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27.8.19

A espiritualidade de Sócrates

Hoje acreditamos que filosofia e espiritualidade são coisas diferentes, campos distintos. Mas segundo o filósofo francês Michel Foucault, como discutido em seu livro A Hermenêutica do Sujeito, na Antiguidade essas áreas eram mais permeáveis entre si.

Neste texto, veremos o caso de Sócrates. Como todos já devem saber, o pai da filosofia foi condenado à morte acusado de “corromper a juventude”. O que sabemos na verdade, segundo os relatos de Platão, é que Sócrates era um sujeito bastante incômodo em Atenas.

Sócrates perambulava pelas ruas da cidade questionando o que as pessoas pensavam ser a verdade sobre a justiça, sobre o bem, sobre a fortuna, e por aí vai. Após uma série de indagações que demonstravam o desconhecimento mais profundo do seu interlocutor sobre estes temas, os cidadãos de Atenas saíam aborrecidos, queixando-se da atividade do filósofo.

Porém, o objetivo de Sócrates não era simplesmente perturbar as pessoas. Vejamos o que ele mesmo diz em sua defesa durante seu julgamento:

"Que tratamento, que multa mereço eu por ter acreditado que deveria renunciar a uma vida tranquila, negligenciar o que a maioria dos homens estima, como fortuna, interesse privado, postos militares, sucesso na tribuna, magistraturas, coalizões, facções políticas? Por oferecer a cada um de vós em particular, aquilo que declaro ser o maior dos serviços, buscando persuadi-lo a preocupar-se menos com o que lhe pertence do que com sua própria pessoa, de pensar menos nas coisas da cidade do que na própria cidade, em suma, de aplicar a tudo esses mesmos princípios?”

De maneira simples, Sócrates se defendeu da acusação de ser um corruptor da cidade dizendo que seu objetivo era tentar convencer as pessoas a se dedicarem antes aos interesses de si mesmas que aos interesses da cidade (como adquirir riquezas, cargos e propriedades).

Não surpreende que não tenha convencido a ninguém em sua defesa. Sócrates de fato corrompia os valores atenienses. Ele questionava os valores que moviam os cidadãos em busca de dinheiro, fama e status, e lhes queria convencer a cuidar mais de suas próprias almas. Segundo Foucault, Sócrates iniciou assim a longa tradição ocidental do cuidado de si mesmo.

O que é o cuidado de si?
Cuidar-se de si significa formar-se como sujeito. Constituir uma relação consigo mesmo, definindo valores, identidade e assumindo regimes de verdades. É cuidar de sua própria alma, acreditando que há uma verdade nesse cuidado que pode nos conduzir a viver melhor. Ocupar-se consigo antes de se preocupar com as demandas da cidade. Isso é o que chamamos também de espiritualidade.

Sócrates se colocava na pólis como um guia espiritual. Ao ocupar-se dos outros, Sócrates era conhecido por constantemente não se ocupar consigo mesmo. Ele mesmo diz em seu discurso que negligenciou os bens em sua vida, não adquiriu fortuna, recusou vantagens cívicas e renunciou a qualquer carreira política, nem pleiteou cargo de magistratura para poder ocupar-se dos outros. De certo modo, Sócrates encarna a figura do terapeuta que traz o remédio aos males do outro, mas não pode tratar a si mesmo.

Sócrates encarnava a figura do mestre, que é uma figura essencial para o cuidado de si. Pois o cuidado de si tem sempre a necessidade de passar pela relação com um outro. Não por acaso procuramos ainda hoje psicólogos para tratar de nossa saúde mental (ou deveríamos). Também por isso a ideia de “autoajuda” é tão falha. Existe uma impossibilidade no trabalho solitário de si.

Porém, diferente de um professor, o mestre não é aquele que ensina aptidões e capacidades a quem ele guia. O mestre não ensina alguém a se comportar melhor ou prevalecer sobre os outros. O mestre é quem cuida do cuidado que o sujeito tem de si mesmo. Não cuida do discípulo, mas do cuidado que o discípulo tem para consigo. Aqui há a similaridade com a moderna figura do psicanalista, que não diz ao seu cliente como viver, mas faz ele refletir sobre sua maneira de viver.

Quando interpelava os jovens na rua, Sócrates lhes dizia: “é preciso que cuideis de vós mesmos”. Tal ato, mais do que a excentricidade de um velho, representa um acontecimento na história do pensamento ocidental. Pois do exercício filosófico de “conhecer a si mesmo para cuidar de si” de Sócrates, ao ascetismo cristão, chegando até mesmo às modernas formas de psicoterapia, centenas de anos de evolução do pensamento acontece, onde o denominador comum é a máxima que devemos cuidar de nós mesmos.

A espiritualidade do cuidado de si
Desde os antigos textos clássicos da filosofia às modernas receitas de autoajuda, das diferentes práticas de vida aos discursos terapêuticos, o princípio do cuidado de si aparece convertido em uma série de fórmulas como: sentir prazer consigo mesmo, ter cuidados com sua saúde, buscar a felicidade somente em si, encontrar a companhia de si mesmo, ser seu próprio amigo, estar em si como numa fortaleza, respeitar-se etc.

A ideia de que muitas vezes não podemos mudar o mundo, mas podemos transformar a nós mesmos, e ao mudar nossa própria conduta numa reforma íntima podemos viver de uma maneira diferente – talvez mais plenos, talvez mais felizes – é a base das terapêuticas que conduzem a transformações espirituais.

A espiritualidade é a relação com uma verdade que transforma. Não por acaso Sócrates estava tão obstinado em encontrar a verdade. Em qualquer caminho espiritual, a verdade nunca está em posse do sujeito. Temos uma relação de desconhecimento com a nossa existência. Não sabemos a priori nossa razão de ser. Para encontrar uma resposta a esta questão, não podemos fazer por um simples ato de conhecimento. A verdade sobre a vida não pode ser acessada com a simplicidade de apenas ler a bula de um medicamento.

Toda doutrina filosófica e espiritual exige que o sujeito se modifique, se transforme, se desloque, torne-se outro que não ele mesmo, para ter acesso à verdade. Na espiritualidade cristã, é morrer e renascer em Cristo. Em outras tradições, é o contínuo processo de elaboração na reforma íntima espiritual.

Pois o que está em jogo na espiritualidade é um trabalho, no sentido mais hegeliano do termo. A espiritualidade se define mesmo pelo modo no qual o sujeito deve se transformar na ascese para alcançar algo de uma “realização subjetiva”.

Um Sócrates espiritual
Sem querer estender muito além da questão socrática, concluímos este texto não para defender um Sócrates místico acima do filósofo, mas para sinalizar que essas dimensões não andavam separadas na Filosofia Antiga. Mais do que isso, Sócrates não é apenas o pai da filosofia ocidental, mas o precursor do modo como entendemos e praticamos a espiritualidade.

Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.

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Crédito da imagem: Google Image Search

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8.8.19

Como o taoismo lida com o sofrimento

Como toda forma de espiritualidade antiga, o taoísmo apresenta a sua própria proposta terapêutica. E com terapia nos referimos aqui às estratégias para lidar com o sofrimento e encontrar um alívio para ele, ou até mesmo desenvolver um sentimento de paz interna.

Na perspectiva taoista, o sofrimento advém da comparação. Quando passamos por alguma experiência negativa, algo que podemos considerar como relativamente comum à vida, nos comparamos com os outros, com a vida e experiências de outras pessoas, ou até mesmo nos comparamos com a nossa própria vida e experiências de outros tempos.

Tomados em comparação, nos sentimos numa posição inferior aos os demais. Os taoistas chamam isso de sentir a humilhação. Quando nos sentimos humilhados, podemos nos crer injustiçados, pior que os demais, infelizes e amaldiçoados com uma má sorte. Este é o estado de uma consciência em sofrimento.

Mas a comparação não revela apenas o sofrimento. Se conseguimos pensar que, por pior que seja o nosso problema atual, talvez haja no mundo problemas piores e pessoas com um sofrimento maior, veremos a quão injusta age a nossa consciência.

Por exemplo, você pode se sentir terrivelmente injustiçado porque seu negócio faliu enquanto outras pessoas prosperaram. Mas se você pode contar com o fato de que ainda lhe resta o apoio familiar e de amigos, quando há pessoas numa condição de abandono total, talvez você perceba que a sorte não está completamente contra si.

Para o taoísmo, a sorte é sempre mais complexa do que julga a nossa consciência.

Há a história de que um mestre taoista que viajava com seu discípulo pelo interior da China quando encontraram uma família muito pobre. A família foi muito receptiva com os viajantes, mas seus membros se vestiam de forma maltrapilha, faltava comida para os filhos e a casa dela estava praticamente caindo aos pedaços.

O mestre perguntou ao pai da família como eles se sustentavam, ao que ele respondeu: “Está vendo a vaca ali fora? Dela tiramos o leite que consumimos e fazemos queijo. O pouco de leite que sobra, trocamos por outras mercadorias na cidade. Ela é nossa fonte de renda e de vida. Conseguimos viver com o que ela nos fornece.”

No dia seguinte, pouco antes de partir, o mestre ordenou ao discípulo que lançasse a vaca de um precipício. O discípulo não compreendeu a ordem do mestre, pois iria matar a vaca, a única forma de sustento daquela pobre e sofrida família. Mas, pela hierarquia, cumpriu a ordem assim mesmo.

Alguns anos mais tarde, ainda sentindo o remorso do que fez, o discípulo voltou a visitar aquela região e se surpreendeu com o que encontrou. Havia ali agora uma bela casa ali, a família estava bem vestida e já não faltava mais comida.

O discípulo quis saber o que aconteceu, e o pai da família respondeu: “Depois daquela noite que vocês estiveram aqui, nossa vaquinha caiu no precipício e morreu... Como não tínhamos mais nossa fonte de renda e sustento, fomos obrigados a procurar outras formas de sobreviver. Descobrimos muitas outras formas de ganhar dinheiro e desenvolvemos habilidades que nem sabíamos que éramos capazes de fazer.”

A lição dessa história taoista é clara. Quando sofremos uma perda, nos sentimos injustiçados porque estamos conformados com uma determinada posição em nossas vidas. Mas a perda também faz com que nos movemos, tentemos encontrar novas soluções, e às vezes é necessário perder para ganhar mais à frente. A sorte é sempre mais complexa do que aparenta à nossa consciência conformada.

Portanto, a terapêutica taoista se baseia no caminho do reconhecimento e da gratidão pelas coisas que acontecem em nossa vida, mesmo quando não as compreendemos bem.

