O verdadeiro Eu
Autor: Alan Moore.
Fonte: Acid (em artigo para o site Somos Todos Um, o texto é retirado do documentário "The Mindscape of Alan Moore").
Quando cumprimos a vontade de nosso verdadeiro Eu, nós estamos inevitavelmente cumprindo com a vontade do universo. Na magia, ambas as coisas são indistinguíveis. Cada alma humana não é, de fato, UMA alma humana: é a alma do universo inteiro. E, enquanto você cumprir a vontade do universo, é impossível fazer qualquer coisa errada.
Muitos dos magos como eu entendem que a tradição mágica ocidental é uma busca do Eu com "E" maiúsculo. Esse conhecimento vem da Grande Obra, do ouro que os alquimistas buscavam, a busca da Vontade, da Alma, a coisa que temos dentro que está por trás do intelecto, do corpo e dos sonhos. Nosso dínamo interior, se preferir assim. Agora, esta é, particularmente, a coisa mais importante que podemos obter: o conhecimento do verdadeiro Eu.
Assim, parece haver uma quantidade assustadora de pessoas que não apenas têm urgência por ignorar seu Eu, mas que também parecem ter a urgência por obliterarem-se a si próprias. Isto é horrível, mas ao menos vocês podem entender o desejo de simplesmente desaparecer, com essa consciência, porque é muita responsabilidade realmente possuir tal coisa como uma alma, algo tão precioso. O que acontece se a quebra? O que acontece se a perde? Não seria melhor anestesiá-la, acalmá-la, destruí-la, para não viver com a dor de lutar por ela e tentar mantê-la pura. Creio que é por isso que as pessoas mergulham no álcool, nas drogas, na televisão, em qualquer dos vícios que a cultura nos faz engolir, e pode ser vista como uma tentativa deliberada de destruir qualquer conexão entre nós e a responsabilidade de aceitar e possuir um Eu superior, e então ter que mantê-lo.
Tenho estudado a escola da história do pensamento mágico e o ponto em que começou a dar errado. No meu entender, o ponto em que começa a dar errado é com o monoteísmo. Quero dizer, se olhar a história da magia, verá suas origens nas cavernas, verá suas origens no Xamanismo, no Animismo, na crença de que tudo o que te rodeia, cada árvore, cada rocha, cada animal foi habitado por algum tipo de essência, um tipo de espírito com o qual talvez possamos nos comunicar. E ao centro você tinha um xamã, um visionário, que seria o responsável por canalizar as idéias úteis para a sobrevivência. No momento em que você chega às civilizações clássicas, verá que tudo isto foi formalizado até certo grau. O xamã atuava puramente como um intermediário entre os espíritos e as pessoas. Sua posição na aldeia ou comunidade, imagino, era a de um "encanador espiritual". Cada pessoa no grupo devia ter seu papel: A melhor pessoa durante uma caçada tornava-se o caçador, a pessoa que era melhor pra falar com os espíritos, talvez porque ele ou ela estivesse um pouco louco, um pouco separado do nosso mundo material normal, eles tornavam-se os xamãs. Eles não seriam mestres de uma arte secreta, mas sim, os que simplesmente espalhariam sua informação pela comunidade, porque se acreditava que isto era útil para todo o grupo. Quando vemos o surgimento das culturas clássicas, tudo isso se formalizou para que houvesse panteões de deuses, e cada um destes deuses tinha uma casta de sacerdotes, que até certo ponto atuariam como intermediários, que te instruiriam na adoração a estes deuses. Então, a relação entre os homens e seus deuses, que pode ser vista como a relação entre os humanos e seus "Eus" superiores, não era todavia de um modo direto.
Quando chega o Cristianismo, quando chega o Monoteísmo, de repente tem uma casta sacerdotal movendo-se entre o adorador e o objeto de adoração. Tem uma casta sacerdotal convertendo-se em uma espécie de gerência intermediária entre a humanidade e a divindade que está se buscando. Já não se tem mais uma relação direta com os deuses. Os sacerdotes não têm necessariamente uma relação com Deus. Eles só têm um livro que fala sobre gente que viveu há muito tempo que teve relação direta com a divindade. E assim está bom: Não é preciso ter visões milagrosas, não é preciso ter deuses falando contigo. Na verdade, se você tem algo disto, provavelmente está louco. No mundo moderno, essas coisas não acontecem; as únicas pessoas as quais se permite falar com os deuses, e de um modo unilateral, são os sacerdotes. E o Monoteísmo é, pra mim, uma grande simplificação. Eu quero dizer, a Cabala tem uma grande variedade de deuses, mas acima da escala, da Árvore da Vida, há uma esfera que é o Deus Absoluto, a Mônada. Algo que é indivisível, você sabe. E todos os outros deuses, e, de fato, tudo mais no universo é um tipo de emanação daquele Deus. E isto está bem. Mas, quando você sugere que lá está somente esse único Deus, a uma altura inalcançável acima da humanidade, e que não há nada no meio, você está limitando e simplificando o assunto.
