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19.7.18

Há uma religião verdadeira?

Hoje estreia em nosso blog mais uma colunista. Com vocês, Wanju Duli:


“A grande diversidade de religiões que existe no mundo dá origem ao que, na filosofia da religião, costuma ser chamado de problema do pluralismo religioso. A existência de ampla diversidade religiosa em várias culturas inevitavelmente nos obriga a perguntar quais são as implicações dessa diversidade para a verdade da religião em geral. Será que o fato de haver uma variedade de religiões no mundo significa que, de alguma forma, uma religião é tão legítima quanto qualquer outra? Ou significa que nenhuma delas pode pretender ser a detentora da verdade?”

(Religião. Conceitos-chave em filosofia, por Brendan Sweetman)

Nessa postagem eu irei me basear essencialmente no referido livro. Algumas vezes eu irei resumir conceitos apresentados nele. Porém, em boa parte das vezes irei reproduzir parágrafos inteiros da obra (entre aspas), tendo como finalidade que o argumento seja apresentado de forma mais detalhada, uma vez que o autor é um filósofo que conhece o tema em profundidade.

Brendan Sweetman apresenta três visões possíveis para responder a pergunta “Há uma religião verdadeira?”. São elas: exclusivismo religioso, pluralismo religioso e inclusivismo religioso. Iremos analisar cada uma delas.

Exclusivismo Religioso

Essa é a visão de que o caminho correto para a salvação só pode ser encontrado em uma religião. A posição estreita sustenta que só uma determinada denominação pode alcançar a salvação. A posição ampla aponta que membros de uma religião específica (digamos, cristã, independente do tipo de cristianismo) será salva.

Os exclusivistas religiosos de hoje se opõem ao termo “exclusivismo”, sugerindo em vez disso o termo “particularismo” (mais neutro).

Os exclusivistas defendem que pode haver verdades profundas em outras religiões, mas que não se pode alcançar a salvação seguindo a religião errada.

Para eles, o trabalho missionário é muito importante. Afinal, estaria em jogo a alma eterna das pessoas.

Quais são os argumentos dos exclusivistas? Primeiro, eles defendem que é razoável acreditar em Deus, usando argumentos da teologia natural. Uma vez que Deus existe, seria razoável esperar que ele revele seus planos aos seres humanos. Assim, seria preciso investigar, na história, evidências dessa revelação. Seria feita a análise das várias candidatas à verdadeira revelação e a argumentação que uma delas seria superior às outras (incluindo análise textual, teologia moral, argumentos filosóficos, etc).

Eles defendem que, por uma simples questão de lógica, nem todas as religiões do mundo podem ser verdadeiras. Mesmo que exista alguma verdade em todas elas, ainda há contradições diretas, de modo que algumas dessas religiões devem estar erradas em determinadas questões. Poderia ser o caso de que todas estivessem erradas, mas mesmo assim uma delas poderia muito bem estar mais próxima da verdade do que as outras.

O exclusivista muitas vezes rejeita as críticas modernas ao exclusivismo, alegando que muitos estão intimidados pelo multiculturalismo e pelo politicamente correto, evitando fazer perguntas difíceis sobre pontos de vista diferentes, com medo de ofender os outros. Dessa forma, os críticos do exclusivismo evitariam uma exploração mais profunda sobre a questão.

Quais são os argumentos contra os exclusivistas? Uma objeção é que, embora a lógica por trás da posição exclusivista tenha sentido, não seria possível fazer um julgamento preciso e razoável sobre qual seria a religião mundial verdadeira. Há muitos aspectos obscuros sobre evidências históricas, datação de textos, relatos de testemunhas, etc.

Outra objeção é a de que muitos não veem dificuldade lógica nem teológica na visão de que Deus pode ter se revelado de diferentes maneiras em diferentes religiões. Os exclusivistas rejeitam essa visão porque não veem dificuldade para um Deus poderoso se revelar substancialmente da mesma maneira para culturas diferentes. Por que ele chegaria ao ponto de revelar mensagens diferentes?

Uma das razões mais fortes para se rejeitar o exclusivismo segundo seus críticos é que ele parece muito injusto para os membros das religiões equivocadas. E sobre os que não seguem a religião correta por nunca terem ouvido falar dela?

A isso os exclusivistas respondem com o argumento do “conhecimento intermediário de Deus” , conhecido como “molinismo”. Segundo essa visão, além do conhecimento passado, presente e futuro, Deus também tem um conhecimento intermediário e sabe o que você teria feito se tivessem sido apresentadas às opções certas em sua vida. Para muitos, essa é uma doutrina especulativa, incompatível com o livre-arbítrio humano.

Pluralismo Religioso

É a visão de que há muitos caminhos diferentes à salvação nas várias religiões e todas têm certa legitimidade. Um forte defensor dessa visão é John Hick, que foi fortemente influenciado pela metafísica de Kant.

