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2.7.18

Gibran, a luz do Líbano

Gibran Khalil Gibran, mais conhecido no Brasil como Khalil Gibran ou apenas Gibran, foi o maior poeta do Líbano e um dos maiores poetas de todos os tempos, pelo menos no que tange a poesia mística. Além de poeta, foi filósofo e pintor de relativo destaque. Mas sem dúvida é hoje mais conhecido pela sua literatura, sobretudo por sua obra-prima, O Profeta.

Ele nasceu em 6 de dezembro de 1883, de família pobre. Cresceu em zona montanhosa próxima a uma floresta de cedros milenares, num dos berços mais antigos da própria civilização humana.

Em 1894 emigra para os EUA com a mãe, o irmão e duas irmãs. Apenas seu pai fica no Líbano. Gibran passa cerca de 4 anos em Boston com sua família, mas em 1898 retorna a sua terra natal para completar seus estudos árabes no Colégio da Sabedoria, na capital Beirute. Passados menos de 2 anos, retorna a Boston e passa a se dedicar a pintura e a literatura, sendo sustentado pela família.

Entre abril de 1902 e junho de 1903, Gibran perde uma irmã e um irmão para a tuberculose, e vê a mãe morrer de câncer. Resta apenas sua irmã Mariana, o que obriga Gibran a correr atrás de algum retorno financeiro para sua pintura (algo que já era difícil naquela época). Felizmente, numa de suas primeiras exposições conhece Mary Haskell, diretora de uma escola em Boston, que se torna uma mecenas e confidente durante boa parte de sua vida.

Com a ajuda de Haskell, em 1908 vai estudar arte em Paris e chega a conhecer e ter algumas aulas com o escultor Auguste Rodin. Voltando aos EUA em 1910, já tem sua carreira artística inicialmente consolidada, e decide se mudar para um estúdio em Nova York. Lá ele passará o resto da vida.

Em sua terra natal, seus livros em árabe já o tinham tornado um escritor muito reconhecido. Entretanto, após decidir traduzir alguns de seus livros do árabe para o inglês, ele acaba alcançando certo sucesso editorial também nos EUA; para tal, contou com a ajuda do seu editor, Alfred Knopf, e com as revisões e o aconselhamento de sua amiga, Mary, que nessa altura já não tinha mais necessidade de lhe manter financeiramente.

É a partir do sucesso de O Profeta, lançado em 1923, que Gibran passa a ser reconhecido como grande escritor, além de pintor. Com o passar das décadas, ele será lembrado em todo o Ocidente e no Oriente Médio como o grande poeta do Líbano. No entanto, Gibran mal participa desta fama internacional, uma vez que falece já em 10 de abril de 1931, em decorrência de uma crise pulmonar (a sua saúde sempre fora frágil).

A filosofia do coração
Segundo Mansour Challita, diplomata libanês que ajudou a traduzir boa parte de sua obra para o português, “Gibran não era um filósofo no sentido transcendental da palavra. Não trouxe uma nova doutrina, uma nova interpretação do universo. Ele era um filósofo no sentido humano da palavra, um pensador, um guia.

Gibran nos trouxe o que talvez mais falte a nossa época, tão rica e tão pobre ao mesmo tempo: uma nova fé no homem, uma nova fé na vida. Ele redescobriu o papel do coração. Pregou a ternura no meio das máquinas e da concorrência impiedosa dos nossos tempos.”

Como tão bem descrito em O Profeta, Gibran não veio nos ensinar nada novo, mas simplesmente nos ajudar a florescer. A sua filosofia era mais coração que razão, mais poesia que lógica:

Homem algum poderá lhes revelar nada além do que já se encontra meio adormecido na aurora do que vocês já conhecem. O mestre que caminha à sombra do templo, junto aos seus alunos, não doa da sua sabedoria, mas antes da sua fé e da sua compaixão. Se ele é realmente sábio, não lhes convidará a adentrar na mansão da sua sabedoria, mas antes deverá lhes guiar até o limiar de suas próprias mentes.

O astrônomo poderá lhes falar de sua compreensão do espaço, mas não poderá lhes doar esta compreensão. O músico poderá cantar para vocês seguindo ao ritmo que existe em todos os espaços, mas não poderá lhes conferir o ouvido que capta a melodia, nem a voz que a ecoa. E aquele que é versado na ciência dos números poderá lhes falar do mundo dos pesos e medidas, mas não poderá lhes encaminhar até ele.

Pois a visão de um homem não empresta suas asas ao outro. E assim como cada um de vocês se encontra isolado na consciência de Deus, da mesma forma cada um de vocês deve ter o seu próprio conhecimento de Deus e a sua própria compreensão do que jaz na terra.

Os filhos
Gibran acreditava no porvir, na lenta e gradual evolução espiritual da humanidade. Isso se refletia na forma com que tratava as crianças. Apesar de nunca ter tido filhos, Gibran parecia saber muito bem de onde eles vêm:

Seus filhos não são seus filhos. Eles são os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma. Eles vêm através de vocês, mas não de vocês, e embora eles vivam ao seu lado, eles não pertencem a vocês.

Vocês podem lhes dar seu amor, mas não podem formar seus pensamentos, pois eles possuem seus próprios pensamentos. Vocês podem abrigar seus corpos, mas jamais suas almas, pois suas almas residem na Mansão do Amanhã, que vocês não podem visitar nem mesmo em sonhos.

Vocês podem lutar para ser como eles, mas não procurem fazê-los como vocês. Pois a vida não anda para trás e nem se demora com o ontem.

