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1.12.23

O andarilho de Copenhague

O texto abaixo foi escrito para compor o prefácio de Adquirir sua alma na paciência, o discurso de Soren Kierkegaard que tive a honra de traduzir de versões inglesas. Como a maioria dos meus prefácios, procurei falar sobre não apenas o que o autor nos trouxe em sua obra, mas também sobre como viveu sua vida. Creio que ganhamos muito ao nos imaginar, tal qual o pensador dinamarquês, simplesmente caminhando pelas vielas de Copenhague, saudando as almas que nos cruzam o caminho...


A vida só pode ser compreendida quando olhamos para trás, mas só pode ser vivida olhando para frente.

Esta frase, retirada de uma das suas cerca de 7.000 páginas de diários, acabou se tornando uma das mais famosas de Kierkegaard; e, como toda célebre frase de um pensador, resume muito do que ele buscou falar em sua obra. Você arriscaria dizer sobre o que o pensador dinamarquês falou? Bem, se pensou em “autorreflexão”, “autoconhecimento”, ou ainda em “como lidar com a existência humana”, não está muito longe da resposta, seja ela qual for.

Tendo nascido e vivido em Copenhague, na Dinamarca, Soren Kierkegaard (1813 – 1855) foi ao mesmo tempo melancólico e bem-humorado, ao mesmo tempo filósofo e teólogo, mas quase sempre brilhante. Sua mãe, Ane Sorensdatter Kierkegaard, trabalhou como empregada doméstica antes de se casar com seu pai, Michael Pedersen Kierkegaard. Ela era uma pessoa simples, que não recebeu nenhuma educação formal, mas exerceu uma influência duradoura na vida do filho. Já seu pai, Michael, foi um comerciante de lã muito bem-sucedido. Mesmo sendo um homem severo, cultivava interesse por filosofia e costumava hospedar intelectuais em sua casa. Por conta da influência do pai, ele entrou em contato com os livros de Platão ainda bem jovem, e foi especialmente tocado pela figura de Sócrates.

Kierkegaard era o mais novo dos sete filhos do casal. Contudo, quando contava 22 anos, já havia perdido cinco dos seus irmãos, tendo restado apenas Peter Kierkegaard, que mais tarde veio a se tornar um bispo luterano. Logo depois, naquele mesmo ano de 1834, foi a vez da sua mãe deixar o mundo; e, poucos anos depois, em 1838, veio o falecimento do pai. Não admira, portanto, que o filósofo fosse íntimo dos grandes sofrimentos da existência humana, e que tenha se dedicado justamente a viver da melhor forma possível, apesar deles.

Com a herança da sua família, Kierkegaard pôde custear a sua educação, a sua vida e várias publicações das suas primeiras obras. Em 8 de setembro de 1840, Kierkegaard formalizou o pedido de noivado a Regine Olsen, jovem dinamarquesa que havia conhecido cerca de três anos antes. No entanto, ele logo se sentiu desiludido com as perspectivas da vida a dois. Encerrou o noivado em 11 de agosto de 1841, apesar de se acreditar que havia um amor profundo entre eles. Nos seus Diários, Kierkegaard menciona a sua crença de que sua “melancolia” o tornava impróprio para o casamento, mas o motivo exato para o rompimento permanece obscuro até hoje. Dali em diante, seu matrimônio seria com a filosofia e, por assim dizer, com a própria existência.

Uma das primeiras descrições da aparência física do pensador dinamarquês veio de Hans Brochner, um convidado para a festa de casamento do seu irmão, Peter, em 1836: “Eu achei [sua aparência] quase cômica. Na época ele estava com 23 anos de idade. Ele tinha algo bastante irregular em toda a sua forma e usava um penteado estranho. Seu cabelo subiu quase seis centímetros acima de sua testa em uma forma de crista desgrenhada, que lhe dava uma estranha aparência de espanto”. Já o próprio Kierkegaard se descreveu como alguém de composição frágil: “Franzino, raquítico e fraco para poder valer como um homem completo. [E ainda] melancólico, submetido ao sofrimento interior, profundamente ferido de muitas maneiras no íntimo da alma. Bem, a mim só uma coisa me foi concedida: uma inteligência eminente, com certeza para que eu não ficasse inteiramente desarmado”.