Kant distinguiu o mundo numênico e o fenomênico, que é o mundo como ele é e como aparece a nós. Ele afirmou que só conhecemos o mundo fenomênico, que, embora se baseie no mundo numênico, é modificado de forma significativa no ato do conhecimento. A mente humana não poderia escapar a esses atos de alteração com o objetivo de conhecer o mundo tal como ele é.

Hick argumenta que a natureza da realidade de Deus ou Realidade Última equivale ao mundo numênico. Em sua perspectiva limitada, os humanos tentam descrever o numênico, o que daria origem às diferentes religiões. De acordo com Hick, nenhuma delas detém toda a verdade sobre o Real, porque isso é impossível, mas cada uma delas tem uma perspectiva legítima sobre o Real, e por isso nenhuma religião pode pretender ser mais verdadeira ou alegar ter o caminho verdadeiro para a salvação. Isso é verdade, Hick argumenta, mesmo quando as religiões se contradizem, pois cada religião estaria tão distante de uma descrição correta do Real que as diferenças seriam irrelevantes. Elas seriam mais bem descritas como “distorções”, já que representam uma verdade que estaria muito além da compreensão humana.

Para mostrar como isso funciona, Hick e muitos pluralistas apelam para a história dos cegos e do elefante. Sua visão se tornou atrativa a muitos e é motivada por várias ideias atrativas à mente moderna: a liberdade de cada um de escolher sua própria visão de mundo, a rejeição da verdade literal das reivindicações religiosas, o aumento do relativismo moral e o desejo de não ter uma postura de julgamento em relação aos outros.

No entanto, é uma visão que vem com sérios problemas. Ela recorre a uma epistemologia antirrealista, como a de Kant, ou a um ceticismo em relação à possibilidade de os seres humanos conseguirem conhecer a verdade sobre qualquer coisa em sua experiência. Embora tenha popularidade hoje, em várias disciplinas acadêmicas (e tenha penetrado na cultura popular), devido aos problemas dessa posição epistemológica muitos relutam em se comprometer com ela.

Segundo Brendan Sweetman:

“Um problema enfrentado pela visão kantiana é que ela parece contraditória, pois está dizendo, por um lado, que, como ilustra claramente o exemplo do elefante, não há perspectiva final a partir da qual possamos julgar qual religião mundial possa ser verdadeira. Por outro lado, o próprio Hick está assumindo uma perspectiva maior, pois nos apresenta uma descrição de como as coisas realmente são! Em outras palavras, Hick está dizendo que a mente humana não consegue escapar do mundo fenomenal para descrever o mundo numênico e, ainda assim, é capaz de nos apresentar uma descrição supostamente verdadeira da realidade (e não uma descrição modificada pela mente): a de que ela consiste dos mundos numênico e fenomênico e de uma relação específica entre eles. Isso é uma contradição no âmago de todas as teorias antirrealistas: a pessoa que propõe a teoria sempre consegue escapar das estruturas relativizantes e da mente cognoscente, das quais o autor defende que ninguém pode escapar! O pluralismo também flerta abertamente com o ceticismo em relação ao conhecimento, porque se baseia na visão de que não é possível examinar as religiões do mundo da forma defendida pelo exclusivista — para ver qual delas tem mais probabilidade de ser verdadeira. Vai mais longe, argumentando que as afirmações factuais diretas nas religiões mundiais são todas falsas, como a de que Jesus ressuscitou dos mortos ou de que o anjo apareceu a Maomé, e são mais bem entendidas como metáforas para expressar o Real. Portanto, a literalidade da maioria das afirmações religiosas — que está no centro de quase todas as religiões — teria de ser abandonada. Então, para um cristão pensar que Jesus era Deus e realmente ressuscitou dos mortos para salvar a humanidade e que devemos, portanto, orar a Deus, essas crenças não devem ser consideradas literalmente verdadeiras, de acordo com Hick, e sim ‘perspectivas’ sobre o Real, que é, em si, incognoscível. E o mesmo acontece com todas as religiões. É fácil ver como essa visão convida ao relativismo e ao ceticismo sobre a religião em geral, e seria difícil distinguir do ateísmo”.

“Os pluralistas, muitas vezes, respondem a essas críticas dizendo que, na religião, o que importa não é tanto em que você acredita, mas como vive, ou, nas palavras de Hick, o que importa é que a religião possa transformar a vida de uma pessoa, de autocentrada a centrada em Deus. Se você seguir o código moral correto em sua vida, vai encontrar a graça aos olhos de Deus, independentemente de suas crenças metafísicas, teológicas e doutrinárias (e por isso essa abordagem pluralista também teria espaço para secularistas e ateus). Essa é uma visão pela qual mesmo quem não é pluralista tem alguma simpatia, mas parece que seria necessário que soubéssemos qual é a maneira certa de viver (isto é, que saibamos o que significa ter uma vida centrada em Deus). Contudo, parece que para isso teríamos que ser capazes de fazer duas coisas que os pluralistas acreditam não poder ser feitas. Primeiro, teríamos que conseguir julgar as várias religiões de acordo com seus códigos morais, mas, se pudermos fazer isso com os códigos morais delas, por que não poderíamos fazer o mesmo com suas características teológicas, sociológicas e históricas? Em segundo lugar, de modo mais geral, teria de ser possível saber qual é a verdade objetiva na moralidade e, se pudermos conhecer a verdade objetiva na moralidade, por que não podemos conhecê-la em outras áreas do conhecimento, como história, teologia e descrições da revelação?”

