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18.10.24

O estoicismo oculto

Se há uma função pela qual o estoicismo se tornou mundialmente conhecido, é a de auxiliar as pessoas a atravessarem momentos de crise. Isso, por si só, já explica o porque da filosofia estoica ter voltado às prateleiras dos títulos mais vendidos em nossas livrarias. Mas, dito assim, “auxiliar as pessoas nos momentos de crise”, pode parecer que o estoicismo é uma espécie de autoajuda, e é mesmo: a raiz da autoajuda, ou seja, conhecer a si mesmo pela prática da filosofia, para assim ajudar a si mesmo a viver uma vida melhor. A questão está, portanto, em não ler o estoicismo de forma superficial, como quem segue uma receita de bolo. Afinal, não é porque este ou aquele guru lhe disse que o estoicismo era isto ou aquilo, que você deveria adentrar esta filosofia, e sim porque você mesmo a leu, conheceu, praticou, e viu que funciona, que de fato modificou sua vida para melhor. A filosofia estoica, afinal, é muito, muito mais do que um fenômeno de marketing.

Os grandes expoentes do estoicismo viveram em sua fase romana. Sêneca (ca. 4 a.C. – 65 d.C.) foi um dos mais célebres pensadores do Império Romano, tendo ao mesmo tempo alcançado altos patamares na Política de seu tempo, ao ponto de ter sido um conselheiro do imperador. Já Epicteto (ca. 60 – 100 d.C.) teve origem muito diversa: nascido como um escravo grego, eventualmente se tornou um homem livre, vivendo e lecionando em Roma até perto de sua morte. Marco Aurélio (121 – 180 d.C.), por sua vez, estava na outra ponta da escala social. Era sobrinho e filho adotivo do imperador Antonino Pio, a quem sucedeu em 161 d.C. para governar o maior império do mundo, enquanto ainda encontrava tempo para escrever suas Meditações.

Seja como for, se foi em Roma que o estoicismo se tornou imensamente popular, com seus filósofos mais preocupados em falar de uma vida virtuosa, voltada para problemas práticos, como mudar o que se pode mudar, e aceitar o que não temos controle para decidir, foi na antiga Grécia que ele nasceu – pela mente de um personagem quase lendário, Zenão de Cítio.

Nascido na ilha do Chipre, na cidade de Cítio, em torno de 332 a.C., Zenão chegou a Atenas aos 22 anos, por volta de 310 a.C. Foi descrito como um homem de pele morena, franzino, sempre de cara séria e vestido com roupas leves. Vivia de maneira frugal e comia moderadamente, sobretudo pão e mel. Amava um bom vinho, embora bebesse raramente. Era sociável até certo ponto, frequentando muitos banquetes, embora temesse a multidão, raramente sendo visto com mais do que duas ou três pessoas ao seu redor. As fontes variam sobre as circunstâncias de sua chegada a Atenas. Elas concordam no fato de que ele era um comerciante que importava mercadorias da Fenícia, mas, segundo alguns, teria perdido toda a sua carga em um naufrágio; e, para outros, vendeu toda a sua mercadoria e depois resolveu se dedicar somente à filosofia, que teria descoberto por acaso ao perambular por Atenas.

Durante aproximadamente uma década, seguiu os ensinamentos de três correntes filosóficas que tinham suas origens no célebre Sócrates: os megáricos dialéticos, dos quais não nos restou quase nada; os cínicos e, sobretudo, a Academia de Platão. Zenão abriu sua própria escola aproximadamente em 301 a.C., sob o pórtico de Atenas conhecido na época como Pórtico das Pinturas (Stoa Poikile), daí o nome de Stoa, do qual derivou o termo “estoicismo”, ou simplesmente “O Pórtico”. O sucesso foi rápido e, por ocasião da sua morte, em torno de 262 a.C., a cidade lhe prestou honrarias dignas de um sábio.

As principais características da escola inaugurada por Zenão, que hoje em dia vemos tão em voga, são a busca por se levar uma vida virtuosa, pautada na ética e no autocontrole, assim como aceitar aquilo que não podemos mudar, e focar naquilo que pode ser feito, isto é, aceitar corajosamente o destino e a morte, e ter uma visão mais racional da vida, avaliando constantemente nossos sentimentos, e os mantendo sob controle.