Em seu tempo, as ruas de Copenhague eram tortuosas, de modo que poucas carruagens passavam por elas. Kierkegaard amava caminhar pelas ruelas e simplesmente observar o dia a dia das pessoas comuns. Em 1848, ele escreveu: “Eu tinha verdadeira satisfação cristã no pensamento de que, se não houvesse outro, definitivamente havia um homem em Copenhague com quem todas as pessoas pobres poderiam abordar livremente e conversar na rua; se não houvesse outro, havia um homem que, qualquer que fosse o seu círculo social mais frequentado, não se esquivava do contato com os pobres, mas saudava toda empregada que lhe parecia familiar, todo servo, todo trabalhador comum”. Também podemos resumir boa parte da sua teologia sob esse ponto de vista: ao teólogo dinamarquês interessava mais a figura do Cristo andarilho e contador de parábolas do que toda a Igreja que se construiu ao redor dele.

Sócrates dizia que “uma vida irrefletida não vale a pena ser vivida”, e o pensador dinamarquês levou essa afirmação as últimas consequências. Em O desespero humano, publicado em 1849 e, para alguns, uma das obras inaugurais da filosofia existencialista, Kierkegaard nos apresenta a autorreflexão como uma ferramenta para entender o problema do “desespero”, que para o pensador não derivava da depressão em si, mas antes da alienação do “eu”. Assim, ele classificou diversos graus de desespero. O mais inferior e comum é derivado da ignorância: o indivíduo mal sabe o que o “eu” significa, e não tem a menor consciência da natureza do seu “eu” potencial, a melhor versão de si. Tal desconhecimento é quase uma bênção, e tão sem consequência que Kierkegaard não estava certo se deveria ser classificado como desespero. Segundo ele, o verdadeiro desespero ocorre quando temos mais consciência de nós mesmos, uma vez que os graus mais profundos de desespero derivam de uma profunda consciência do “eu” aliada a uma profunda aversão por esse mesmo “eu”.

Quando algo dá errado, quando falhamos e, por exemplo, não passamos numa prova, nós aparentemente nos desesperamos porque perdemos algo. Mas numa análise mais atenta, segundo o pensador dinamarquês, fica óbvio que a pessoa não se desespera por conta do fato em si, como não passar na prova, mas antes por conta de si mesma. O “eu” que não conseguiu conquistar seu objetivo se torna intolerável. A pessoa queria se tornar um “eu” diferente, alguém que passou no vestibular, mas agora está presa a um “eu” fracassado, em desespero. Mas seria possível nos desviar desse desespero simplesmente sendo bem-sucedidos em tudo aquilo que desejamos alcançar?

Para responder esta pergunta, Kierkegaard usou como exemplo um homem que queria se tornar imperador. E demonstrou que, ironicamente, ainda que ele conseguisse alcançar seu objetivo, na verdade ainda teria abandonado o seu antigo “eu”. Ou seja, tanto em seu desejo quanto em sua conquista, ele queria “se livrar de si mesmo”. Ora, essa negação do “eu” é dolorosa: é avassalador o desespero de uma pessoa que quer se afastar de si, que “não possui a si mesma; que não é ela mesma”.

Mas ele também propôs, é claro, uma solução para tal dilema. Kierkegaard concluiu que um homem poderia alcançar a paz e a harmonia internas se tivesse a coragem de ser seu verdadeiro “eu”, em vez de querer ser outro. “Querer ser quem se é realmente é, na realidade, o oposto do desespero”, ele resumiu. O pensador acreditava que o desespero desaparece quando paramos de negar quem realmente somos e aceitamos a nossa verdadeira natureza.

Em um trecho dos seus Diários, datado de 1835, Kierkegaard esboçava a essência do que viria a tratar em suas obras posteriores:

O que eu realmente preciso é ter clareza sobre o que devo fazer e não o que eu preciso saber, a não ser na medida em que o conhecimento deve preceder cada ato. O que importa é encontrar um propósito, para ver o que realmente é que Deus quer que eu faça; o mais importante é encontrar uma verdade que é verdade para mim, encontrar a ideia pela qual estou disposto a viver e morrer.

Em sua busca por si mesmo, por quem realmente é, em oposição às inúmeras máscaras sociais ofertadas pela sociedade da época, Kierkegaard nos deu uma contribuição que já era muito relevante em sua época, e que hoje, na sociedade da ebulição da informação e das redes sociais, se tornou ainda mais relevante.