“O pluralismo, em suma, é ‘exclusivista’ à sua maneira, no sentido de que o pluralista quer que o exclusivista e o inclusivista aceitem a sua visão como verdadeira, e não apenas em geral, mas também em relação ao que está envolvido em viver uma vida centrada em Deus. O pluralista acredita que tem a resposta correta a isso e que as outras respostas estão incorretas. Em outras palavras, na história do elefante, o pluralista é o homem com visão, que consegue ver o quadro inteiro, incluindo a natureza do Real (o elefante), mas todos os outros são cegos! Se não fosse esse o caso, o pluralista não poderia saber que as descrições do Real apresentadas pelos cegos eram distorções inadequadas. Esses problemas são graves para o pluralismo e tem levado muitos a propor um meio-termo entre exclusivismo e pluralismo”

Inclusivismo Religioso

“Muitos consideram graves os problemas identificados tanto no exclusivismo quanto no pluralismo e, assim, gravitam em torno de uma visão que nos permita dizer tanto que a salvação pode ser alcançada em muitas religiões diferentes, mas que, no entanto, nem todas as religiões podem ser verdadeiras. Ainda pode haver apenas uma religião verdadeira. Essa visão é conhecida como inclusivismo religioso. Os inclusivistas afirmam que há apenas uma visão verdadeira de como a salvação pode ser alcançada, mas que pessoas de diferentes religiões podem ser salvas por causa da natureza dessa visão da salvação. Por exemplo, um inclusivista cristão acreditaria que a morte e ressurreição de Jesus Cristo tornam a salvação possível, não apenas para os cristãos, mas também para os membros de outras religiões. Isso é verdadeiro mesmo se os membros das outras religiões não reconhecerem Jesus ou o cristianismo: é verdade mesmo se eles acharem que Jesus não foi Deus ou que as principais afirmações do cristianismo são falsas. O teólogo católico Karl Rahner (1904–1984) e o filósofo católico Jacques Maritain (1882–1973) tinham, ambos, essa concepção”.

“O inclusivismo é atrativo para a mente moderna, porque parece preservar os pontos fortes das outras visões, evitando as suas fragilidades, mas não está isento de críticas”.

Os exclusivistas rejeitam a ideia de que não podemos investigar quais religiões do mundo provavelmente sejam verdadeiras. Também não concordam em afirmar que não há necessidade de conexão real ou essencial entre a doutrina e as crenças teológicas da religião e as suas crenças morais (como se as crenças teológicas e doutrinárias fossem falsas, mas as morais não fossem afetadas). Essa posição seria negativa para o ponto de vista lógico e enfraqueceria a posição geral da religião no debate com o secularismo, principalmente na política.

Os pluralistas, por outro lado, também não são entusiastas do inclusivismo, porque têm problemas com a ideia de que podemos descobrir qual religião é verdadeira, o que é preciso fazer para quem quer ser inclusivista. Mas reconhecem seu valor pragmático, tornando o debate de qual religião é verdadeira menos premente e menos polêmico.

Conforme Brendan Sweetman:

“Outra dificuldade para o inclusivita é que, para dizer que as pessoas de outras religiões podem ser salvas, deve-se apresentar alguma visão do que é a salvação para que a visão inclusivista tenha qualquer conteúdo e não continue a ser uma abstração vaga e impraticável. Isso vai envolver tanto uma visão teológica de salvação quanto alguma visão da vida moral correta que é necessário para a salvação. Também exigirá um argumento de que não é preciso acreditar na visão teológica para ser salvo, que viver moralmente é o suficiente, e que Deus é revelado de forma imperfeita em várias tradições religiosas. Mesmo se não pudermos chegar a um acordo sobre a visão teológica, a visão sobre a maneira correta de viver parece ser urgente, ou cairíamos rapidamente no relativismo moral”

“Concluindo, não nos esqueçamos de que todas as visões que abordamos exigem algum trabalho missionário, porque os seus defensores precisam converter os outros ao que consideram a posição correta sobre a questão da diversidade religiosa, e, como vimos, essa tarefa parece exigir que se saiba o que é verdade em matéria religiosa, pelo menos em algum nível. Essa última questão ilustra mais uma vez porque o problema do pluralismo religioso é um assunto fascinante, mas complexo, para as várias religiões do mundo moderno”.

Wanju Duli é escritora – Contato: facebook.com/WanjuDuIi

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Crédito das imagens: [topo] Android Jones; [ao longo] wikimedia.org

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