Mas toda a filosofia antiga, além da parte comportamental e ética, também se propunha a responder questões como “De onde viemos?” e “Para onde vamos?”, com sua própria cosmogonia. No caso do estoicismo, o Cosmos é finito, com a Terra, o Sol, a Lua e os demais planetas e estrelas; porém eles rejeitavam a ideia de um vácuo, um vazio absoluto, pois para eles tudo era conectado de alguma forma.

Antes do Cosmos, no entanto, existia o pneuma, o sopro divino, a substância que é a origem de tudo, a força criativa, isto é, o Deus Primordial que tudo criou a partir de si próprio. Segundo os estoicos, a criação do Universo se inicia com o fogo, que tudo moldou; e, da mesma forma, tudo há de aniquilar no fim dos tempos. No estoicismo, Deus (ou Zeus), como a substância original, dava origem ao universo, aos demais deuses, à natureza e aos seres humanos; mas, ao mesmo tempo, tudo era composto desse Deus-Substância. Seja como for, não sobraram muitas orações estoicas, nada de apelo aos deuses, visto que eles acreditavam que isso não era algo muito necessário em um universo racionalmente ordenado.

Em suas raízes, a filosofia estoica é monista, ou seja: “tudo é um”; e também panteísta, Deus como um princípio associado à natureza, compondo tudo o que existe. Além disso, é materialista, atribuindo um corpo físico até mesmo para a alma, e muito focada na mecânica dualista de “ativo e passivo”, que afirma que tudo o que existe é capaz de agir ou de receber uma ação. O Cosmos material, entretanto, é preenchido com o pneuma, com o sopro divino, que é racional e ordena a realidade.

Embora tenha sido convenientemente deixado de lado por boa parte dos estudiosos acadêmicos, o estoicismo também guarda um lado profundamente espiritual, até mesmo esotérico: dentre as suas principais contribuições para a cena esotérica do Ocidente estão a ideia do perenialismo e a doutrina das correspondências.

É comum, ao pensarmos nos primeiros seres humanos, que os imaginemos como ignorantes, desprovidos de conhecimento e ingênuos, pois somos influenciados pelas ideias da biologia evolutiva, que considera que os humanos vão se tornando mais inteligentes e complexos após muitas e muitas gerações. Para os estoicos, no entanto, era justamente o contrário: para eles os primeiros humanos, surgidos do fogo criador, eram homens e mulheres de profunda capacidade intelectual, com uma natureza até mesmo semidivina, capazes de compreender o Cosmos de forma precisa, sem falhas de interpretação. Eles eram considerados muito superiores, em todos os sentidos, aos homens da época de Zenão. Os estoicos também acreditavam que a primeira linguagem surgiu diretamente do contato do homem com a natureza divina e profunda, sendo que a natureza e a linguagem eram conceitos intimamente conectados.

Por isso a filosofia estoica era tão preocupada com a linguagem, com o significado das palavras, e sempre recomendava que tentássemos encontrar a sua origem profunda, primeva. Tal conhecimento poderia revelar a real natureza da natureza, que era considerada divina. Para os estoicos, as verdade primordiais estavam preservadas na filosofia da natureza, nas leis e nos mitos religiosos.

Aliás, os mitos eram vistos como extremamente importantes, por serem superiores à simples narrativa, assim como pelo seu profundo caráter épico: eles carregavam verdades que precisavam ser interpretadas e compreendidas. Assim, por meio da linguagem e do estudo dos mitos, era possível exercer a piedade, no sentido espiritual do termo, e decifrar o entendimento divino por trás dessas histórias de heróis e deuses. Ou seja, os estoicos foram pioneiros em defender interpretações não literais dos contos mitológicos, como uma forma de se conectar espiritualmente à natureza divina.

Assim, vemos conceitos importantes do estoicismo que viriam a influenciar o perenialismo, ou a filosofia perene, que busca identificar a verdade que une todas as religiões, algo que posteriormente iria ser mais aprofundado por espiritualistas da era moderna, como René Guénon e Helena Blavatsky. Ou seja, eles acreditavam que analisar as diversas crenças poderia dar origem a um corpo de entendimento que é comum a todas elas, que existe uma verdade que é expressa em todas as religiões. E não só isso, como a própria busca do significado das palavras e do entendimento profundo da linguagem, segundo eles, era algo que poderia nos levar à compreensão da natureza.