Mas foi em Adquirir a sua alma na paciência, um dos Quatro Discursos Edificantes, publicado em 1843, que o andarilho de Copenhague nos ofereceu a chave para o encontro e a conquista de nossa própria alma. Comentando uma passagem do Novo Testamento bíblico, Kierkegaard nos apresenta um conceito único de “paciência”: uma paciência que tem mais a ver com o mundo espiritual, mais com a sua teologia do que com a sua filosofia. Para um estudante de filosofia ou psicologia, tal conceito pode soar demasiadamente místico, até mesmo incômodo. Se for o caso, vá mais além, mergulhe em tal “incômodo”, desvele o que acha que é o misticismo, se aventure pelo misticismo real, a coisa em si: você mesmo – mas tenha toda a paciência do mundo!


Soren Kierkegaard morreu em 1855, aos 42 anos. Embora a causa de sua morte não seja clara, estudos recentes apontam que a possível causa foi uma doença na coluna vertebral (antes, se achava que ele havia falecido em decorrência da tuberculose). Seu corpo se encontra sepultado no Cemitério Assistens, em Copenhague.


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Crédito das imagens: [topo] Desenho não terminado de Kierkegaard feito pelo seu primo, Niels Christian Kierkegaard (c. 1840); [ao longo] Martinus Rorbye (pintura de 1831; retrata a Copenhague da época).

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28.11.23

Mas o que exatamente eu sou?

René Descartes foi um dos grandes pensadores modernos, tanto que é considerado por alguns como “o fundador da filosofia moderna”, e por outros como “o pai da matemática moderna”. E, de fato, ele foi tão ou mais importante para a ciência e a matemática quanto o foi para a filosofia em si. Entretanto, se formos analisar hoje pelo que Descartes é mais lembrado, será difícil escapar da sua célebre afirmação:

Penso, logo existo.

Tal frase, cuja tradução do latim original – cogito ergo sum – seria melhor definida como “Penso, logo sou”, surgiu em um livro que a princípio era quase que um prefácio para outras obras mais científicas, intitulado Discurso sobre o Método. Nesta obra, escrita em 1637 e publicada originalmente na Holanda, pois nessa época o pensador francês residia por lá, Descartes propõe um modelo quase matemático para conduzir o pensamento humano, uma vez que a matemática tem por característica a certeza, a ausência de dúvidas. De acordo com o próprio autor, parte da inspiração de seu método (descrito nesse tratado) veio de três sonhos ocorridos na noite de 10 para 11 de novembro de 1619: em tais sonhos lhe surgiu “a ideia de um método universal para encontrar a verdade”.

E o método de Descartes entrou para a história, ao ponto de se confundir com as bases do próprio método científico como veio a ser conhecido de lá para cá. Mas o que me interessa discutir aqui é a tal frase, o “penso, logo sou”. Como exatamente ele chegou nela?

Ora, Descartes estava preocupado com a validade das evidências que poderiam comprovar as verdades da nossa existência. Se devemos questionar tudo, por que devemos confiar nas informações que colhemos da natureza, já que tudo passa pela interpretação dos nossos cinco sentidos?

Tudo o que olhamos, cheiramos, escutamos, tocamos ou saboreamos só pode ser analisado pela consciência quando passa pelos nossos ouvidos, olhos, boca, tato e nariz. E, para piorar, essa interpretação é pessoal e intransferível. Como confiar que todas as pessoas perceberiam esses estímulos da mesma forma, permitindo que uma verdade se tornasse válida para todos?

O francês concluiu que nós só temos a capacidade de duvidar dos nossos sentidos (isto é, pensar) porque estamos vivos para receber esses estímulos. Ter a convicção da nossa existência seria a única coisa da qual não podemos duvidar. Eis as suas palavras, traduzidas do original:

“[...] ao analisar com atenção o que eu era, e vendo que podia presumir que não possuía corpo algum e que não havia mundo algum, ou lugar onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao contrário, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas, resultava com bastante evidência e certeza que eu existia; ao passo que, se somente tivesse parado de pensar, apesar de que tudo o mais que alguma vez imaginara fosse verdadeiro, já não teria razão alguma de acreditar que eu tivesse existido; compreendi, então, que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de lugar algum, nem depende de qualquer coisa material. De maneira que esse eu, ou seja, a alma, por causa da qual sou o que sou, é completamente distinta do corpo e, também, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, mesmo que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é.