Porém, é claro que há uma dificuldade em nos sentirmos gratos pelas coisas que nos causaram sofrimento. Nossa tendência é se rebelar contra o que nos fez sentir mal. Ninguém se sentiria contente ao perder sua vaca. Mas o que taoísmo nos ensina é que a gratidão deve ser, antes de tudo, uma prática de libertação.

Quando não conseguimos nos separar das coisas que nos causaram sofrimento, elas continuam presentes em nossa consciência, gerando novos sofrimento. Este é o ressentimento. Imagine se aquela família tivesse desistido de tudo após perder a vaca e passassem todos os dias apenas pensando no que perderam. Para não continuar carregando o sofrimento conosco, precisamos nos libertar dele, aceitando o seu lugar em nossa vida e criando novos caminhos para a nossa existência.

A terapêutica taoista nos ensina a aceitar o sofrimento sem culpa, e fazer disso algo melhor a cada dia.

Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.

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Crédito da imagem: Teresa Vega/Unsplash

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18.7.19

A filosofia pode ser terapêutica?

Segundo os pensadores do período helenístico, sim.

Na verdade, a filosofia naquela época era diferente de como a praticamos hoje. Se na filosofia moderna o conhecimento filosófico é ensinado como um discurso nas universidades, dedicada a tentar resolver os problemas da natureza do conhecimento – por exemplo, racionalismo versus empirismo, materialismo versus metafísica, objetividade versus subjetividade – na antiguidade clássica os filósofos viam a própria filosofia como uma “forma de viver”.

Ou seja, os filósofos estavam preocupados com os problemas da ética. E com ética eu não me refiro a moral. Não se tratava de simplesmente descobrir o “comportamento correto”, tal como seria numa moral religiosa, seja cristã, judia, budista ou qualquer outra.

A ética se refere ao modo como nos relacionamos com as coisas do mundo, com as outras pessoas e até mesmo com nossos próprios desejos. É muito mais um exercício a ser desenvolvido que uma norma a ser seguida. É neste sentido que a ética, numa concepção helenista, se aproxima do que hoje entendemos como o campo da psicologia, ou melhor, das psicoterapias.

Uma psicoterapia é também uma forma de pensar a maneira como nos relacionarmos com nossa vida, repensar nossos investimentos e cuidar daquilo que nos faz sofrer. Toda terapia – independente de sua abordagem – segue um ideal ético, ainda que cada terapia tenha a sua própria ética.

O terapêutico é a maneira como lidamos com o sofrimento, e para os helenistas, o sofrimento não é por acaso. Ele tem origem em nosso pensamento. Isto é, seja por pensamentos incorretos, raciocínios distorcidos ou modos patológicos de enxergar a realidade, nós sofremos.

E se a filosofia é, por excelência, o meio para nos fazer pensar melhor, não é estranho imaginar que ela poderia nos fazer sofrer menos também. [1]

Por trás do pensamento, no entanto, há o próprio desejo. Aquilo que o homem quer do mundo e na vida. Pensamos de determinada maneira porque queremos algo disso. Ao questionar o pensamento, a filosofia estaria na verdade investigando, explorando e tratando os nossos desejos, origem de nossos pensamentos, e causa do sofrimento.

Deste modo, as escolas filosóficas helenistas e suas diferentes propostas éticas eram, em última instância, modos de lidar e educar o próprio desejo. A filosofia aparece como uma terapia do desejo. [2]

Apresentarei a vocês neste texto resumidamente as três principais escolas do pensamento helenista e suas respectivas formas de lidar com o desejo:

O Epicuranismo e a busca pelo desejo verdadeiro
Fundada por Epicuro, esta escola entendia que o homem sofre porque ele tem “maus desejos”. Isto é, desejos ruins e artificiais, como a busca por dinheiro, fama, glória etc. Estes desejos seriam impróprios não por uma simples razão moralista, mas porque, de algum modo ou de outro, os filósofos percebiam que tais desejos não podiam trazer uma verdadeira felicidade. Eles não correspondiam ao que as pessoas realmente necessitavam na vida.

A verdadeira felicidade viria dos desejos verdadeiros, estes sim que deveriam ser buscados e valorizados. Epicuro, por exemplo, acreditava que a riqueza seria um bem vazio se não pudesse ser compartilhada com outras pessoas, criando com elas momentos de alegria. Deste modo, o dinheiro não é um verdadeiro desejo, mas sim a companhia de boas amizades. A busca por riqueza seria um desejo artificial, enquanto cultivar uma boa amizade ou um amor recompensaria melhor a nossa natureza.

A terapêutica de Epicuro dedicava-se, portanto, em descobrir que aquelas coisas que perseguimos normalmente são artificiais. Necessitamos descobrir quais são os nossos verdadeiros desejos, porque eles sim podem nos trazer a felicidade.

Por outro lado, esta terapêutica lida com o problema de que nem sempre reconhecemos o nosso desejo como ruim. Isto é, alguém pode gostar de seu mau desejo. A ética epicurista só seria praticável a alguém num momento em que já se percebe num nível “patológico”.

O Ceticismo e as expectativas
Outra escola importante da antiguidade era o ceticismo. Hoje usamos esta palavra para nos referir a pessoas que são cientificistas, que não acreditam ou duvidam de algo, ou até mesmo que são ateias. Porém, originalmente, os céticos eram aqueles que duvidavam de que existisse uma visão única sobre algo, que duvidavam de que havia uma verdade.

Podemos ver que os céticos concordavam com a visão de Epicuro de que o sofrimento humano tem origem em suas falsas crenças, em seus falsos desejos. Porque muitas vezes pensamos que aquilo que desejamos é verdadeiro e bom, e depois de perseguir tal ilusão nos decepcionamos e sofremos.

No entanto, os céticos discordavam dos epicuristas que a solução estaria em cultivar desejos melhores. Para eles, isto simplesmente não existia. Seria apenas trocar um falso desejo por outro, que inevitavelmente também nos faria sofrer em algum momento.

Aos céticos, o problema era a própria expectativa criada pelo desejo. A terapia cética buscava assim criar uma indiferença ao próprio desejo, pois, se somos indiferentes ao que desejamos, nos tornaríamos imunes aos sofrimentos das altas expectativas.

Porém, é necessário questionar até que ponto a expectativa seria algo evitável, ou mesmo se a indiferença seria vantajosa, e não apenas uma maneira de fugir dos paradoxos da vida e do desejo. Quem suportaria uma vida indiferente a tudo?

O Estoicismo e o autocontrole
Finalmente, a última das três principais escolas da antiguidade é o estoicismo. Esta deixou para a posterioridade o seu ideal ascético, tendo influenciado em muito o cristianismo. O objetivo estoico é substituir as paixões humanas pela razão. Seus filósofos acreditavam que nós não somos simples animais, movidos pelas nossas emoções, mas que através de nossa capacidade racional podemos alcançar uma vida superior.

Os estoicos viam o sofrimento no desejo. Em nossas paixões. Pois ao querermos coisas e não podermos tê-las ou transformá-las, terminaríamos frustrados. Nossas emoções nos fariam sempre demasiadamente humanos, mesquinhos pelos nossos interesses, incapazes de uma visão superior sobre a vida e a sociedade. O ideal estoico dizia então que o homem devia usar sua maior virtude, a racionalidade, para dominar a as suas paixões e exercitar o autocontrole.

É curioso que, como terapeuta, percebo que a maioria dos nossos clientes procuram o atendimento motivados por um ideal estoico. Geralmente percebem que há algo neles que não podem controlar, e desejam ter maior domínio sobre isso em suas vidas para não mais sofrerem.

No entanto, os estoicos precisam confrontar-se com a dificuldade – quiçá a impossibilidade muitas vezes – de serem sempre racionais ou não possuírem emoções ou paixões autênticas, por mais que estas pareçam injustas ou contraditórias. Será que o homem pode estar sempre no controle de si mesmo?

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Vemos, portanto, que os ideais terapêuticos que nossos clientes buscam ou que profissionais e influenciadores promovem por aí não nasceram da psicologia moderna. Inocentes são aqueles que acreditam nisso. Eles existem desde muitos séculos na filosofia, se não são anteriores a ela mesma.

É neste sentido que a filosofia pode ser sim terapêutica, já que a origem de nossa ética emerge dela, mesmo que disto não saibamos. Que alguém busque um desejo verdadeiro que lhe traga felicidade, que tente lutar contra suas próprias expectativas ou queira controlar a si mesmo através da racionalidade, tudo isto faz parte de um ideal ético filosófico.

Se a filosofia pode ser terapêutica é porque antes a terapia é filosófica. Cabe questionar, para além disso: qual é afinal a nossa ética?

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[1] Nota do Editor: antigamente o blog Textos para Reflexão tinha uma espécie de “slogan” – pensar para melhor viver. É interessante que, anos depois do “slogan” haver sumido, a sua essência tenha reaparecido aqui :)

[2] Mais sobre este tema pode ser lido no livro The Therapy of Desire de Martha Nussbaum.

Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.

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Crédito da imagem: Bill Ringer/Unsplash

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7.6.19

A superação da humanidade

Para viver precisamos comer e beber. No entanto, a questão filosófica e ética é se devemos comer apenas o suficiente para nos manter vivos, ou se, por outro lado, um alto grau de permissividade e sensualidade deste prazer poderia ser vantajoso. Trata-se da questão ética de como lidamos com nossos desejos?

Quando ansiamos por adquirir muito daquilo que nos falta, assim como com a comida, nos empantufamos em sua abundância. O excesso de nossos desejos pode trazer diversos infortúnios, não só azia e má digestão.

Platão refletiu sobre esse assunto, e tanto na República quanto em Fédon propôs o ascetismo como modelo de vida para o filósofo. O homem sábio deveria saber se separar do corpo e suas necessidades – respeitando o mínimo para a manutenção da vida – permanecendo com reserva em relação aos prazeres excessivos. Deveríamos, desde já, praticar o “desapego para a morte”.

Mas, quantos de nós, mesmos com as considerações relativas à saúde, desejaríamos realmente abandonar os prazeres do corpo, tal como a necessidade de comer?

Quando Platão propões a austeridade sobre nossos desejos, ele pensava que nenhuma pessoa reflexiva gostaria de se ver escravizada por seus desejos. Um ser humano desligado gradualmente de todos os apegos e preocupações de natureza instáveis – como o amor, o sexo, a ânsia de poder ou a ganância de dinheiro – se liberta também dos seus respectivos conflitos.