É engraçado considerar tudo isso como advindo de uma filosofia que hoje em dia é vista como algo tão racional, tão voltado para o dia a dia mundano.

Bem, e a principal conexão estoica com a espiritualidade é justamente a ideia da ligação entre as coisas: os estoicos acreditavam que havia um princípio ordenador, um pneuma, que ligava os objetos e mantinha a natureza racionalmente coesa. E o pneuma não somente conectava as coisas, como também espalhava sinais e símbolos na própria natureza, para que fossem interpretados pelos seres que a contemplassem. Dessa forma, o sábio poderia contemplar o leão, e por meio de uma compreensão oculta, associá-lo ao Sol. Ou ainda identificar tanto o leão quanto o Sol com o ouro. Tal doutrina parte do desejo estoico de buscar compreender as pistas e os sinais deixados pela inteligência divina.

E é por tudo isso que você pode, sim, ser ao mesmo tempo um estoico e um espiritualista, e se dedicar tanto a uma vida virtuosa quanto à busca pelos sinais divinos ocultos na natureza a sua volta. Essas são as verdadeiras raízes do estoicismo, e quando Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio falam em “viver de acordo com a natureza”, são tais ideias que eles têm em mente.


Bibliografia
História da filosofia ocidental, de Bertrand Russell; Epicteto e a sabedoria estoica, de Jean-Joël Duhot; A odisseia da filosofia, de José Francisco Botelho; Canais Esoterica (por Dr. Justin Sledge) e Barbarismo Esotético (por João Drewes) no YouTube.

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Crédito das imagens: Google Image Search

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27.9.24

Lançamento: Da Felicidade, de Sêneca

As Edições Textos para Reflexão retornam ao estoicismo.

Sêneca foi o filósofo estoico que mais deixou obras inteiras para a posteridade, e dentre mais de uma centena de cartas, peças de teatro e diálogos filosóficos, quiçá aquela que melhor resuma o seu pensamento seja justamente a que fala da felicidade possível, De Vita Beata, cujo título foi traduzido do latim como Da Felicidade.

A nova tradução de Rafael Arrais já está disponível na Amazon, em e-book:

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22.8.24

A felicidade possível

Em abril do ano 65 d.C., numa vila nos arredores de Roma, a filosofia ocidental viveu mais um grande drama: após Sócrates, era a vez de outro expoente do amor a sabedoria ter a sua sentença de morte. O seu nome era Sêneca, um espanhol nascido aproximadamente no ano 3 a.C., que teve como pai um habitante instruído de Roma. Ele seguiu carreira política e vinha sendo razoavelmente bem-sucedido quando o imperador Cláudio o exilou na Córsega (em 41 d.C.), por conta de uma birra da imperadora Messalina. Mas a segunda esposa de Cláudio, Agripina, o retirou de seu exílio forçado (em 48 d.C.) e o nomeou tutor de seu filho, então com 11 anos. Sêneca, entretanto, não teve a mesma sorte de Aristóteles: o seu pupilo cresceu para se tornar o imperador Nero, aquele que entrou para a história como o louco que pôs fogo em Roma.

Aos 28 anos, com distúrbios mentais cada vez mais agravados, Nero foi informado da existência de uma conspiração para afastá-lo do trono. Fora de si, ele buscou vingança contra todos a sua volta (incluindo sua própria mãe, seu meio-irmão e sua esposa, além de inúmeros nobres e senadores, todos sentenciados à morte). Embora não houvesse prova alguma do envolvimento de Sêneca na tentativa de golpe, e a despeito de ter sido o seu tutor e depois um ministro leal por mais de uma década, Nero o sentenciou à morte como medida de precaução.

Um centurião foi enviado a sua casa com as instruções do imperador: Sêneca deveria dar cabo da própria vida imediatamente, escolhendo o método que achasse melhor. Os familiares e amigos do filósofo empalideceram e começaram a chorar assim que souberam da notícia. Todavia, segundo o relato de Tácito, um historiador daquela época, Sêneca permaneceu inabalado, e tratou de acalmar todos a sua volta:

Ora, meus amigos, onde está sua filosofia? E o que foi feito da decisão de jamais se deixarem abater diante da iminência de qualquer desgraça que, durante tantos anos, todos temos incentivado uns aos outros a manter? Decerto ninguém aqui ignorava que Nero era cruel! Após matar a própria mãe e o irmão, só lhe restava matar seu conselheiro e tutor.

