi David Hume, conhecido pelo seu ceticismo. Segundo Hume, nada podemos saber com certeza através da razão. Tudo sabemos através de experiências prévias, e a partir delas intuímos o que acontecerá no futuro. Por exemplo, por lembrarmos que todos os dias o Sol nasceu pela manhã, supomos que o mesmo acontecerá amanhã. Mas posso afirmar isto com certeza? Segundo Hume, não. Nada me garante que algo inesperado impeça que surja o Sol no dia seguinte.

Para Hume, a mente cria associações entre fatos e acontecimentos do mundo dos quais não podemos ter certeza. Deste modo, tudo que conjecturamos racionalmente são meras suposições que podem ser reais ou não. Teorias e mais teorias. Para compreender a realidade necessitamos da experiência, ou, em outras palavras, do empírico.

Hume constitui assim o nosso argumento 2: Conjecturas teóricas dizem muitas coisas possíveis sobre o mundo, mas elas não podem ser consideradas reais se não confirmadas pela experiência.

Os argumentos na Filosofia

Os dois argumentos que trouxe para introduzir esta questão correspondem à grande cisão da filosofia contemporânea.

De um lado está a filosofia analítica – os herdeiros de Hume – que possuem uma profunda ligação com a ciência e o empirismo. Seus autores fundamentais são de países anglófonos. Através da lógica, dos estudos sobre a linguagem, do diálogo com os estudos cognitivos, evolucionistas e da computação, buscam definir o que é real, identificado geralmente com o mundo natural. Para os analíticos há uma realidade objetiva da natureza que podemos descobri-la.

Do outro lado está a filosofia continental – os herdeiros de Kant – cujos autores principais são de países de língua alemã e francesa. Os continentais olham com desconfiança ao realismo naturalista assumido pelos analíticos, e possuem grande ressalva quanto ao espírito cientificista moderno, preferindo se aproximar em seus métodos às artes, como a literatura, o teatro, a psicanálise etc. Afastando-se de um real natural, os filósofos continentais tendem a pensar numa realidade que é em alguma medida produzida: as condições sociais no marxismo, as impressões da consciência na fenomenologia, a discursividade nos estudos culturais, e por aí vai.

Existiram poucas tentativas de diálogo entre essas duas áreas no século passado. Grande parte dos filósofos de uma corrente simplesmente realizava seus estudos ignorando o que era produzido pela outra. Não por rivalidades pessoais, mas porque no fundo há essa grande fenda epistemológica que os afasta numa questão tão básica: podemos falar sobre a realidade?

Para os analíticos, os continentais não fazem filosofia séria. Eles se perdem em abstrações inúteis, numa metafísica infundada e seus discursos são meros floreios de linguagem. Podem ser bons poetas, mas são péssimos cientistas. Porque o conhecimento autêntico deve ser positivo, derivado da experiência controlada e fundamentado na lógica. Qualquer coisa diferente disto não importaria.

Já os continentais julgam os analíticos como ingênuos em seu realismo, pois ignorando a própria interferência de suas categorias sobre a natureza, o conhecimento por eles produzido é uma confirmação de seus próprios preconceitos teóricos, chegando sempre a uma realidade aparente, porém falsa.

O caso de Foucault

Um ótimo exemplo à nossa discussão é o filósofo continental Michel Foucault. Se perguntássemos a Foucault o que é a loucura, ele nos diria que jamais poderia responder a essa pergunta. Tudo que poderíamos fazer é descobrir como a loucura era diagnosticada, controlada e tratada em diferentes sociedades e tempos históricos.

Foucault nos chama a atenção que, se hoje os loucos são um incômodo a serem trancados em manicômios, houve um tempo em que a loucura era vista como sinônimo de sabedoria extravagante, e eles podiam conviver conosco na sociedade. Eis um ponto de tensão entre uma ciência naturalista e a filosofia discursiva. Pois se enquanto a primeira, fundamentada na biologia e nos estudos cognitivos, quer estabelecer a verdade da loucura – isto é, classificá-la numa disfunção cerebral localizável, marcada como um transtorno de um funcionamento normal – Foucault nos mostra que o mesmo suposto transtorno pode ser visto como normalidade em outra sociedade, e que talvez o que chamamos de loucura (ou patologia) diga mais de nossa própria sociedade que da loucura enquanto entidade em si.

Portanto, não se trata da loucura em si, mas de nossas próprias categorias e juízos que estão em questão.