A ética platônica diz que a superior harmonia filosófica provém da diminuição do número de “compromissos” mundanos que mantemos, pois consequentemente estamos menos sujeitos às tormentas que tais compromissos nos trazem. Cultivamos, como um exercício espiritual, um estado de paz para a morte.

Se grande parte das coisas são fontes de dor e sofrimento para um ser racional, o ascetismo filosófico é um remédio para o tormento. Mas não era o que pensava Nietzsche, que viu na filosofia platônica o culto à morte e a negação da vida.

Nietzsche escreve que o pensamento platônico é produto do ressentimento metafísico de quem odeia essa vida e espera uma vida melhor num outro mundo que talvez sequer exista. Ironicamente, Nietzsche, que nunca leu Platão com muita atenção, chega ele mesmo a uma solução platônica ao problema platônico.

Platão dizia que deixar de lado nossos desejos humanos seria abandonar, de certo modo, nossa condição de seres humanos. É surpreendente que Nietzsche, com todo seu antiplatonismo, chega a mesma conclusão em sua filosofia de afirmação da vida e negação da metafísica, seja na figura do além-do-homem ou de Zaratustra que anuncia uma nova moral para a humanidade.

Tanto Platão quanto Nietzsche, cada um ao seu modo, estavam profundamente insatisfeitos com a humanidade e achavam que a solução deveria ser superá-la. Ambos veem no homem a fraqueza de seus desejos, e seja pela via da austeridade ou pela via do seu esgotamento, precisaríamos nos tornar um novo tipo de homens e mulheres.

Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.

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Crédito da imagem: Giammarco Boscaro/Unsplash

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27.2.19

A realidade existe?

Parece estranho iniciar um texto com um título cuja resposta soaria tão auto evidente. Mas é claro que a realidade existe, não? Podemos tocar as coisas, senti-las, percebê-las. No entanto, os argumentos filosóficos nunca são simples assim. Segundo Immanuel Kant, nós nunca temos acesso aos reais objetos do mundo. Sempre que vemos um objeto, o percebemos mediado pelas ideias que temos sobre ele.

Imagine que você tenha diante de si um par de óculos. Você pode até percebê-los, mas poderia compreender qual a sua real natureza, o que de fato ele é? Kant diria que não, pois a percepção do objeto que tem diante de si está mediada por todas as ideias que você possui anteriormente sobre ele: a cor que você associa a outras cores que viu antes, seu uso que foi socialmente aprendido, suas lembranças e afetos de pessoas que usavam óculos, o que pode significar uma pessoa que usa óculos, e por aí vai. Ou seja, os óculos nunca serão apenas os óculos.

O real dos objetos do mundo é impossível na perspectiva kantiana. Isto não quer dizer que o real não exista. Ele só não é assimilável, pois sempre que trazemos um objeto à consciência, o trazemos através de significados previamente possuídos. Um objeto é sempre um objeto parcialmente construído pela nossa subjetividade, digamos assim.

Ou seja, se o objeto real é inalcançável, tudo que podemos saber e investigar são as nossas próprias ideias sobre ele. Temos, portanto, o nosso argumento 1: Não podemos saber a realidade, mas podemos investigar as nossas ideias sobre a realidade.

As ideias de Kant influenciaram bastante a filosofia, mas não foram unanimidade. Outro filósofo importante nessa discussão foi David Hume, conhecido pelo seu ceticismo. Segundo Hume, nada podemos saber com certeza através da razão. Tudo sabemos através de experiências prévias, e a partir delas intuímos o que acontecerá no futuro. Por exemplo, por lembrarmos que todos os dias o Sol nasceu pela manhã, supomos que o mesmo acontecerá amanhã. Mas posso afirmar isto com certeza? Segundo Hume, não. Nada me garante que algo inesperado impeça que surja o Sol no dia seguinte.

Para Hume, a mente cria associações entre fatos e acontecimentos do mundo dos quais não podemos ter certeza. Deste modo, tudo que conjecturamos racionalmente são meras suposições que podem ser reais ou não. Teorias e mais teorias. Para compreender a realidade necessitamos da experiência, ou, em outras palavras, do empírico.

Hume constitui assim o nosso argumento 2: Conjecturas teóricas dizem muitas coisas possíveis sobre o mundo, mas elas não podem ser consideradas reais se não confirmadas pela experiência.

Os argumentos na Filosofia

Os dois argumentos que trouxe para introduzir esta questão correspondem à grande cisão da filosofia contemporânea.

De um lado está a filosofia analítica – os herdeiros de Hume – que possuem uma profunda ligação com a ciência e o empirismo. Seus autores fundamentais são de países anglófonos. Através da lógica, dos estudos sobre a linguagem, do diálogo com os estudos cognitivos, evolucionistas e da computação, buscam definir o que é real, identificado geralmente com o mundo natural. Para os analíticos há uma realidade objetiva da natureza que podemos descobri-la.

Do outro lado está a filosofia continental – os herdeiros de Kant – cujos autores principais são de países de língua alemã e francesa. Os continentais olham com desconfiança ao realismo naturalista assumido pelos analíticos, e possuem grande ressalva quanto ao espírito cientificista moderno, preferindo se aproximar em seus métodos às artes, como a literatura, o teatro, a psicanálise etc. Afastando-se de um real natural, os filósofos continentais tendem a pensar numa realidade que é em alguma medida produzida: as condições sociais no marxismo, as impressões da consciência na fenomenologia, a discursividade nos estudos culturais, e por aí vai.

Existiram poucas tentativas de diálogo entre essas duas áreas no século passado. Grande parte dos filósofos de uma corrente simplesmente realizava seus estudos ignorando o que era produzido pela outra. Não por rivalidades pessoais, mas porque no fundo há essa grande fenda epistemológica que os afasta numa questão tão básica: podemos falar sobre a realidade?

Para os analíticos, os continentais não fazem filosofia séria. Eles se perdem em abstrações inúteis, numa metafísica infundada e seus discursos são meros floreios de linguagem. Podem ser bons poetas, mas são péssimos cientistas. Porque o conhecimento autêntico deve ser positivo, derivado da experiência controlada e fundamentado na lógica. Qualquer coisa diferente disto não importaria.

Já os continentais julgam os analíticos como ingênuos em seu realismo, pois ignorando a própria interferência de suas categorias sobre a natureza, o conhecimento por eles produzido é uma confirmação de seus próprios preconceitos teóricos, chegando sempre a uma realidade aparente, porém falsa.

O caso de Foucault

Um ótimo exemplo à nossa discussão é o filósofo continental Michel Foucault. Se perguntássemos a Foucault o que é a loucura, ele nos diria que jamais poderia responder a essa pergunta. Tudo que poderíamos fazer é descobrir como a loucura era diagnosticada, controlada e tratada em diferentes sociedades e tempos históricos.

Foucault nos chama a atenção que, se hoje os loucos são um incômodo a serem trancados em manicômios, houve um tempo em que a loucura era vista como sinônimo de sabedoria extravagante, e eles podiam conviver conosco na sociedade. Eis um ponto de tensão entre uma ciência naturalista e a filosofia discursiva. Pois se enquanto a primeira, fundamentada na biologia e nos estudos cognitivos, quer estabelecer a verdade da loucura – isto é, classificá-la numa disfunção cerebral localizável, marcada como um transtorno de um funcionamento normal – Foucault nos mostra que o mesmo suposto transtorno pode ser visto como normalidade em outra sociedade, e que talvez o que chamamos de loucura (ou patologia) diga mais de nossa própria sociedade que da loucura enquanto entidade em si.

Portanto, não se trata da loucura em si, mas de nossas próprias categorias e juízos que estão em questão.

Então quer dizer que não há algo propriamente louco e tudo é relativo? A ideia de que tudo poderia ser relativo, não havendo um mínimo ponto de realidade comum, ficou conhecido como pós-modernismo, um termo que é usado geralmente de maneira crítica justamente para dizer que algo é frouxo e sem sentido.

Porém, é curioso notar que Foucault nunca tenha dito que tudo é relativo, embora muitos o tenham interpretado assim. No tema da loucura mesmo Foucault disse que não poderíamos saber o que é a loucura, apenas o que em cada momento histórico se entendia sobre ela. Mas ele nunca disse que não havia a loucura.

Há o real, no entanto...

Retomemos o argumento de Kant, que chamei de nosso argumento 1. Diferente do que ficou conhecido como pós-modernismo, não é que o real não exista e estamos a flutuar num fluído de indeterminação. É evidente que há algo real.

Como muitos usam esse exemplo de forma depreciativa, trago-o aqui: imagine que você esteja atravessando a rua e venha um carro em sua direção. Não adianta pensar que o carro não é real para se safar dessa situação. Ele vai lhe atropelar de qualquer modo.

Porém, o que está em jogo nessa discussão é um pouco mais sofisticado do que isso. Não se trata de saber se o carro é real ou não, mas se o conhecimento que podemos produzir sobre alguma coisa (o carro, por exemplo) corresponde ontologicamente ao seu real ou não. Como eu disse, é um pouco mais sofisticado do que nossa bruta vida cotidiana.

Então, nesse ponto, acho que é consenso dizermos que sim, a realidade existe. Há um real enquanto base dura a tudo que existe. O problema vem no segundo momento, quanto a sua acessibilidade direta ou indireta. Há um real natural encontrável na experiência ou estamos condenados a viver sob nossas próprias categorias subjetivas que mediatizam e parcializam nosso encontro com o real?

A forma como nos sentimos quando alguém nos diz algo, as visões de mundo de uma determinada doutrina, ou até a porcentagem de eficácia de uma nova droga farmacêutica –invocando Nietzsche, há fatos ou são tudo interpretações?

Aos continentais, nosso conhecimento é conjectural. Podemos fazer conjecturas que conversem melhor com a experiência de nossas almas, não por serem uma realidade última, mas por falarem de uma realidade experimentável em outro nível. Porém, tenho que concordar com os analíticos quando dizem que muitos pensadores continentais – talvez por excesso de conjecturas – se tornaram excessivamente abstratos, herméticos e até obscuros. Obras gigantes que necessitam uma extensa exegese para compreendermos. E para quê mesmo afinal?

Do outro lado, a suposição de que há um mundo natural independente de nós aponta para a tentativa de pensar um realismo. É uma proposta interessante, ainda que, bem notado pelos continentais, tenha trazido à filosofia analítica conclusões ingênuas, e que poderiam ser mais interessantes se houvesse menos reducionismo teórico. Aos excessivamente empiristas vale lembrar que a “realidade” também pode mentir, especialmente quando nosso método empírico é caolho.
 
