A conversão
Ele chegou junto aos primeiros raios de sol da manhã, quando eu abria os portões da mesquita. Suas roupas eram surradas, mas de boa tecelagem; mais parecia alguém rico que havia passado por diversos apuros na estrada para o nosso vilarejo. Quando se aproximou e pude ver seus olhos, percebi que irradiavam um misto de angústia e alívio, como de alguém que tivesse perdido sua vida, mas que estava prestes a renascer. A barba era negra e volumosa, e seu porte físico lembrava o dos guerreiros do Sultão. Ele pareceria ameaçador, não fosse por uma intuição que me dizia “Escute o que esse homem tem a dizer”, e foi o que eu fiz.
Khalid era o seu nome. Ele me disse que desejava fazer a shahada, que estava pronto para se juntar ao Islam, mas que antes precisava me contar uma história, e saber se mesmo assim seria aceito por Allah. Esta foi a sua história:
“Há algumas noites eu ainda era um ladrão, e o único deus que eu conhecia era o deus da adaga. Nesse tempo, eu ainda ganhava a vida assaltando comerciantes desavisados que trafegavam pela entrada entre Tabriz e Coi. Foi assim que vi um deles sozinho, sentado próximo a uma fogueira na beira do lago ao sul dessa região. Era uma presa fácil, ou ao menos foi o que pensei.
Eu me esgueirei sorrateiro como um gato, passo a passo, e quando percebi que o homem não se virou, encostei a ponta da minha adaga na lateral do seu pescoço. O metal era frio, mas mesmo assim o homem não esboçou reação alguma. Após um breve momento, sem se virar, ele falou:
‘Não tenho o que você procura.’
‘Como você sabe que procuro alguma coisa?’ – respondi.
‘Porque é conhecida a intenção de quem se aproxima com a adaga antes de dizer Salam.’
‘Então você deve ter o que eu procuro!’ – insisti.
‘Não tenho nada além de mim. Nesta situação, já que você não percebeu que não tenho ouro, ou você é estúpido ou cego.’
Até então eu achava que aquele viajante estava somente tentando me enganar, mas quando ele se levantou e virou para mim, a sua face irradiava verdade. Não qualquer verdade, mas uma verdade que jamais soube que existia – até aquele momento. Ainda assim, ainda acreditava que continuava sendo um ladrão. Eis o que ele me disse:
‘Vejo que você não é cego. Mas agora tenho quase certeza da sua estupidez.’
‘E eu tenho quase certeza de que você quer morrer.’ – disse, tentando parecer firme, apontando minha adaga para ele, fingindo que ainda era um ladrão.
O viajante abriu os braços, mas tudo o que podia ver era a luz em seus olhos. Suas palavras eram como um feitiço, um bom feitiço:
‘Então me mate. Vamos. O que lhe impede?’
Eu estava congelado, petrificado. Jamais compreendi o que significava coragem até aquela noite. Seria mais fácil eu fugir dali correndo do que enfiar minha adaga naquele homem. Ainda assim, eu não conseguia sequer sair do lugar. Ele prosseguiu:
‘Aquilo que lhe prende é o fato de você não ter conseguido ver a reação que era esperada. Você é um bandido. Aquele que não quer lhe dar seus pertences puxa a própria adaga. Então, ele o mata, ou é morto, e você pega seus pertences. Mas nesta situação eu não tenho nem ouro nem adaga, e você está tentando entender tal situação. Porque você estava procurando, embora não soubesse o quê. E então você começa a perceber o que está procurando, e o que não consegue encontrar. É como se você fosse uma árvore, com seus galhos, com seus frutos, mas ignorante da própria raiz. Se você notar a raiz, não notará a semente. Se você notar a semente, não notará o solo, e tampouco notará que as pessoas foram criadas com esse solo. Então, deixe tudo ir de vez, deixe tudo ao seu redor e olhe para si mesmo.’
Eu tombei sobre meus joelhos, prostrado ante a realidade daquelas palavras. Era como se minha vida tivesse se iniciado naquele instante. Arremessei longe minha adaga, e disse:
‘Me perdoe.’
‘É você quem deve se perdoar. E, quando o fizer, busque uma mesquita e faça o juramento. Allah precisa de amigos como você.’
‘Como eu? Um ladrão?’
‘Ambos sabemos que você já não é mais um ladrão. Ora, não foi Issa quem disse: O que acham vocês? Se alguém possui cem ovelhas, e uma delas se perde, não deixará as noventa e nove nos montes, indo procurar a que se perdeu? E, se conseguir encontrá-la, garanto que ele ficará mais contente com aquela ovelha do que com as noventa e nove que não se perderam. Não foi o que ele disse?’
‘Eu sou uma ovelha desgarrada? Sim, é isso o que eu fui, toda a minha vida estive perdido do rebanho.’
‘Você conheceu o caminho do pecado, do ouro fácil, do fio da adaga. Você foi cego e estúpido, mas algo dentro de você nunca desistiu de buscar. Pois eu lhe digo aqui e agora, meu amigo: Aquilo que você busca também está lhe buscando. Vá, encontre uma mesquita, seja um muçulmano.’
E aqui estou eu.”
Aquele homem estava pronto. Ele havia encontrado um wali, um amigo de Allah, alguém que tem o poder de acelerar a conversão daqueles que se encontram perdidos no mundo, mas que jamais desistiram de buscar.
Ele foi aceito na minha mesquita, declarou a sahada, e eventualmente se tornou o meu discípulo mais entusiasmado. Nós nunca soubemos exatamente quem foi o wali que ele encontrou acampando perto do lago, mas pela descrição – um homem vestido como mercador de tecidos – creio que há uma boa chance de ter sido o grande Shams, a luz de Tabriz, quando este se encaminhava para Konya.
raph’24
***
Comentário
Boa parte deste conto foi diretamente baseada em uma cena do primeiro episódio da segunda temporada da série de TV Rumi (2023), do canal turco Tabii, escrita por Ali Aydin e dirigida por Can Ulkay. A parábola da ovelha desgarrada pode ser encontrada em Mateus 18:12-14. Saiba mais sobre a sahada aqui.
Crédito da imagem: Google Image Search
Marcadores: contos, contos (121-130), espiritualidade, islamismo, Shams
0 comentários:
Postar um comentário
Toda reflexão é bem-vinda:
Voltar a Home