Em seguida, Sêneca se voltou para sua esposa, Paulina, e lhe deu um longo e afetuoso abraço, recomendando que achasse consolo para aquela tragédia em uma vida bem vivida. Mas ela não podia conceber uma vida sem o filósofo ao seu lado, e lhe pediu permissão para cortar os pulsos juntamente com ele. A princípio, ainda segundo Tácito, ele não impôs barreiras ao seu desejo:

Não impedirei que você dê um exemplo tão admirável. Podemos morrer com uma força moral idêntica, embora o seu fim seja muito mais nobre que o meu.

No entanto, o centurião e seus soldados impediram que aquela tragédia fosse ainda mais cruel, quiçá na esperança de serem lembrados como meros cumpridores de ordens, e não como monstros. Já o que se sucedeu ao próprio Sêneca, segundo os relatos, foi algo extraordinário, quase sobrenatural.

Mesmo após ter cortado os pulsos, as veias dos tornozelos e da parte interna dos joelhos, o sangue simplesmente não fluía com rapidez suficiente de seu corpo já quase septuagenário. Foi então que, lembrando da morte de Sócrates, 464 anos antes, Sêneca pediu a seu médico que lhe preparasse uma taça de cicuta. Afinal, assim como outros expoentes do estoicismo [1], ele tinha a figura de Sócrates na mais alta conta, um verdadeiro exemplo de como era possível vencer as tragédias do mundo com a ajuda da filosofia. Em uma carta escrita anos antes daquele dia, ele já havia deixado registrada tal admiração:

Ele viveu em tempos de guerra e sob o jugo de tiranos (...), mas todas essas provações afetaram tão pouco seu espírito que suas feições jamais se alteraram [na morte]. Que privilégio tão raro e maravilhoso! Ele manteve a mesma atitude até o fim. (...) Em meio a tantos reveses da [deusa] Fortuna, ele foi imperturbável.

Seja como for, o desejo de Sêneca em seguir Sócrates até na morte não pôde ser concretizado. Ele bebeu a cicuta, duas vezes, mas continuava bem vivo! Depois de tantas tentativas em vão, ele finalmente pediu que o colocassem em um banho de vapor, onde sufocou lentamente até a morte, sereno e impassível diante do revés derradeiro.

Com sua morte, Sêneca ajudou a consolidar um dos pilares do estoicismo, uma abordagem comedida e serena em relação as tragédias e os desprazeres da vida. Ao se portar tal qual Sócrates em seus momentos finais, ele comprovou que sua filosofia não era somente algo teórico, metafísico, mas sim extremamente prático. Sêneca tentou ser filósofo 24 horas por dia, e tudo indica que foi extremamente bem-sucedido nisso, do contrário dificilmente teria continuado filósofo nos momentos derradeiros. Foi justamente porque praticou sua filosofia em boa parte da vida que foi, verdadeiramente, um filósofo.

Podemos ter uma boa ideia de como era esta prática pela espécie de reflexão que Sêneca recomendava a todos que fizessem todos os dias, pela manhã, de preferência logo após despertar:

Nenhuma dádiva da [deusa] Fortuna nos pertence de fato.
Nada, seja público ou privado, é estável: os destinos dos homens, assim como os das cidades, estão sujeitos a um turbilhão. Qualquer edificação que tenha levado longos anos para ser erguida, à custa de grande sacrifício e graças ao bom humor dos deuses, pode dispersar-se ou desfazer-se em um único dia. Não, aquele que disse “um dia” exagerou, dando um prazo longo demais para um revés repentino: uma hora, um átimo, é o bastante para promover a queda de impérios.
Com que frequência cidades da Ásia foram destruídas por um único tremor de terra? Quantas aldeias na Síria, ou na Macedônia, já não foram engolidas? Quantas vezes devastações desse tipo já não deixaram o Chipre em ruínas?
Vivemos em meio a coisas que estão, sem qualquer exceção, destinadas a morrer.
Mortal você nasceu; mortal você dá à luz.
Não se surpreenda com nada, espere tudo.