Pensar a realidade para quê?

Nossa discussão não é um mero joguinho intelectual para pensadores ociosos. Pensar a realidade se tornou cada vez mais fundamental em nossos tempos de pós-verdade, em que a política de países está sendo decidida com base em Fake News, e movimentos terraplanistas conseguem chegar aos postos mais altos do governo.

Para além dos nossos problemas políticos imediatos, temos ainda um confronto maior e inevitável com a realidade virtual. A internet, a construção de imagens frágeis porém narcísicas em redes sociais, e até mesmo a possibilidade de experimentamos um mundo de “realidade ampliada”.

Quando pudermos viver experiências holográficas, criadas de forma artificial para serem autênticas ao nosso cérebro, será que estaremos satisfeitos e seremos facilmente enganados por elas como num aterrorizante episódio de Black Mirror, ou crescerá ainda mais o sentimento de inautenticidade do mundo moderno, sinal de nossa insatisfação com uma realidade espectral?

Meus amigos, o que está em jogo é a velha questão colocada por Platão no mito da caverna. Não se trata de saber se vivemos num mundo real ou de sombras, mas o que nós enquanto seres humanos queremos afinal. Se tivermos um dia a escolha, será que escolheríamos pelo mundo real, seja o que for ele, ou preferíamos alguma “ilusão confortável” que nos é mais afeita?

Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.

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Crédito da imagem: Nils Stahl/Unsplash

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20.12.18

Quando a espiritualidade atrapalha

Buscar a espiritualidade geralmente significa que uma pessoa está interessada em melhorar a si mesma, aprender com seus erros e ter uma contribuição positiva no mundo. No entanto, vejo que a espiritualidade pode servir muitas vezes ferramentas contrárias a esses objetivos.

Não digo com isso que a espiritualidade seja algo ruim. Certamente ela é fonte de belíssimos ensinamentos. Trata-se mais da forma como interpretamos algumas ideias, e que terminam sendo utilizadas como fuga, escape da realidade, sabotando o nosso amadurecimento.

1. Para tudo há uma teoria
Este não é apenas um problema dos espiritualistas, mas de todos aqueles que racionalizam demais. Para qualquer experiência que enfrentam encontram alguma justificativa.

Se sempre chegam atrasados nos compromissos é porque esta é sua verdade. Se algo que prometiam fazer não saiu da promessa é porque tudo no universo acontece por uma razão. Se há uma dificuldade em se relacionar com outra pessoa é porque a outra não alcançou o nível de evolução dela.

Enfim, encontram sempre uma frase da filosofia oriental para eximir-se da responsabilidade nas coisas que lhe acontecem.

2. Sentir-se superior porque faz algo espiritual
Assim como a pessoa do item anterior nunca se coloca em questão e sempre se exime da sua parcela de participação nos seus problemas, também há aquelas que se julgam mais perfeitas que as demais porque estão praticando alguma coisa “espiritual”.

Pode ser meditação, yoga ou até uma dieta vegetariana. Qualquer prática serve de motivo para ela se sentir superior, e acabam – mesmo que não intencionalmente – julgando e desvalorizando as outras pessoas.

3. Inibir emoções autênticas
Por conta do complexo de superioridade descrito acima, muitos espiritualistas julgam que seus comportamentos devem ser sempre ideais e neutros.

Está certo que a raiva pode ser danosa ou que precisamos equilibrar emoções mais negativas, como inveja e ódio. Mas isso não quer dizer que não existam situações em que certas demonstrações de emoções possam ser justas e necessárias.

Tudo bem chorar porque algo ruim aconteceu ou ficar revoltado com alguma injustiça no mundo. Muitos querem aparentar ser sempre calmos, gentis e compassivos, e terminam parecendo falsos.

4. Buscar o positivo onde não deve
O movimento de focar em coisas positivas parece ótimo. Darmos atenção às coisas que nos fazem crescer e não nos fixarmos naquilo que nos faz mal.

Porém, existe uma infinidade de situações em que precisamos encarar o que é um verdadeiro problema. Não nos enganarmos fingindo que uma onda de positividade irá solucionar tudo.

Muitas soluções em nossas vidas tem um gosto amargo, mas são necessárias.

5. Aceitar absurdos para ser “o bonzinho”
Estou de acordo que as pessoas precisam ser tratadas com respeito, afeto e compreensão. Mas isto não quer dizer que você deve aceitar qualquer coisa das outras pessoas.

Muitos querem ser sempre os bonzinhos da história, com medo de desagradar ou ficarem com má fama se disserem um não. Por isso, sentem-se abusados pelos outros, já que não estabelecem seus próprios limites.

Não é possível agradar sempre a todos, nem desejável. Ter seus próprios limites em conta é fundamental.

Resumindo...
A espiritualidade pode ser um caminho de crescimento e amadurecimento. Mas se torna uma armadilha quando criamos expectativas sobre nós que não podemos cumprir, fazendo com que nos escondamos em máscaras de superioridade e perfeição.

O mais espiritualmente maduro muitas vezes é se reconhecer como apenas um ser humano de erros e acertos, sem autopiedade por isso. E que nem sempre a culpa é do outro que não lhe entende.

Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.

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Crédito da imagem: Bart LaRue/Unsplash

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8.11.18

O que a filosofia nos ensina sobre o ódio

Nunca se falou tanto sobre o ódio. O cenário político e o crescimento dos conflitos sociais nos últimos anos têm nos chamado a atenção para esse afeto. Hoje vemos inclusive que o ódio pode ser um fenômeno social, capitalizado para interesses políticos.

Mas como a filosofia pode nos ensinar a lidar com esse afeto? Vejamos o que nos diz Sêneca em seu diálogo Sobre a Ira, a face mais agressiva do ódio.

A ira, diz-nos Sêneca, é o desejo de causar dano ao outro porque temos o sentimento que nos foi causado algum dano antes. Neste sentido, a ira é um desejo de vingança. Retribuir um dano sofrido.

Muitas vezes não se trata de um dano físico, como um golpe, mas toda sorte de prejuízos que achamos ter sofrido por consequência das ações de outra pessoa. Por exemplo, se acreditamos que perdemos a mulher que amamos para outra pessoa, passaremos a odiar a mulher que perdemos ou nosso rival amoroso porque achamos que fomos prejudicados por eles.

Temos nossa primeira lição sobre o ódio: ele nasce da sensação de prejuízo. A partir disto, raivosos, queremos reparar o dano que sofremos igualmente prejudicando ou atacando quem consideramos inimigo.

Quando hoje se fala em discurso de ódio, não se trata de simplesmente odiar um grupo em particular. É odiar um grupo por acreditar que tais indivíduos são, diretamente ou indiretamente, responsáveis pela minha infelicidade.

O ódio aos homossexuais, por exemplo, e a consequente perseguição que esse grupo sofre, parte do fato que muitas pessoas se sentem ofendidas pela simples existência deles. Não importa que os gays não estejam fazendo nada além de simplesmente existirem e amar como desejam. Muitas pessoas aprenderam a odiar qualquer coisa que seja diferente de sua concepção de mundo ou que possa balizar os seus próprios desejos, e a diferença lhes agride. Trata-se, claro, de um problema de quem não suporta a diferença.

E Sêneca vai além. É impossível vivermos sem encontrarmos algo do qual não tenhamos motivos de censura ou aversão. É natural que haja coisas que apreciamos enquanto outras repudiamos. Faz parte da própria diversidade humana.

Basta rolar o feed de notícias das redes sociais ou ligarmos a televisão que veremos muitas coisas que desaprovamos. Seja um caso de corrupção que saiu no jornal ou a agressão injusta que uma pessoa querida nossa sofreu. Estamos sempre sujeitos a nos revoltarmos com as coisas que acontecem ao nosso redor. É muito fácil que o ódio surja a qualquer momento.

Porém, o ódio não é um afeto que soluciona nossos problemas.

Odiar um político corrupto pelo que ele fez ou um ex-amigo pela traição que ele cometeu consigo não irá reparar os danos causados. É possível sim que, por vingança, você queira fazer algo. Mas será que a vingança irá realmente curar as feridas?

Sêneca nos diz que algumas coisas não valem o ódio. A serenidade da alma é o bem mais precioso, e perder isso talvez seja o verdadeiro dano que você irá se causar.

Na filosofia estoica de Sêneca, o problema não é o dano que você venha a sofrer. A vida é inevitavelmente de dificuldades e desastres. O verdadeiro sofrimento está em aceitar que essas tragédias estraguem o seu humor, o seu dia, ou mesmo a sua vida.

Portanto, é melhor curar-se do ódio que tentar se vingar, pois a vingança absorve muito tempo e nos expõe a uma multidão de outras ofensas que nos causariam ainda mais dano. Além disso, satisfazer-se com as misérias alheias é uma satisfação muito pequena diante de outras que você proporcionar a si mesmo.

Ainda que nunca estejamos imunes ao ódio, e reações enérgicas podem ser algumas vezes justas e necessárias, vale como regra geral o conselho estoico: é melhor economizar suas energias de tentar se vingar ou atacar alguém investindo em sua própria felicidade.

Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.

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Crédito da imagem: Jason Rosewell/Unsplash

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4.10.18

Filosofia para os jovens

Pretendo com este texto pensar uma filosofia para os jovens do nosso século. Considerem que escrevo uma filosofia para os jovens e não uma filosofia para jovens. Vamos apresentar as esperanças, decepções e possibilidades de ação que possuem os jovens hoje.

Quais são os problemas que a juventude enfrenta? Quais as dificuldades em ser jovem? Três questões se mostram:

Estudos e Ascensão Social
Menos de um século atrás, uma estimativa nos diria que apenas 10% dos jovens chegavam ao ensino superior. Os 90% restante compunham a classe trabalhadora e pobre. Frequentar a universidade e possuir um diploma era um diferenciador social. Mas isso mudou.

Hoje, em países desenvolvidos, estima-se que mais de 80% dos jovens vão para o ensino superior. Em países em desenvolvimento, como o Brasil, apenas 50%. É uma diferença considerável, mas ainda assim um crescimento em relação às décadas anteriores.

Porém, se antes o diploma representava o meio de ascensão social, hoje já não é mais assim. Com a democratização da universidade, o mercado não foi capaz de acolher a todos. Passou-se a exigir níveis ainda mais altos e especializados de formação: inúmeras pós-graduações, estudos e experiência no exterior etc.

