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5.1.24

A conversão

Ele chegou junto aos primeiros raios de sol da manhã, quando eu abria os portões da mesquita. Suas roupas eram surradas, mas de boa tecelagem; mais parecia alguém rico que havia passado por diversos apuros na estrada para o nosso vilarejo. Quando se aproximou e pude ver seus olhos, percebi que irradiavam um misto de angústia e alívio, como de alguém que tivesse perdido sua vida, mas que estava prestes a renascer. A barba era negra e volumosa, e seu porte físico lembrava o dos guerreiros do Sultão. Ele pareceria ameaçador, não fosse por uma intuição que me dizia “Escute o que esse homem tem a dizer”, e foi o que eu fiz.

Khalid era o seu nome. Ele me disse que desejava fazer a shahada, que estava pronto para se juntar ao Islam, mas que antes precisava me contar uma história, e saber se mesmo assim seria aceito por Allah. Esta foi a sua história:

“Há algumas noites eu ainda era um ladrão, e o único deus que eu conhecia era o deus da adaga. Nesse tempo, eu ainda ganhava a vida assaltando comerciantes desavisados que trafegavam pela entrada entre Tabriz e Coi. Foi assim que vi um deles sozinho, sentado próximo a uma fogueira na beira do lago ao sul dessa região. Era uma presa fácil, ou ao menos foi o que pensei.

Eu me esgueirei sorrateiro como um gato, passo a passo, e quando percebi que o homem não se virou, encostei a ponta da minha adaga na lateral do seu pescoço. O metal era frio, mas mesmo assim o homem não esboçou reação alguma. Após um breve momento, sem se virar, ele falou:

‘Não tenho o que você procura.’

‘Como você sabe que procuro alguma coisa?’ – respondi.

‘Porque é conhecida a intenção de quem se aproxima com a adaga antes de dizer Salam.’

‘Então você deve ter o que eu procuro!’ – insisti.

Não tenho nada além de mim. Nesta situação, já que você não percebeu que não tenho ouro, ou você é estúpido ou cego.’

Até então eu achava que aquele viajante estava somente tentando me enganar, mas quando ele se levantou e virou para mim, a sua face irradiava verdade. Não qualquer verdade, mas uma verdade que jamais soube que existia – até aquele momento. Ainda assim, ainda acreditava que continuava sendo um ladrão. Eis o que ele me disse:

‘Vejo que você não é cego. Mas agora tenho quase certeza da sua estupidez.’

‘E eu tenho quase certeza de que você quer morrer.’ – disse, tentando parecer firme, apontando minha adaga para ele, fingindo que ainda era um ladrão.

O viajante abriu os braços, mas tudo o que podia ver era a luz em seus olhos. Suas palavras eram como um feitiço, um bom feitiço:

‘Então me mate. Vamos. O que lhe impede?’

Eu estava congelado, petrificado. Jamais compreendi o que significava coragem até aquela noite. Seria mais fácil eu fugir dali correndo do que enfiar minha adaga naquele homem. Ainda assim, eu não conseguia sequer sair do lugar. Ele prosseguiu:

‘Aquilo que lhe prende é o fato de você não ter conseguido ver a reação que era esperada. Você é um bandido. Aquele que não quer lhe dar seus pertences puxa a própria adaga. Então, ele o mata, ou é morto, e você pega seus pertences. Mas nesta situação eu não tenho nem ouro nem adaga, e você está tentando entender tal situação. Porque você estava procurando, embora não soubesse o quê. E então você começa a perceber o que está procurando, e o que não consegue encontrar. É como se você fosse uma árvore, com seus galhos, com seus frutos, mas ignorante da própria raiz. Se você notar a raiz, não notará a semente. Se você notar a semente, não notará o solo, e tampouco notará que as pessoas foram criadas com esse solo. Então, deixe tudo ir de vez, deixe tudo ao seu redor e olhe para si mesmo.’

Eu tombei sobre meus joelhos, prostrado ante a realidade daquelas palavras. Era como se minha vida tivesse se iniciado naquele instante. Arremessei longe minha adaga, e disse:

‘Me perdoe.’

‘É você quem deve se perdoar. E, quando o fizer, busque uma mesquita e faça o juramento. Allah precisa de amigos como você.

‘Como eu? Um ladrão?’

‘Ambos sabemos que você já não é mais um ladrão. Ora, não foi Issa quem disse: O que acham vocês? Se alguém possui cem ovelhas, e uma delas se perde, não deixará as noventa e nove nos montes, indo procurar a que se perdeu? E, se conseguir encontrá-la, garanto que ele ficará mais contente com aquela ovelha do que com as noventa e nove que não se perderam. Não foi o que ele disse?’

‘Eu sou uma ovelha desgarrada? Sim, é isso o que eu fui, toda a minha vida estive perdido do rebanho.’

‘Você conheceu o caminho do pecado, do ouro fácil, do fio da adaga. Você foi cego e estúpido, mas algo dentro de você nunca desistiu de buscar. Pois eu lhe digo aqui e agora, meu amigo: Aquilo que você busca também está lhe buscando. Vá, encontre uma mesquita, seja um muçulmano.’

E aqui estou eu.”

Aquele homem estava pronto. Ele havia encontrado um wali, um amigo de Allah, alguém que tem o poder de acelerar a conversão daqueles que se encontram perdidos no mundo, mas que jamais desistiram de buscar.