A sua morte não foi o único exemplo de como a sua sabedoria não estava limitada à teoria. Quando exilado na ilha de Córsega, ele se viu repentinamente privado de todos os luxos de que dispunha, afinal aquela ilha em específico estava muito distante de gozar dos benefícios da civilização romana. Assim, as condições de vida no exílio deveriam ter formado um doloroso contraste com a vida em Roma. No entanto, em uma carta a sua mãe, Sêneca explicou como havia conseguido se adaptar às circunstâncias, graças aos anos de meditação pela manhã, regados a água e sopa rala:

Nunca confiei na Fortuna, mesmo quando ela parecia estar oferecendo paz. Todas aquelas bênçãos que generosamente derramou sobre mim  riquezas, cargos, prestígio  eu releguei de tal maneira que ela pudesse retomá-las sem me causar grandes aflições. Sempre mantive grande distância entre mim e seus favores. Ela tão somente me tirou o que havia concedido, portanto nada arrancou de mim.

Há uma espécie de metáfora estoica que resume muito bem tanto o pensamento de Sêneca quanto de outros expoentes dessa filosofia. Ela foi formulada pelo filósofo Zenão de Cítio, fundador do estoicismo, e “repaginada” pelos seus discípulos, Cleantes e Crisipo, sucessivamente. A sua referência mais antiga é relatada pelo sacerdote romano Hipólito:

Quando um cão atrelado a uma carroça quiser acompanhá-la, ele é puxado por ela e avança, fazendo com que seu gesto espontâneo coincida com a necessidade. Mas se o cão decidir não se mexer, o movimento da carroça irá obrigá-lo a segui-la, de qualquer maneira. O mesmo se passa com os homens: mesmo que não queiram, eles são forçados a obedecer o que o destino lhes reservou.

Ou seja, um homem é livre para seguir em qualquer direção que queira. Todavia, como sugere a metáfora, se os seus movimentos são limitados, é melhor acompanhar a direção da carroça do destino do que ser arrastado por ela. Embora o nosso primeiro impulso possa ser o de lutar contra a guinada repentina do veículo, caso ele siga noutra direção, o nosso sofrimento decorrerá exclusivamente de nossa resistência. Se vivemos de acordo com as necessidades da natureza, aceitando tanto a liberdade momentânea de seguirmos na direção desejada quanto a necessidade, igualmente momentânea, de irmos para onde não gostaríamos de ir, então não há realmente nada que possa nos abalar.

Os filósofos antigos tinham um belo nome para tal estado de contentamento: eudaimonia. A sua tradução literal seria algo como “o estado de ser habitado por um bom daemon, ou espírito”. Os estoicos, provavelmente, diriam que é simplesmente o estado alcançado quando “vivemos de acordo com a natureza”. Isto é, quando temos perfeita noção da natureza e do mundo a nossa volta, e sabemos que há coisas que podemos decidir, e outras que nos escapam totalmente o controle. Assim, seria inútil buscar a felicidade todo o tempo, algo literalmente impraticável, de modo que o mais sábio é sabermos discernir a felicidade possível em meio a um mundo impermamente e, muitas vezes, brutalmente dolorido. Mas viver apenas lamentando as dores do mundo seria tão equivocado quanto buscar somente os prazeres, todo o tempo. O estado de contentamento com a vida, eudaimonia, surge justamente da sabedoria que reconhece a felicidade possível, mesmo que a carroça volta e meia nos arraste para aqui e acolá.

Sêneca foi o filósofo estoico que mais deixou obras inteiras para a posteridade, e dentre mais de uma centena de cartas, peças de teatro e diálogos filosóficos, quiçá aquela que melhor resuma o seu pensamento seja justamente a que fala da felicidade possível, De Vita Beata, cujo título foi traduzido do latim como Da Felicidade ou A Vida Feliz.

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[1] O estoicismo é uma escola de filosofia helenística que floresceu na Grécia Antiga e, posteriormente, também na Roma Antiga. Os estoicos acreditavam que a prática das virtudes filosóficas era suficiente para alcançar a eudaimonia (ver restante do artigo) e, consequentemente, uma vida bem vivida. Foi fundada na antiga Atenas por Zenão de Cítio, em torno de 300 a.C.

Crédito das imagens: [topo] Google Image Search (Sêneca); [ao longo] A Morte de Sêneca; pintura de Manuel Domínguez Sánchez (1840-1906); Olu Eletu/unsplash

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