Sabemos que os jovens da camada pobre e média que recentemente conseguiram o diploma não conseguem acompanhar a crescente exigência. Jovens de periferia não podem passar uma ou duas décadas estudando e viajando o mundo porque tem preocupações mais imediatas, como conseguir um emprego para sobreviver. Deste modo, os mecanismos de diferenciação de classe permanecem.

Se o nível da educação média aumentou, isso não foi acompanhado por um aumento das oportunidades. Consequentemente, a educação adentrou a lógica de mercado. Vista como um investimento – o maior investimento da sua vida, diriam alguns – instituições encontraram a oportunidade de venderem cursos e diplomas dos mais variados, que funcionariam como um passaporte para a tal ascensão social. O que nem sempre se confirma.

Há hoje muitos jovens com estudos, diplomas e formações, mas sem um real espaço para eles na sociedade.

Adolescência Prolongada
Completar 18 anos, servir o exército, conseguir um emprego, casar-se, comprar uma casa e construir sua família. Para as gerações anteriores este era o caminho comum e alcançável pelos jovens em poucos anos. Mas hoje também não é mais assim.

Primeiramente, pelo alto custo da vida moderna. Por exemplo, comprar uma casa é impossível para jovens que mal conseguem alugar um apartamento compartilhado com os amigos num grande centro urbano. Isto, somado às faltas de boas oportunidades de trabalho, faz com que os jovens passem dos seus 30 anos e ainda permaneçam economicamente dependentes dos seus pais. O que não é sem frustração para pais e filhos.

Como consequência, há a chamada adolescência prolongada, que não é nada mais do que a falta de ritos de passagem para a vida adulta.

Nas sociedades antigas sempre existiram os ritos que marcavam a passagem dos jovens à vida adulta. No caso dos meninos, até algumas décadas atrás era o serviço militar para a classe trabalhadora e a formação universitária para a classe média. Para as meninas era o casamento e a maternidade. Felizmente, o movimento feminista questionou isso por seu inerente machismo.

No entanto, o fracasso contemporâneo da sociedade em introduzir o jovem na vida adulta, seja pela educação ou pelo trabalho, impede que algum rito de passagem seja realizado. Com a adolescência prolongada, a única diferença entre jovens de 15 e 35 anos hoje é que os últimos geralmente tem mais dinheiro para comprar PlayStations.

Jovenismo
Não só há uma adolescência prolongada, como também uma grande recusa dos adultos em envelhecer. Sobretudo fisicamente.

Nas sociedades antigas, os velhos eram vistos como sábios. O arquétipo do ancião reflete alguém que adquiriu sabedoria por muitos anos. Mas não é assim num mundo de constantes revoluções tecnológicas. Se o saber do velho era algo que antes podia instruir os jovens, hoje os idosos se mostram incapazes de se situar no mundo. Há na verdade uma inversão. Os velhos que precisam dos jovens até para as coisas mais banais, como pagar suas contas no banco.

Cresce assim a ideia de que a vida é para os jovens. É preciso ser jovem e ter disposição para aproveitar a vida e seus prazeres. Sobretudo da beleza, vista como um atributo finito da juventude, e que se tenta prolongá-la ao máximo.

Os próprios idosos aderem a esse discurso quando se fala da importância de se manterem ativos e saudáveis até o fim da vida. A doença e o enfraquecimento da velhice são vistos como moralmente reprováveis, como se fosse uma questão de escolha pessoal, e não uma contingência natural da vida.

E quem lucra com isso é a indústria da beleza. Massificação de cosméticos e processos cirúrgicos, vídeos de dicas de maquiagem com milhares de visualização, profissionais do fitness com mais seguidores que as próprias estrelas do cinema. Todos buscando uma mesma coisa: retardar a marcha do tempo e cultuar os atributos da juventude, a beleza e a energia.

O grande desafio dessa geração não será manter a juventude eterna, mas, depois que tudo falhar, conseguir aceitar em paz o envelhecimento e o fim do jovenismo.

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Se o cenário parece desolador, é porque já estamos fazendo filosofia.

Essa é a diferença entre autoajuda e filosofia. A primeira tenta fazer com que você ignore a realidade e permaneça confiante e positivo. A segunda nos convoca a olhar com seriedade para o buraco em que nos metemos, e pensar como podemos sair dele.

Não há soluções fáceis. Mas essa é a vantagem da juventude. Ela tem a disposição e a coragem de mudar o mundo, enquanto a maturidade nos faz aceitar as pequenas conquistas que conseguimos para nos sentirmos satisfeitos. Pois aproveitemos então a insatisfação da juventude para pensar numa saída filosófica que:

  1. Questione o sistema educacional mercantilista, que transformou o saber numa feira para vender diplomas, muitas vezes inúteis;
  2. Compreenda que nossa vida não pode ser guiada pelo mesmo modelo das gerações anteriores, e que um novo tipo de existência social precisa ser inventado;
  3. Que saiba gozar dos prazeres, mas saiba que eles têm seu fim. E os maiores prazeres não estão na beleza de um corpo enquanto jovem, mas no amor por uma vida inteira.

Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.

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Crédito da imagem: MD Duran/Unsplash

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29.8.18

O mundo para além da linguagem

Dois meses atrás eu saí do Brasil e agora estou vivendo na Europa. Existe algo dessa experiência que está para além de mudar de endereço, visitar paisagens diferentes e ter novas fotos para as redes sociais.

Trata-se do desafio de se comunicar. E com isso não quero dizer pedir comida no restaurante ou conversar sobre o jogo de futebol na rua. Eu me refiro às coisas misteriosas da vida – a existência, o amor, nossos desejos, a vida em sociedade – e que sempre fazem nos desentender nas discussões filosóficas.

Nossos desentendimentos advêm da própria forma como a linguagem se estrutura, e experiências com outras culturas e idiomas podem esclarecer isso.

Vilém Flusser explica, por exemplo, que é simples traduzir a palavra mesa para o inglês table porque ambas as palavras e referem ao mesmo objeto. Tanto na cultura portuguesa quanto na cultura inglesa existe o mesmo objeto real mesa, esta que usamos para trabalhar ou se alimentar.

No entanto, é impossível traduzir a palavra mesa para a língua esquimó simplesmente porque na cultura dos esquimós esse objeto é inexistente. Seu vocabulário é ausente de qualquer referência à mesa, já que nunca a utilizaram.

Para explicar a um esquimó ao que estamos nos referindo, teríamos que usar a palavra em nosso idioma e depois explicar o seu funcionamento no idioma deles. Ainda assim, permanece a impossibilidade de tradução porque em sua cultura tal conceito é inexistente.

Quando estamos nos expressando sempre na mesma língua, nós estamos utilizando sempre os mesmos conceitos. Isto é, as ideias e objetos que fazem parte do nosso modo de ver o mundo, e consequentemente pensá-lo e reagir a ele.

Basta que nos desloquemos para outra realidade ou tentemos nos expressar num idioma diferente do nosso para percebermos que a maioria das coisas que sentimos ou pensamos em nossa língua original não possuem tradução.

Dizer eu te amo em português ou te quiero em espanhol são ensinados como sinônimos, mas ocupam lugares diferentes em suas respectivas línguas. Pois dizer que se ama alguém significa simplesmente que há um sentimento afetuoso por ela, sem nenhuma consequência declarada a princípio, enquanto dizer que a quer é empregar um verbo que implica necessariamente num desejo de algo, seja qual for o desejo.

Ou como pensar o inglês que não há diferenças entre ser e estar no verbo to be, senão pelo contexto? Se você diz a uma moça you are beautiful, será que ela entenderá que você dizendo que ela é uma moça bonita na vida ou que ela está particularmente bonita vestida como hoje?

Cada idioma cria os seus próprios conceitos, nem sempre partilhados com outros idiomas. Mais do que uma simples ferramenta, a linguagem que aprendemos a usar também nos ensina como pensar. É a partir dela que pensamos, e não o contrário. Fomos colonizados pela língua que nos ensinaram e estamos predestinados a chegar às respostas que nossa língua nos permite chegar.

Por tal motivo os linguistas dizem que aprender um novo idioma é também aprender a pensar de uma nova forma. Pois as estruturas da linguagem que adquirimos, bem como as expressões que utilizamos, modulam nossa forma de ver e – principalmente – reagir ao mundo.

Que um brasileiro ao xingar diga filho da puta, um norte-americano diga motherfucker (aquele que fode sua mãe) e um espanhol diga me cago en tu madre (defeco em tua mãe), revela que a todos ocidentais é ofensivo atentar contra a mãe. Mas não pelas mesmas razões. Se no Brasil o problema é ter sido parido por uma mulher que troca sexo por dinheiro, nos Estados Unidos o problema é o incesto, na Espanha... bem, a coisa na Espanha fica escatológica.

Ainda que todas essas expressões queiram igualmente ofender, seria inocente imaginarmos que são traduzíveis umas pela outra, já que se referem a conceitos – as situações compreendidas como vergonhosas – bem diferentes.

Esse tipo de experiência linguística/antropológica que temos ao aprender um novo idioma ou vivermos numa nova cultura é o que mais se aproxima de um legítimo ato filosófico. Pois é a partir do estranhamento do diferente que podemos questionar aquilo que temos por naturalizado em nós – e o que temos de mais naturalizado do que nossas próprias palavras e significados?

O mundo é algo muito absurdo, e por isso mesmo misterioso. As palavras tentam organizar este mundo em conceitos, mas ao mesmo tempo em que nos permite comunicá-lo também nos confunde, já que uma palavra nunca será a coisa.

A impossibilidade de tradução da realidade nos mostra que a linguagem termina por criar a nossa própria realidade, e disso não podemos escapar. Mas é a experiência de estranhamento disso que nos mostra um mundo para além de nossas ideias sobre ele.

Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.

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Crédito da imagem: Jason Leung/Unsplash

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6.8.18

A psicanálise ainda é necessária?

O mundo moderno nos faz questionar a necessidade de terapia. Afinal, com os avanços da biologia do comportamento, a descoberta das influências químicas sobre o nosso humor, poderíamos trocar anos de análise por um medicamento receitado pelo psiquiatra.

Os tempos modernos exigem também agilidade na solução dos problemas. Não temos tempo para investigar suas causas. Precisamos de uma técnica eficiente, rápida e barata, para logo nos sentirmos funcionando bem.