Então quer dizer que não há algo propriamente louco e tudo é relativo? A ideia de que tudo poderia ser relativo, não havendo um mínimo ponto de realidade comum, ficou conhecido como pós-modernismo, um termo que é usado geralmente de maneira crítica justamente para dizer que algo é frouxo e sem sentido.

Porém, é curioso notar que Foucault nunca tenha dito que tudo é relativo, embora muitos o tenham interpretado assim. No tema da loucura mesmo Foucault disse que não poderíamos saber o que é a loucura, apenas o que em cada momento histórico se entendia sobre ela. Mas ele nunca disse que não havia a loucura.

Há o real, no entanto...

Retomemos o argumento de Kant, que chamei de nosso argumento 1. Diferente do que ficou conhecido como pós-modernismo, não é que o real não exista e estamos a flutuar num fluído de indeterminação. É evidente que há algo real.

Como muitos usam esse exemplo de forma depreciativa, trago-o aqui: imagine que você esteja atravessando a rua e venha um carro em sua direção. Não adianta pensar que o carro não é real para se safar dessa situação. Ele vai lhe atropelar de qualquer modo.

Porém, o que está em jogo nessa discussão é um pouco mais sofisticado do que isso. Não se trata de saber se o carro é real ou não, mas se o conhecimento que podemos produzir sobre alguma coisa (o carro, por exemplo) corresponde ontologicamente ao seu real ou não. Como eu disse, é um pouco mais sofisticado do que nossa bruta vida cotidiana.

Então, nesse ponto, acho que é consenso dizermos que sim, a realidade existe. Há um real enquanto base dura a tudo que existe. O problema vem no segundo momento, quanto a sua acessibilidade direta ou indireta. Há um real natural encontrável na experiência ou estamos condenados a viver sob nossas próprias categorias subjetivas que mediatizam e parcializam nosso encontro com o real?

A forma como nos sentimos quando alguém nos diz algo, as visões de mundo de uma determinada doutrina, ou até a porcentagem de eficácia de uma nova droga farmacêutica –invocando Nietzsche, há fatos ou são tudo interpretações?

Aos continentais, nosso conhecimento é conjectural. Podemos fazer conjecturas que conversem melhor com a experiência de nossas almas, não por serem uma realidade última, mas por falarem de uma realidade experimentável em outro nível. Porém, tenho que concordar com os analíticos quando dizem que muitos pensadores continentais – talvez por excesso de conjecturas – se tornaram excessivamente abstratos, herméticos e até obscuros. Obras gigantes que necessitam uma extensa exegese para compreendermos. E para quê mesmo afinal?

Do outro lado, a suposição de que há um mundo natural independente de nós aponta para a tentativa de pensar um realismo. É uma proposta interessante, ainda que, bem notado pelos continentais, tenha trazido à filosofia analítica conclusões ingênuas, e que poderiam ser mais interessantes se houvesse menos reducionismo teórico. Aos excessivamente empiristas vale lembrar que a “realidade” também pode mentir, especialmente quando nosso método empírico é caolho.
 
Pensar a realidade para quê?

Nossa discussão não é um mero joguinho intelectual para pensadores ociosos. Pensar a realidade se tornou cada vez mais fundamental em nossos tempos de pós-verdade, em que a política de países está sendo decidida com base em Fake News, e movimentos terraplanistas conseguem chegar aos postos mais altos do governo.

Para além dos nossos problemas políticos imediatos, temos ainda um confronto maior e inevitável com a realidade virtual. A internet, a construção de imagens frágeis porém narcísicas em redes sociais, e até mesmo a possibilidade de experimentamos um mundo de “realidade ampliada”.

Quando pudermos viver experiências holográficas, criadas de forma artificial para serem autênticas ao nosso cérebro, será que estaremos satisfeitos e seremos facilmente enganados por elas como num aterrorizante episódio de Black Mirror, ou crescerá ainda mais o sentimento de inautenticidade do mundo moderno, sinal de nossa insatisfação com uma realidade espectral?

Meus amigos, o que está em jogo é a velha questão colocada por Platão no mito da caverna. Não se trata de saber se vivemos num mundo real ou de sombras, mas o que nós enquanto seres humanos queremos afinal. Se tivermos um dia a escolha, será que escolheríamos pelo mundo real, seja o que for ele, ou preferíamos alguma “ilusão confortável” que nos é mais afeita?

Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.

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Crédito da imagem: Nils Stahl/Unsplash

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