Eu tendo a pensar o Paganismo como um tipo de alfabeto, de linguagem. É como se todos os deuses fossem letras dessa linguagem. Elas expressam nuances, sombras de uma espécie de significado ou certa sutileza de idéias, enquanto o Monoteísmo é só uma vogal, onde tudo está reduzido a uma simples nota, que quem a emite nem sequer a entende.
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Crédito da foto: Rodrigo Furlan (Alan Moore)
Marcadores: Alan Moore, autores selecionados, autores selecionados (21-40), cristianismo, Deus, ego, espírito, magia, mitologia, ocultismo, religião, The Mindscape of Alan Moore
2 comentários:
Com sinceridade, acho que o Alan foi bem até a página 5. Daí em diante misturou alhos com bugalhos e teve altos e baixos.
Somente para ilustrar um fato: nas aldeias o "encanador espiritual", que podia ser o pajé, o feiticeiro ou até o cacique, - não nos esquecendo também do papel das mulheres, - acabava, muitas vezes, por se transformar em autoridade máxima patriarcal ou matriarcal, havendo dentre eles dinastias. E todos os consultavam para fins de adivinhações ou magia - a palavra valiosa e incontestável era desse xamã, feiticeiro ou mago.
O monoteísmo, ou seja as religiões monoteístas, agem por filosofia, doutrina e dogmas com igual ação sobre as mentes dos crentes. Só mudou a roupagem.
Por isso, hoje vivemos um momento impar, chamado por uns de Nova Era, onde a pesquisa do Eu é livre e independente segundo inclinações individuais. Quem é agnóstico tem até nas ciências a possibilidade de avançar grandemente no conhecimento interno, como na psicologia por exemplo.
Alguns bilhões do planeta não são mais ouvintes obrigatórios dos xamãs, padres ou aiatolás! Auscultam eles mesmos as forças da natureza em estreita relação com seu eu interno, e se associam com os novos movimentos que desejam.
O budismo com tradição de mais de 2.500 anos, continua a trazer na sua essência a mensagem da auto-suficiência e não condiciona as noções de liberdade e realização com a obediência a um Criador. Mas sim, ao cumprimento voluntário de regras e preceitos morais e ao amparo da introspecção através da ciência da meditação.
Por fim, a prática da magia com o fito único de desenvolver poderes espirituais é comprovadamente perigosa, e pode muito mais fortalecer o eu-personalidade em detrimento da identidade com o Eu Superior - a melhor parte!
E eis que é aqui que caem muitas brilhantes promessas fortalecendo mais ainda seus laços com as forças terrenas e seus pares de opostos. E surgem as aberrações como Crowley, que falava uma coisa e fazia outra.
Mas estaria também o Alan somente filosofando?
E novamente, Raph, o tema foi muito bem escolhido por sua sensibilidade.
Abraços, e desculpe de novo o tamanho do comentário.
"A palavra valiosa e incontestável era desse xamã, feiticeiro ou mago.
O monoteísmo, ou seja as religiões monoteístas, agem por filosofia, doutrina e dogmas com igual ação sobre as mentes dos crentes. Só mudou a roupagem."
Certamente o que diz faz todo sentido. Existe muito esse mito de que o selvagem, o homem na natureza, era mais "puro" e não "corrompido", etc. - Muitas vezes sabemos que não era bem assim, e muitos dos vicios e erros dos civilizados tiveram exatamente origem na época tribal.
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"Por isso, hoje vivemos um momento impar, chamado por uns de Nova Era, onde a pesquisa do Eu é livre e independente segundo inclinações individuais. Quem é agnóstico tem até nas ciências a possibilidade de avançar grandemente no conhecimento interno, como na psicologia por exemplo."
Perfeito, um bom exemplo é o video que postei logo a seguir, sobre a linguagem e o cérebro, que não deixa ser uma abordagem científica no mesmo campo.
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"Por fim, a prática da magia com o fito único de desenvolver poderes espirituais é comprovadamente perigosa, e pode muito mais fortalecer o eu-personalidade em detrimento da identidade com o Eu Superior - a melhor parte!"
Sem dúvida, mesmo Sócrates já dizia que este era "o maior erro da alma".
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"Mas estaria também o Alan somente filosofando?"
Não, ele é magista/ocultista mesmo, ao que tudo indica.
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"E novamente, Raph, o tema foi muito bem escolhido por sua sensibilidade.
Abraços, e desculpe de novo o tamanho do comentário."
Imagina, você pode comentar o tamanho que quiser :)
Obrigado,
raph
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