Será que a psicanálise ainda é necessária nesse mundo? A resposta é sim, mais do que nunca. Há um engano perverso em acreditar que se pode curar-se de um envenenamento ingerindo mais veneno, mas assim agem aqueles que esperam da racionalidade moderna a saída para sofrimentos que são eminentemente modernos.

Por trás da demanda de solução rápida está a própria ansiedade, que sem repensá-la nunca se poderá estar em paz com nada.

Dos comprimidos de felicidade esperam-se mudanças sem responsabilização, como se o destino sempre dependesse de alguém ou algo que não si próprio.

Sócrates havia dito que uma vida sem reflexão é uma vida que não merece ser vivida. Pois parece que aceitamos que, na demanda de praticidade do mundo moderno, em que cada app do seu celular faz o trabalho duro de cem homens, não temos mais por que refletir. Sobretudo refletir sobre nós mesmos.

É preciso reconhecer que o padecimento nos diz outra coisa. Há mais da vida que uma existência irreconhecível, arrastada por um tempo cotidiano incontrolado, em que o contentamento se resume a ansiedade de qual será nosso próximo consumo.

Se alguns pensam monótono, deitar-se no divã do psicanalista resiste hoje como uma oportunidade de aventura para aqueles que ainda ousam desbravar a vida.

Resta algo de místico da psicanálise: o psicanalista como iniciado em sua própria análise sobre os segredos e paradoxos do desejo, e que agora está disposto a receber um neófito para auxiliá-lo em sua jornada pessoal. Há uma sabedoria que se transmite na experiência, que está para além de cursos e livros.

Contra todas as demandas modernas que nos dizem “não pense, apenas faça”, a psicanálise nos convida a refletir sobre a nossa estética existencial. Nosso lugar, escolhas, gozos e perspectivas. Fazendo valer o discurso socrático, é tomar o caminho de uma vida que vale a pena a ser vivida.

Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.

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Crédito da imagem: Nine Köpfer/Unsplash

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12.4.18

10 reflexões para o amadurecimento emocional

Não nascemos prontos. Quando éramos ainda crianças, aprendemos a reagir aos problemas da existência e dos relacionamentos com outras pessoas de maneira simples e inocente. Agredir quando se sentir agredido, repulsar quando tiver medo, paralisar-se diante do desconhecido, e por aí vai.

Freud criou a psicanálise a partir do estudo dessas reações infantis, denominando-as de neuroses. Para a psicanálise, todos nós somos neuróticos porque todos nós temos a tendência a reagir de maneira infantil aos nossos problemas. O confronto com a vida, por outro lado, nos força ao amadurecimento para podermos desfrutar dela. Ou estaremos condenados a uma vida de sofrimento causada por nossa própria inaptidão emocional.

Porém, amadurecer não é fácil. As reações infantis são mecanismos de defesas utilizados pelo sujeito desde sempre para não se haver com suas vulnerabilidades.

Quando éramos crianças, nos sentíamos indefesos diante do mundo. Dependíamos dos pais ou de outros adultos de tal modo que parecia impossível viver sem eles. Mas a proteção deles também possuía limites. A constatação de nosso desamparo diante do mundo externo, sua imprevisibilidade, a incapacidade de saber a intenção dos outros, significa que podemos nos machucar quando alguma coisa indesejada nos acontece. Assim desenvolvemos defesas para que não nos machuquemos desnecessariamente.

Socialmente, qualquer sinal de vulnerabilidade é mal vista. Acreditamos que precisamos sempre ser fortes. Na cultura, os homens são apresentados como autossuficientes, fortes e inabaláveis, as mulheres como independentes, sedutoras e inconsequentes. Existe a ideia de que o homem e a mulher ideal são conquistadores sem sinais de vacilação.

A ideia de que precisamos sempre ser confiantes, independentes e autossuficientes é extremamente nociva. Como, obviamente, ninguém é assim, nos acostumamos a construir barreiras emocionais para nos defender do mundo. Distanciamo-nos de tudo aquilo que pode nos tocar mais profundamente. Se por um lado nossas defesas são necessárias para não nos machucarmos, por outro elas nos tornam impessoais, inférteis para experiências mais profundas e recompensantes. Em outros termos, incapazes de viver experiências existenciais mais autênticas e satisfatórias.

Por sorte ou azar, há o amor. Quando nos apaixonamos por alguém e começamos a desenvolver uma relação de maior intimidade, somos forçados a nos confrontar com verdades que, na maioria das vezes, preferíamos ocultar ou esquecer.

No começo de uma relação, durante o período da conquista, queremos nos mostrar fortes, independentes, bem-sucedidos, ou seja, portadores de características excepcionais que seduzam quem desejamos. Porém, isso não se sustenta por muito tempo.

Na intimidade, revelamos quem verdadeiramente somos por trás das máscaras sociais que usamos para tentar encantar o outro. Falamos de nossas inseguranças, compartilhamos nossos medos, lidamos com as nossas falhas. Precisamos admitir nossas fragilidades ao mesmo tempo em que acolhemos também as imperfeições do outro. Isto é o amor, pois não há amor senão pelas faltas e incompletudes.

O amor é assim um grande catalisador do nosso amadurecimento emocional. Ele nos revela quais são nossas carências e inseguranças. Afinal, o que podemos dizer que é mais comum aos seres humanos do que querer amar e ser amado?

Ao contrário do que dizem os mais românticos, o amor não está acima de tudo. Existem condições para que seja possível ele se realizar. É possível amar alguém e mesmo assim não podermos estar juntos dessa pessoa porque a vida nos encaminha para diferentes direções. A neurose, porém, é uma incapacidade para amar mesmo quando estamos diante dele. Quando as barreiras que construímos desde a infância para nos proteger impedem que experiências mais autênticas toquem nossas fragilidades. Se esse confronto muitas vezes pode machucar, também pode ser libertador.

Veremos agora 10 reflexões emocionais e como o amor nos impulsiona a superá-las:

1. Sensibilidade
Temos emoções. Mas aprendemos que demonstrá-las – ser sensível, passional ou carinhoso – é sinônimo de fraqueza. O que é um grande engano. Reprimir seus sentimentos sob racionalizações, frieza ou aparente neutralidade lhe torna incapaz de expressar o que você realmente precisa dizer.

Por exemplo, muitas mães quando veem seus filhos crescerem e saírem de casa, ao invés de lhe dizerem “meu filho, você está indo embora, sentirei saudades de você porque lhe amo, por isso volte sempre que puder”, tentam amedrontar seus filhos criando terrores sobre os perigos do mundo externo, criticando suas escolhas amorosas ou de vida, na crença infantil que, motivados pelo medo, seus filhos não irão lhe abandonar.

Uma comunicação eficiente é uma comunicação sincera. Saber expressar seus sentimentos é fundamental, e – ao contrário do que se diz socialmente – não há nada de injusto numa motivação emocional.

2. Dependência
Todos nós somos dependentes. Sim, ninguém se basta por si mesmo. Precisamos de comida, abrigo, ideias, mas também de amigos, família ou mesmo companheiros de profissão para nos sentirmos reconhecidos.

Obviamente, não é interessante ser completamente dependente do outro. Alguém muito dependente se torna incapaz de fazer qualquer coisa sozinho, e está sempre demandando atenção e cuidados dos outros.

No entanto, querendo evitar um extremo, muitas pessoas caem em outro: a crença de que precisamos ser completamente independentes. Essas pessoas jamais admitem que precisam de alguém ou de alguma coisa. Conscientemente ou não, afastam todas as pessoas que poderiam estar ao seu lado, sentindo-se cada vez mais sozinhas.

Admitir que precisamos de algumas coisas é saudável. É humano.

Quando você está num relacionamento com alguém, é fundamental que a outra pessoa se sinta importante, tendo um lugar na sua vida. A incapacidade de demonstrar que algumas pessoas são importantes para nós pode fazer com que elas se afastem, já que não se sentem reconhecidas.

3. Apego
O sentimento de apego é outro sentimento mal interpretado. O apego faz parte da vida e o sentimos por tudo que julgamos importante para nós. Sempre que estamos diante de algo que amamos e queremos preservar porque nos faz bem, nos tornamos apegados àquilo.

Seu excesso é como a extrema dependência: a incapacidade de se pensar sem aquilo. O que, convenhamos, é falso. Por mais que você ame algo ou alguém, se um dia você vir a perder, a sua vida seguirá. É sempre doloroso. Mas a vida vai seguir.

Temos uma capacidade de nos reinventarmos que muitas vezes desconhecemos. Além disso, a vida sempre nos surpreende por caminhos que somos incapazes de prever.

Apegar-se é saudável. Ruim é pensar que não haverá vida possível depois. Mesmo se nos afastarmos do que amamos, as experiências, aprendizados e vivências adquiridas permanecem conosco.

4. Perda
Ninguém gosta de perder. Mas amar e perder estão relacionados de tal modo que não é possível o primeiro sem arriscar o segundo. Quando amamos algo, devemos estar cientes que é possível perder isso por inúmeras razões. Vai doer sim, mas a vida é assim.

Muitas pessoas evitam se aprofundarem numa relação porque antecipam a perda. Pensam que, porque um dia podem perder, é melhor nem começar. Este tipo de comportamento de evitação pode parecer vantajoso no começo, mas é ruim em longo prazo.

A vida é essencialmente finita. Somos incapazes de prever o futuro, portanto, não sabemos a duração de nada. Podemos apenas viver cada dia do modo que o temos. Um dia de cada vez.

5. Fragilidade
A esta altura já está claro que somos emocionalmente vulneráveis. No entanto, a sociedade moderna nos tornou excessivamente sensíveis às frustrações. Acostumados a muitas facilidades, experiências de lazer e entretenimento, fomos condicionados a desejar uma vida sempre prazerosa, e a nos sentirmos extremamente desconfortáveis frente a qualquer sinal de angústia.

Angustiar-se faz parte da vida. Existencialmente, a angústia é um dos sentimentos mais eficientes. Quando nos angustiamos por algo, isto é sinal de que aquilo é mais importante para nós do que admitimos. Quando ficamos ansiosos, tristes, preocupados, incomodados com algo, não significa que a coisa seja ruim, mas que ela nos é mais fundamental do que pensamos. Portanto, precisamos ter cuidado para não confundirmos nossas reações com a coisa em si.

Precisamos, na verdade, aprender a levar as coisas com maior leveza, nos reposicionando diante de determinadas preocupações e, acima de tudo, não ter medo de nos machucarmos. Na vida vamos nos machucar muitas vezes. Faz parte.

Depois de nos machucarmos, recuperamos. Mesmo assim aproveitamos tudo que antecedeu nos machucarmos. E assim a vida segue.