Ele foi aceito na minha mesquita, declarou a sahada, e eventualmente se tornou o meu discípulo mais entusiasmado. Nós nunca soubemos exatamente quem foi o wali que ele encontrou acampando perto do lago, mas pela descrição – um homem vestido como mercador de tecidos – creio que há uma boa chance de ter sido o grande Shams, a luz de Tabriz, quando este se encaminhava para Konya.


raph’24

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Comentário
Boa parte deste conto foi diretamente baseada em uma cena do primeiro episódio da segunda temporada da série de TV Rumi (2023), do canal turco Tabii, escrita por Ali Aydin e dirigida por Can Ulkay. A parábola da ovelha desgarrada pode ser encontrada em Mateus 18:12-14. Saiba mais sobre a sahada aqui.

Crédito da imagem: Google Image Search

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24.1.19

Um pequeno milagre

No começo ele era uma pequena noz flutuando numa caverna submersa, quase como um girino, mas não era nem peixe nem anfíbio. Mesmo assim, ali já se cumpria o código de Darwin, um contrato entre o ser humano e a vida, um baile multimilenar onde teimamos em tentar vencer a entropia... mesmo assim, a minha vida já estava mudada, pelo resto de meus dias: isso era muito claro para mim.

Depois nos comunicamos com ele, basicamente, através de sinais de pele. Pequenos carinhos na superfície do lago onde ele vivia. De volta, chutes e cabeçadas, cada vez mais fortes, faziam uma barriga de gestante de primeira viagem tremular aqui e ali. Para uma mãe, para um pai, isso já era a coisa mais maravilhosa e bizarra do mundo. Dois seres coabitando um só corpo... parem para pensar: isso talvez já solucione uma parte considerável deste mistério.

Então, num belo dia, ele se colocou de cabeça para baixo, e podíamos ver cada um de seus pezinhos despontando no topo da barriga. Não sei quem o ensinou toda essa ginástica de nascimento, mas fato é que funcionou muito bem!

"Você já está no início do trabalho de parto, quer esperar e aguentar a dor, ou fazer um corte e tirar logo esse rapazinho daí?" - disse o médico parteiro. E ela me olhou, como se fosse eu quem pudesse sentir suas dores, como se fosse eu quem pudesse decidir. Mamães, deixa eu lhes dizer uma coisa: nós homens não fazemos vaga ideia do que é ter um ser humaninho dentro de nós. Não temos a menor noção de como é ter um desejo súbito de comer uma fruta rara ou um sorvete de sabor específico. E, acima de tudo: não concebemos a experiência (e a dor) de um parto. Nós somos tão somente observadores de um baile ancestral de genes e açúcares – podemos (e devemos) oferecer carinho, jamais a compreensão exata do que de fato se passa em vocês.

Ela escolheu tirar logo. Tudo o que eu pensava era na descomunal alternância na experiência de vida pela qual todos nós passamos. Não nascemos no parto; nascemos, quem sabe, quando nosso cérebro pequenino começa a receber informações sensoriais – e flutuamos em águas mornas por meses, por todos os dias de uma nova vida ainda aquática... sair dessa primeira caverna, literalmente de um minuto para o outro, deve ser algo absolutamente impactante. Acho que, se pudéssemos realmente nos lembrar deste dia, talvez não conseguíssemos registrar mais muita coisa no caminho místico, talvez não fosse mais necessário.

Quando o vi pela primeira vez, meio azulado, parecia um bebê krishna, um ser de alguma dimensão paralela. Por um momento, ainda em silêncio, ele abriu os olhos e inspirou o ar deste mundo de chumbo, então chorou: é o que fazem os anjos caídos. E todos nós aqui somos anjos assim, embora muitos tenham se esquecido com o tempo. Talvez seja por isso que não nos lembramos mais do parto, a saudade do céu seria dolorida demais...

Essa é a história de todos nós. Ao contemplar aquele pequeno milagre chegando a este mundo, subitamente me dei conta de que estava participando ativamente desta epopeia humana, da qual até então havia sido somente mero espectador indireto. Ali não, ali estava a Vida, na ânsia por si mesma, em todo o seu esplendor, em toda a sua ancestralidade e mistério, em toda a sua potencialidade de luz e escuridão.

Um poeta do Líbano disse que "vossos filhos não são vossos filhos", e desde que o li o entendi e guardei para mim sua mensagem: que somos empréstimos, mensagens de Algo Maior para este mundo. Todos nós trazemos um poema em nosso coração, somos um anjo que não sabe que é um anjo. Depois, muitos se esquecem de que o empréstimo é passageiro, e este é só mais um mundo no Caminho. Então acham que devem conquistar o mundo e viver nele para sempre, como se isso fizesse algum sentido em meio a uma jornada que nos ultrapassa em bilhões e bilhões de anos. Somos poeira de estrelas, filhos do cintilar dos sóis, como isso tudo poderia ser reduzido a uma só vida, a uma só persona, a um único registro social?

E assim, refletindo sobre isso, percebi que a minha vida já estava mudada, pelo resto de meus dias: isso era muito claro para mim. Ninguém recebe um empréstimo desses e passa impune – vive, mas parte de seu coração já começa a bater noutro ser; caça, mas guarda a melhor parte do alimento para o seu rebento; ora, mas sabe que carrega consigo, num carrinho de bebê, um pequeno milagre que, de alguma forma, é maior do que todos os milagres deste mundo.

para Gael...


raph'19

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Crédito da imagem: raph

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