Depois disso, considerei o que é necessário a uma proposição para ser verdadeira e correta; pois, já que encontrara uma que eu sabia ser exatamente assim, pensei que devia saber também em que consiste essa certeza. [Assim, percebi] que nada há no eu penso, logo sou que me dê a certeza de que digo a verdade, salvo que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir.”

Ou seja, ainda que tudo o que percebemos com os sentidos desde que nos entendemos por gente for algum tipo de ilusão, e ainda que não possamos obter uma certeza derradeira e absoluta sobre basicamente nenhuma verdade, ainda assim não podemos negar que existimos, que estamos aqui pensando sobre a existência. Descartes havia encontrado a única certeza genuína da filosofia, a única que não pode ser questionada. E vejam que, ainda assim, o fato de existirmos não significa que tenhamos sequer a certeza sobre a nossa própria vontade, ou liberdade de agir; porém, fato é que algo existe, e não nada.

Agora, me desculpem, mas nesse momento não posso deixar de sorrir ante tamanha ironia, isto é: que um dos tratados que servem de alicerce para o próprio método científico, que um dos pilares da racionalidade moderna seja mais lembrado justamente por sua afirmação mais mística, mais espiritual, ainda que a imensa maioria dos que esbarraram nela não tenha percebido sua profundidade abissal.

Sim, pois muitos se comportam diante dela como aqueles que estavam se preparando para a sua primeira aula de mergulho na praia mas, ao ver a placa informando “Perigo, correnteza forte”, preferiram se abster de mergulhar. Tivessem mergulhado, a primeira coisa que teriam de se deparar era com a continuação até mesmo óbvia da preposição de Descartes:

Penso, logo sou. Mas o que exatamente eu sou?

Então cairiam de cabeça no misticismo, ou seja, na tentativa de conceber a verdadeira natureza do que existe, do que é. E poderia falar aqui de Parmênides, dos estoicos, de Plotino ou Benedito Espinosa, mas será mais fácil se deixarmos a filosofia de lado e recorrermos à poesia, mais precisamente a poesia de Jalal ud-Din Rumi, um poeta sufi (o misticismo do Islam) que viveu no século XIII. Eis o que ele soube nos dizer sobre o tema:

Na verdade nós somos uma só alma, eu e você. Nos mostramos e escondemos, você em mim, eu em você.

Eis o sentido profundo da nossa relação: é que entre você e eu não existe nem eu nem você.

Os poemas de Rumi eram um eterno diálogo entre ele e Allah, ou Deus. Mas a ideia principal, a que permeia toda a sua obra, e também a de todo místico genuíno, é justamente esta: “entre eu e você, não existe nem eu nem você”. O que existe é o que é, sempre foi e será, justamente porque existe, porque não é nada. Mas isto não se entende com palavras.

Afinal, se fosse necessário pensar através de alguma espécie de linguagem, por mais rudimentar que fosse, então não existiríamos enquanto recém-nascidos, e só passaríamos a existir a partir de dado momento desta vida. Ocorre que mesmo tal ideia é absurda nesse contexto: “passar a existir”. Não faz o menor sentido. Mas isto também não se entende com palavras.

E, mesmo no ápice de sua racionalidade, o próprio Descartes intuiu a mesma coisa, embora talvez não tenha conseguido se expressar através de um conceito cristão. Pois o pensador francês ainda defende a existência de Deus poucas páginas após o trecho que eu trouxe acima. E, para tal, ele se vale de uma lógica que muitos consideram até mesmo infantil: ele afirmou basicamente que o fato de concebermos a ideia da perfeição e do infinito, mesmo sendo imperfeitos e finitos, era a prova da existência de Deus.

Faltou a Descartes justamente ir um pouco além, e mergulhar nos mares abissais do Grande Mistério. Nós não “concebemos” Deus, nós somos Deus. Nós somos o que existe.

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Crédito das imagens: [topo] Corbis (Descartes); [ao longo] Cristofer Maximilian/unsplash.

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27.11.23

Lançamento: Mensagem Sufi de Liberdade Espiritual

As Edições Textos para Reflexão retornam ao sufismo com seu maior divulgador no Ocidente.

Hazrat Inayat Khan nasceu na Índia e desde o berço conviveu com a música e a poesia, eventualmente se tornando reconhecido no Ocidente tanto como músico quanto como místico sufi. Muitas de suas palestras foram compiladas por seus estudantes numa coleção de livros conhecida como A Mensagem Sufi: este é o primeiro deles.

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