6. Insegurança
Conscientes de nossa fragilidade, nos sentimos inseguros quanto ao nosso destino. Queremos controlar tudo para que nada de ruim nos aconteça e assim não nos frustrarmos. O que é impossível. Não temos controle sobre a vida. Amar é sempre um risco. Envolver-se em qualquer coisa mais séria é lançar-se numa aventura sem garantias.

Experiências mais profundas e recompensantes só funcionam quando abrimos mão do controle, e assim deixamos que elas nos alcancem antes que nós controlemos até que ponto elas podem nos tocar. Novamente, a possibilidade de nos frutarmos não é suficiente para dizer que algo não valha a pena ser vivido. O medo pode ser uma ótima ferramenta para nos alertar sobre onde pisarmos. Mas ater-se apenas a ele pode ser paralisante quando falamos sobre sair de nossas couraças.

Quanto ao futuro, sozinhos ou acompanhados, nunca sabemos como ele será, e precisamos vivê-lo a cada dia sem garantias. Mais importante do que deter-se nas inseguranças é admitir que elas existem, e assim poder compartilhá-las com o outro. Constrói-se assim a confiança necessária para prosseguirmos.

7. Idealizações
Todos nós idealizamos o encontro amoroso. Esperamos alguém fantástico, belo, inteligente, interessante, assim como nas fantasias. Essas coordenadas são importantes e não devem ser ignoradas. Elas dizem sobre o nosso desejo. Apaixonamo-nos por pessoas que remetam a essas nossas necessidades.

No entanto, é ilusão acreditarmos que existirá alguém que se encaixará perfeitamente às nossas fantasias. O outro real é um ser humano como nós, com suas incompreensões, falhas, fracassos. Se não somos capazes de aceitar menos do que a fantasia, jamais conseguiremos amar. A felicidade no amor advém dessa aceitação, e não o contrário.

Desencaixes sempre existem. A questão é que uns são mais suportáveis que outros. Você deve encontrar a sua medida.

8. Aceitação
Todos nós queremos ser aceitos e compreendidos pelo que somos. Mas por medo de que, ao nos revelarmos como realmente somos, seremos ridicularizados pelo outro, nos escondemos em personalidades de fachada, na impessoalidade.

Não aceitamos nossas imperfeições porque acreditamos que precisamos ser perfeitos para sermos amados. Tal perfeição não existe, e muitas vezes são pelos motivos menos esperados que as pessoas se apaixonam por nós. Não porque parecemos bem-sucedidos, mas porque temos dúvidas sobre nosso sucesso. Não porque somos bonitos, mas porque temos inseguranças quanto a nossa identidade. São através dessas angústias que o outro é capaz de enxergar em nós um outro ser humano, se identificando e nos amando pelo que somos. Deste modo, conseguir entregar-se é fundamental para um relacionamento.

Abrir-se para o outro, como geralmente não podemos fazer com qualquer um, é uma das experiências mais recompensantes da intimidade.

9. Comprometimento
Comprometimento é uma daquelas palavras temidas na modernidade. Parece que se comprometer com o outro significa abrir mão de si, de sua liberdade, para cumprir com obrigações que não fazem parte do seu desejo. O que é um engano.

Comprometer-se é se responsabilizar pelo cuidado emocional de quem você ama. Entender que, da mesma forma que você se entrega a essa pessoa, você precisa cuidar do que essa pessoa entrega a você. Afinal, vocês assumem uma importância na vida um do outro. Não existe fórmula ou regras, mas cada relação implica em certos tipos de compromissos particulares a serem honrados.

Assumir compromissos é fazer escolhas sobre o que é prioridade para você. Na vida não é possível ter tudo. É preciso escolher ao que você deseja dar prioridade, e essas escolhas definirão quem você é.

Comprometer-se com algo além de você é uma experiência gratificante de descentramento. Perceber que há outras pessoas, e nem sempre se trata sobre você. E que, afinal, você pode ser feliz também fazendo outras pessoas felizes.

10. Abandono
Finalmente, o maior medo em questão de relacionamentos é ser abandonado. Você se lança numa relação, se abre, confia, e mesmo assim o relacionamento termina. Você se sente abandonado pelo outro. Seu investimento naquela relação não foi correspondido.

Temendo que esse momento possa ocorrer, muitas pessoas abrem mão de se comprometerem. Abandonam o outro antes de poderem ser abandonadas depois. É frustrante e doloroso se sentir abandonado por alguém em que você investiu tanto. No entanto, é preciso entender que as coisas são mais complexas do que parecem.

Talvez seja fácil se sentir abandonado se você olhar apenas pela sua perspectiva, mas, na realidade, alguma coisa não aconteceu para o outro do mesmo modo que aconteceu para você. Afinal, vocês são pessoas diferentes, e como tal podem estar em momentos, necessidades e tempos diferentes. Não há relação perfeita. Desencaixes sempre existem. Alguns relacionamentos conseguem ir com eles, outros não.

Entender que o outro também tem o seu momento é fundamental para poder aceitá-lo e amá-lo, seja qual for a sua decisão, mesmo quando esta não é a que você prefere.

Ao se sentir abandonado depois de um término, lembre-se de todas as pessoas que continuam na sua vida. Amigos, família e companheiros. Sem dúvida, há também outras pessoas que ainda vão surgir.

Trata-se de um verdadeiro acontecimento quando duas pessoas se encontram em amor. E mesmo que isso termine, não significa que não tenha valido a pena.

Em resumo, é preciso coragem para amar. Porque amar implica em se mostrar vulnerável, assumir seus sentimentos e estar disposto a encarar as dificuldades e frustrações da vida. Isso requer amadurecimento para sair de uma posição infantil de defesa para se lançar verdadeiramente nas possibilidades da vida.

Espero que, com esse texto, não se entenda que todos precisamos ter um relacionamento sério, namorar, noivar, casar, ter filhos, criar uma família para amadurecer. Não se trata de um roteiro pré-escrito e evolutivo para todas as pessoas. Não há fórmula correta para o amor, tampouco significa que só podemos amar dentro de um relacionamento.

O essencial do texto é que amadurecer emocionalmente não se trata de construir uma posição de fortaleza, dominância e controle, mas justamente o contrário. Como disse certa vez a poetisa Patti Smith:

“Eu vou me promover exatamente como eu sou, com todos meus pontos fracos e fortes. Meus pontos fracos são que sou sensível e geralmente insegura, e meu ponto forte é que não sinto vergonha disso”

Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.

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Crédito da imagem: [topo] Oziel Gómez/unsplash; [ao longo] Bruno Aguirre/unsplash

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26.2.18

O problema do niilismo: a reação romântica

Como vimos no texto anterior, o racionalismo apostava que o avanço da razão instrumental e o aprimoramento da técnica tornariam a vida humana mais satisfatória. Os primeiros racionalistas acreditavam – e muitos atuais ainda compartilham a crença – que os problemas da humanidade eram apenas uma questão técnica. O progresso tecnológico e o avanço do conhecimento científico seriam cada vez mais capazes de resolver os problemas humanos, conduzindo-nos a uma vida plena e feliz.

O que vemos na realidade é justamente o contrário. O mundo da razão, embora tenha nos trazido maiores facilidades, conforto e segurança, não foi capaz de solucionar os problemas existenciais da humanidade.  Ao invés disso, o problema do niilismo se tornou mais evidente. Índices de depressão, ansiedade e outras questões de saúde mental são cada vez mais alarmantes na modernidade.

Se, por um lado, o racionalismo avançou na instrumentalidade e no domínio da natureza, por outro apartou o ser humano das condições que dotavam sua vida de sentido. O espírito racionalista desfez-se das antigas tradições, e com elas, o senso de comunidade e o pertencimento do homem a uma história cultural, racial e familiar.

A mudança da vida rural para a urbana também implicou numa profunda transformação na vida social e subjetiva. Primeiramente, pelo contato com as grandes aglomerações. Diferente da vida rural em que o homem vivia em pequenas comunidades cujos membros pensavam mais ou menos de maneira igual, nas grandes cidades o homem passou a estar em contato com uma maior diversidade quanto aos modos de existir. No entanto, nosso funcionamento é mais tribal do que gostaríamos de admitir. Temos o desejo de formar pequenas comunidades de pessoas afins, que pensam como nós e com quem temos alguma identificação. Nossos amigos. O que faz com que nos grandes aglomerados urbanos, grande parte das pessoas seja na realidade indiferente para nós, e que nós sejamos indiferentes para elas.

O fenômeno da solidão urbana tornou-se cada vez mais sensível. Diante de muitas pessoas, o homem passou a se sentir cada vez mais sozinho, já que a presença de muitas pessoas, antes de representar reais companhias, recorda que a maioria delas pouco tem a ver com ele. O homem se sente sozinho numa multidão. Consequentemente, cresce a sensação de indiferença entre as pessoas. Se no mundo rural todos são conhecidos e próximos, na vida urbana cada um deve seguir sua vida sem muita proximidade, pois a aproximação repentina logo é desconfiável quanto às intenções.

A mudança do modo de vida rural para o urbano também alterou a relação do homem com a natureza. Se antes o homem possuía uma conexão com a terra em que nasceu, terra em que trabalhava, com os animais daquela região, a natureza se tornou cada vez mais estranha ao espírito urbano. O homem perdeu o senso de pertencimento a terra, que antes representava o lar histórico para si e seus familiares, e que agora lhe pertence apenas enquanto paga o aluguel. Isto quando não precisa mudar de território em busca de oportunidades de estudo e trabalho. Já aos animais resta viverem confinados a pequenos espaços ou condenados a serem pragas urbanas a ser exterminadas.

Essas transformações criaram no homem a sensação de alienação em relação à natureza, esta que fora tão importante nas sociedades tradicionais. A natureza – em sua magnanimidade – relembra o homem de uma transcendência maior do que si mesmo. Tal é o sentimento de reverência e profundidade que temos ao admirar uma grande montanha, uma bela paisagem litorânea ou uma floresta cheia de vida. Todo o contato do homem com a natureza dá-se hoje, de modo controlado, reduzindo os riscos que a natureza pode representar, lembrando-nos muito pouco de sua magnanimidade.

Assim como a instrumentalidade dominou a relação do homem com a natureza, ela também tem se apoderado das relações entre pessoas. É cada vez maior a queixa de que as relações modernas são excessivamente utilitárias, marcadas por investimentos pessoais pragmáticos e que pouco atendem as necessidades emocionais mais profundas do ser humano.