Não a paz, mas a espada
Gibran sempre foi muito intenso, seja na poesia, seja na pintura, seja em sua vida pessoal (o que pode ser conferido nas cartas que trocou com Mary). Ele parece ter vivido com o coração aberto, mas isto não significa que achava que o amor era algo “tranquilo e pacífico”. Assim como o Cristo, Gibran via no amor uma verdadeira guerra, uma guerra interna:

Quando o amor lhes acenar, sigam-no, embora seus caminhos sejam agrestes e escarpados. E quando suas asas lhe envolverem, aceitem-nas, embora a espada oculta em suas plumas possa lhes ferir. E quando ele lhes falar, acreditem no que diz, embora sua voz possa despedaçar os seus sonhos como o vento do norte devasta ao jardim.

Pois assim como o amor os coroa, ele também os crucifica. E da mesma forma que auxilia em seu crescimento, trabalha também para a sua poda. E assim como ascende a sua altura e acaricia os seus ramos mais tenros que se agitam ao sol, também desce até suas raízes e as sacode em seu apego à terra.

Como feixes de trigo, ele os aperta junto a si. Ele os debulha para expor-lhes a nudez. Ele os peneira para livrar-lhes das suas cascas. Ele os mói até a extrema brancura. Ele os amassa até que se tornem maleáveis. Então ele os encaminha ao fogo sagrado, para que possam se tornar o pão místico do banquete divino.

Todas essas coisas o amor irá operar em seu interior para que conheçam aos segredos de seus próprios corações, e através deste conhecimento se tornem um fragmento do coração da Vida.

Entretanto, acaso em seu medo vocês buscarem apenas a paz e o prazer do amor, então será melhor que cubram a sua nudez e abandonem ao açoite do amor, para que deem risadas num mundo sem estações, mas nem todos os seus risos; e chorem, mas nem todas as suas lágrimas.

O amor nada oferece além de si mesmo e nada recebe além de si mesmo. O amor não possui, e tampouco pode ser possuído; pois o amor se basta em si mesmo.

Quando você ama não deveria dizer, “Deus está em meu coração”, mas sim, “Eu estou no coração de Deus”.

Na floresta
Se em O Profeta Gibran chegou ao limite da linguagem, em alguns de seus poemas isolados ele chega naquela zona mística onde as palavras já não dão conta de cobrir todo o entendimento. Assim, encerro aqui meu breve translado pela vida e a obra da luz do Líbano com Na floresta, talvez o seu poema mais inefável:

Na floresta não existe nem rebanho, nem pastor.
Quando o inverno caminha, segue seu distinto curso como faz a primavera.
Os homens nasceram escravos daquele que repudia a submissão,
se ele um dia se levanta, lhes indica o caminho, com ele caminharão...
Dá-me a flauta e canta!
O canto é o pasto das mentes,
e o lamento da flauta perdura mais que rebanho e pastor.

Na floresta não existe ignorante ou sábio.
Quando os ramos se agitam, a ninguém reverenciam.
O saber humano é ilusório como a cerração dos campos,
que se esvai quando o sol se levanta no horizonte...
Dá-me a flauta e canta!
O canto é o melhor saber,
e o lamento da flauta sobrevive ao cintilar das estrelas.

Na floresta só existe lembrança dos amorosos.
Os que dominaram o mundo e oprimiram e conquistaram,
seus nomes são como letras dos nomes dos criminosos.
Conquistador entre nós é aquele que sabe amar...
Dá-me a flauta e canta!
E esquece a injustiça do opressor,
pois o lírio é uma taça para o orvalho e não para o sangue.

Na floresta não há crítico nem censor.
Se as gazelas se perturbam quando avistam companheiro, a águia não diz: “Que estranho”.
Sábio entre nós é aquele que julga estranho apenas o que é estranho...
Ah, dá-me a flauta e canta!
O canto é a melhor loucura,
e o lamento da flauta sobrevive aos ponderados e aos racionais.

Na floresta não existem homens livres ou escravos.
Todas as glórias são vãs como borbulhas na água.
Quando a amendoeira lança suas flores sobre o espinheiro,
não diz: “Ele é desprezível e eu sou um grande senhor”...
Dá-me a flauta e canta!
Que o canto é glória autêntica,
e o lamento da flauta sobrevive ao nobre e ao vil.

Na floresta não existe fortaleza ou fragilidade.
Quando o leão ruge não dizem: “Ele é temível”.
A vontade humana é apenas uma sombra que vagueia no espaço do pensamento,
e o direito dos homens fenece como folhas de outono...
Dá-me a flauta e canta!
O canto é a força do espírito,
e o lamento da flauta sobrevive ao apagamento dos sóis.

Na floresta não há morte nem apuros.
A alegria não morre quando se vai a primavera.
O pavor da morte é uma quimera que se insinua no coração,
pois quem vive uma primavera é como se houvesse vivido séculos...
Dá-me a flauta e canta!
O canto é o segredo da vida eterna,
e o lamento da flauta permanecerá após findar-se a existência.

***
 
Bibliografia
O Profeta, Khalil Gibran (a tradução de Rafael Arrais pode ser encontrada em e-book na Amazon); O Grande Amor do Profeta, com as cartas de Khalil Gibran e Mary Haskell (livro fora de tiragem, mas pode ser achado em sebos); Wikipédia.

Crédito das imagens: [topo] Google Image Search; [ao longo] Arte para o filme O Profeta; Pintura do próprio Khalil Gibran.

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