O homem moderno, alienado do contato humano e da natureza, encontrou no mundo da razão – o mesmo que prometia através do avanço da técnica o fim de tudo que representava dor e sofrimento: doenças, conflitos, mortes desnecessárias – uma angústia tal qual nunca antes havia experimentado.

No mundo tradicional, o homem lidava com a angústia através de uma crença metafísica reconfortante. Os mitos, lendas e narrativas religiosas estabeleciam uma ordem no mundo, um sentido para os acontecimentos, e assim o homem se sentia amparado pelos seus símbolos. O racionalismo científico demonstrou que os mitos não eram reais, e a fé parecia primitiva em relação à potência da razão. O Universo se tornou explicável cientificamente, mas ausente de qualquer sentido ou ordem. O mundo e a vida existem por alguma aleatoriedade, e nada possui um sentido maior do que aquele que nos iludimos em imaginar. No entanto, confrontar-se com este niilismo pode ser muito angustiante.

Se os conservadores condenam o niilismo, fonte do sentimento de angústia e desamparo, buscando retornar a um modelo de vida tradicional, os racionalistas acreditam no uso da razão instrumental para suplantar os problemas da existência. Para um racionalista, em algum momento a ciência alcançará o progresso tecnológico que solucionará as dores humanas. Testemunhamos isso quando as neurociências prometem a cura para os problemas existenciais através da manipulação das transmissões bioquímicas do cérebro. Como se, ironicamente, dissessem: se a vida não pode ser vivida com sentido, ela pode ser dopada com medicamentos psiquiátricos que vão nos anestesiar e provocar uma sensação de felicidade produzida.

Para muitos racionalistas parece uma solução perfeita. No entanto, para a maioria das pessoas isso soa como uma distopia digna de ser retratada num episódio da série Black Mirror. Um mundo desprovido de experiências autênticas, cuja única saída é anestesiarmos nossas angústias.

A ciência foi impotente para resolver os problemas existenciais. E por conta da sua indiferença às questões de valor, ela pouco pode nos auxiliar com questões éticas. Sabemos, por exemplo, que existiu uma intensa atividade científica no regime nazista, e a própria ciência já foi utilizada para justificar as maiores atrocidades. A técnica e a razão instrumental são armas cegas nas mãos de grupos que detém o poder e podem agir a despeito de qualquer compromisso ético.

É como uma reação a esse mundo triste fundado pelo racionalismo que surgiu o movimento artístico-filosófico do romantismo.

Os problemas existenciais, diriam os românticos, são patológicos – isto é, da lógica do pathos, das paixões. Lidar com o ser humano, e todas suas questões existenciais, é lidar com as paixões humanas. Campo no qual a ciência e a razão instrumental são inférteis.

O romantismo questionou a centralidade da razão. O homem moderno criou a ideia de si mesmo como um ser extremamente racional, mas tal racionalidade raramente é encontrada na maioria dos seus comportamentos. Filósofos como Schopenhauer e Nietzsche entendiam que o ser humano é governado por forças, vontades e instintos mais profundos. O homem é movido pela paixão, não pela razão. Os racionalistas, ao promoverem um mundo instrumental, destituíram o lugar das paixões, que foram reprimidas em nome de ideais supostamente racionais.

Segundo os românticos, os racionalistas estavam iludidos por suas crenças supostamente racionais. A razão, embora importante ao homem, não é o principal norteador do comportamento humano, mas está subordinada às paixões. Um racionalista é assim alguém que se crê racional, mas em seu íntimo está motivado por um afeto que o cega de sua própria irracionalidade.

O espírito romântico representou a rebeldia e o inconformismo com a incapacidade do racionalismo em oferecer o progresso que havia prometido. Foi também uma tentativa de entender e aceitar a natureza humana como ela realmente era, sem as idealizações da razão e da fé.

Se os racionalistas estavam, pela ciência, excessivamente interessados na realidade externa, os românticos voltaram para si mesmos. O palco da investigação romântica era o próprio espírito humano, capaz das maiores realizações da sociedade, mas também dos atos mais mesquinhos. Através da arte, demonstrava-se a criatividade, o grotesco e o sublime. A literatura representava o drama humano, seus ideais utópicos e seus desejos paradoxais. O sonho e a fantasia foram valorizados como forças criativas. Os autores românticos foram assim os grandes fomentadores da vida subjetiva, de uma existência de grande profundidade interior.

Num mundo indiferente e solitário, utilitarista e burocrático, os românticos se dedicaram a buscar uma vida autêntica como forma de superação das angústias modernas. Mas o que seria a autenticidade? Para os românticos, somos autênticos quando agimos a partir de nossas verdadeiras paixões, para além das convenções sociais ou ideais racionalistas.

A paixão é um afeto irracional. Ela não pode ser explicada, e pouco se submete a moral ou às tradições. Os desejos humanos podem ser contraditórios e contrários – mas isso não significa que sempre sejam – às demandas que o mundo coloca sobre nós. Encontrar uma vida autêntica pode muitas vezes significar entrar em conflito com a sociedade, pensamentos moralistas e desejos de outras pessoas. Ousar enfrentá-los é visto pelo romantismo como o preço para o homem encontrar a sua felicidade.

Importante situar que paixão assume um significado para além de um relacionamento amoroso-romântico entre duas pessoas. A paixão é todo tipo de afeto que liga o homem a alguma coisa, fazendo-o lutar por ela. Sua paixão pode ser um trabalho, uma ideologia, uma filosofia, uma ética de vida, e por aí vai.

Sabemos da força que o homem adquire quando está apaixonado. Se apaixonado por um homem ou uma mulher, ele desafia as impossibilidades e impedimentos para conquistar seu amor. Se ama sua pátria, ele se atira contra o exercício inimigo, sacrificando sua própria vida em nome da bandeira que carrega. Quando ama uma tarefa, realiza-a por paixão, mesmo quando suas forças lhe esgotam.

Os românticos encontraram na paixão a possibilidade de dotar a vida de sentido e valor, sem necessariamente apelar para explicações metafísicas, como faziam as tradições religiosas. O romantismo encontrou no amor – a possibilidade de encontrarmos uma paixão que nos faça desejar a vida mesmo com suas dificuldades e fracassos – a superação do niilismo.

Nietzsche falava do amor fati, amar a vida que possuímos mesmo com suas imperfeições. Camus dissertou sobre um Sísifo feliz que, mesmo diante do absurdo de uma existência sem sentido, estava satisfeito pela possibilidade de estar vivo realizando alguma coisa. Os românticos desvelaram assim um outro aspecto do niilismo.

Se o niilismo negativo é conhecido pela destruição dos antigos valores, pela falta de sentido para a vida, o niilismo positivo é justamente a criação de novos sentidos para a existência. É porque o sentido da vida não está dado, imposto pelas tradições e os laços simbólicos do passado, que o homem é livre para se apropriar de sua história e criar seu próprio sentido.

Superar o niilismo converte-se assim numa tarefa existencial. No mundo moderno, como nos faltam os referenciais simbólicos do mundo antigo – que, se por um lado eram amparadores, por outro podiam ser grilhões ao devir humano – somos livres para encontrar nossos próprios referenciais e criarmos a nossa vida a partir de nosso desejo. Nasce a ideia de que a vida não está dada, ela precisa ser conquistada. É preciso que o homem enfrente suas angústias, percorra um caminho próprio e autêntico, adquira maturidade, e assim encontre a profundidade do seu ser.

Realizar essa tarefa é o que diferenciaria aqueles que vivem uma vida autêntica daqueles que não tiveram a coragem de dar esses passos. Ainda assim, o sentido é sempre singular. Não se trata mais de um sentido da comunidade, mas cada sujeito deve encontrar os seus próprios valores. E se não há mais uma moral imposta para nos guiar, diria Nietzsche, como encontrar valores autênticos? Segundo o romantismo, através dos sentimentos.

O romantismo entende que os sentimentos são os indicadores da nossa autenticidade. Para o homem ser feliz, ele deve se guiar pelos seus reais sentimentos. O romantismo assume assim uma valorização do mundo interno, da subjetividade e das emoções humanas, colocadas em primeiro plano na questão existencial.

Para nós modernos, profundamente influenciados por essa ideia, parece óbvio pensar assim. Mas é preciso dar um passo atrás e perceber que antes do romantismo essa ideia não fazia tanto sentido como nos parece hoje. Por exemplo, se na Idade Média um homem procurava um padre para saber se deveria se casar ou não com uma mulher, o padre iria orientá-lo a partir das escrituras sagradas. Hoje, se você procurar um psicólogo ou um psicanalista com a mesma questão, ele lhe fará perceber como seus sentimentos lhe orientam em relação a essa pergunta.

Não é mais na tradição que o homem deve encontrar as respostas para sua vida, mas no seu íntimo, em seus desejos, como um verdadeiro romântico. Tal visão se tornou tão popular que é possível que até mesmo um padre mais moderno respondesse como um psicólogo se lhe fosse feita essa pergunta. O romantismo subjetivista da modernidade substituiu a moral das sociedades tradicionais como norteador ético.

Se um homem está insatisfeito com seu casamento, num mundo tradicional ele seria obrigado a se responsabilizar pelos votos simbólicos assumidos. Hoje entendemos que o sentimento deve se sobrepor à moral. Não nos espanta que alguém insatisfeito peça divórcio se o casamento não lhe vai bem. Afinal, o sentimento é mais importante que o código social. Os próprios códigos sociais se tornaram mais flexíveis, refletindo que sim, os sentimentos são mais importantes que as leis simbólicas dos homens, da sociedade e dos deuses.

O romantismo deslocou assim o problema do niilismo para uma questão sentimental, uma questão de amor. Não o amor sexual – embora na maioria das vezes seja dele que se trata – mas do amor enquanto paixão por algo que eleve o homem acima de si mesmo, sendo capaz de dotar sua vida de sentido. O mote de um romântico moderno bem poderia ser “faça o que você ama e sua vida terá sentido”.

Finalmente, a modernidade pode ser definida como o conflito entre racionalistas e românticos, em que ambas vertentes filosóficas coexistem numa complexa síntese. Vivemos numa sociedade cada vez mais técnico-instrumental, apoiada no desenvolvimento tecnológico, ao mesmo tempo em que ansiamos por um refúgio para as angústias do mundo tecnocrata na busca pelo amor, na esperança de uma vida mais autêntica, ideais evidentemente românticos.

Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.

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Crédito da imagem: Oleg Oprisco

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