Watson: quase humano?
Artigo de Pedro Burgos e Alexandre Versignassi para a revista Superinteressante, edição 290. Os comentários ao final são meus.
"Watson derrota a humanidade." Essa foi uma das manchetes para a vitória de Watson, um computador que ganhou dos melhores competidores que a raça humana tinha disponível no Jeopardy!, um jogo de perguntas e respostas da TV americana. Pudera: Jeopardy! é um jogo complexo. Para humanos, inclusive. São perguntas furtivas, tipo: "Isso é só um nariz sangrando! Você não tem essa doença genética que já foi endêmica entre a realeza europeia. Qual é a doença?". Watson acertou: hemofilia. Acertou essa e outras dezenas de perguntas capciosas - e, como seus concorrentes humanos, não estava ligado à internet. Tudo o que ele tinha à disposição era uma memória de 15 mil gigabytes com alguns milhões de textos arquivados e uma capacidade de processamento equivalente à de 2.800 micros caseiros. Um computadorzão bem programado, só isso.
E tudo isso: para responder perguntas nessa linha, um computador precisa entender a linguagem falada e ter um raciocínio capaz de fazer associações inesperadas. Até fevereiro, isso era exclusividade de humanos. Mas e agora, que perdemos para esse ser gelado? Dá para dizer que a inteligência artificial está se equiparando à nossa inteligência?
O debate está pegando fogo. De um lado, há os que vibram com Watson e similares e acreditam que os computadores vão superar logo a inteligência humana. A outra corrente diz que, por mais complexo e surpreendente que seja o feito de um computador, ele nunca será comparável ao de uma pessoa [1]. Seriam duas inteligências distintas.
O termo "computador" denunciaria isso, por sinal. Até a metade do século 20, "computador" era uma profissão. Eram pessoas responsáveis por fazer cálculos longos - como pegar um monte de dados astronômicos e calcular quando um cometa passaria de novo pela Terra. Pessoas inteligentes, claro. Mas e hoje? Bom, hoje inteligente é quem bola o programa para que o computador resolva as contas.
Toda vez que conseguimos delegar uma função para máquinas, a tarefa perde a nobreza. Isso aconteceu até na derrota do campeão Kasparov para Deep Blue em 1997. Enquanto os defensores da inteligência artificial comemoravam, os da humanidade saíram-se nessa linha: "Bom, xadrez é só um jogo de análise estatística bruta. Não requer inteligência de verdade". Com a vitória no Jeopardy! pode acontecer a mesma coisa: "Computadores vão bem? Ah, o jogo não é nada de mais".
Mas e se habilidades que consideramos pessoais e intransferíveis da nossa espécie puderem ser executadas por máquinas sofisticadas? Como ficamos? Se quisermos reduzir as habilidades do Homo sapiens a instruções de programação, o talento para a poesia, por exemplo, pode ser descrito como um programa capaz de achar uma boa combinação de palavras. E daria para definir um líder político como um sujeito com um bom software para analisar riscos e oportunidades [2].
Não é fantasia. O próprio Watson pode servir para tarefas bem mais humanas que responder perguntas. Programado adequadamente, ele pode fazer diagnósticos com mais precisão que um médico - da mesma forma que uma calculadora de bolso é mais rápida que qualquer gênio da matemática. O supercomputador tem como ouvir relatos orais de pacientes e cruzar os sintomas com o banco de dados de toda a literatura médica em segundos. É mais do que qualquer Dr. House pode fazer. Mas isso torna os humanos dispensáveis? Não. Por mais que uma máquina consiga feitos mirabolantes, ela vai ser sempre uma ferramenta que depende de humanos. Um "computador médico" precisa de médicos para ser programado. Os cérebros humanos por trás são tão importantes que o próprio Watson errou questões por bobeira de programação. Um dos deslizes: perguntaram qual categoria da elite do automobilismo tem o nome de uma tecla de computador. "F-1" era a resposta. Qualquer batedeira tem capacidade de processamento para cruzar uma lista de nomes de teclas com uma de categorias de corridas. Mas a coisa mais próxima que Watson tinha para dizer era "Nascar". Falha dele? Não, dos programadores - a Fórmula 1 é solenemente ignorada nos EUA.
O erro nessas horas é imaginar que as máquinas são uma espécie à parte. Computadores são só alicates e martelos mais complexos [3]. E quando você marreta o dedo não é culpa da natureza do martelo, mas sua, que não soube "programar" a martelada. A vida é melhor com martelos. Com supercomputadores também. A vitória de um é uma vitória da humanidade. E sempre será, mesmo no dia em que uma máquina puder escrever um texto como este bem melhor do que a gente [4].
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[1] Sempre me pareceu que aqueles que acreditam que os computadores estão "quase chegando ao nível humano" tem uma visão um tanto quanto superficial da mente humana, e da existência em geral. Nós nos diferenciamos das máquinas no sentido em que interpretamos informações do mundo a nossa volta, e não apenas as computamos e/ou cruzamos com bancos de dados na memória. Em suma, somos seres de vontade, e nenhuma máquina até hoje chegou sequer próximo de demonstrar alguma vontade. Mesmo Alan Turing jamais imaginou que um computador seria o equivalente de um ser humano, tudo o que disse é que as máquinas poderiam eventualmente fazerem-se passar por um ser humano, nos copiar quase a perfeição - mas até hoje não há máquina que tenha passado no teste de Turing.
[2] Se é que um computador um dia produzirá poesia de qualidade, isso nada mais será do que o resultado da arte de uma programação. Talvez combinada com uma boa dose de conhecimento da gramática, mas uma programação. Ou seja, um dia talvez programadores sejam poetas - máquinas, nem tanto...
[3] E, como qualquer outra ferramenta criada pela humanidade, são fruto de nossa mente em sua potencialidade criativa. Não faz sentido imaginar máquinas como novas espécies, ah não ser que você contrarie a teoria da evolução e afirme que nós mesmos fomos "programados" por alguma inteligência superior. Quem quer que tenha programado em nós essa divina capacidade de ter vontade, não passou o código-fonte adiante.
[4] Esse artigo, talvez até por ser de certa forma despretencioso, é genial em sua capacidade de síntese do que é e do que não é a inteligência artificial. Ora, devemos sim comemorar os avanços da ciência, da mesma forma que comemoramos a escultura de um gênio da arte. Não podemos é acreditar que, tal qual os mitos de gárgulas, nossas esculturas de silício ganharão vida própria, e deixarão de ser apenas uma ferramenta, para se tornar uma nova espécie - programando a si mesma de alguma forma "mágica".
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Crédito da foto: Adrianna Williams/Corbis.
Marcadores: Alexandre Versignassi, autores selecionados, autores selecionados (81-90), ciência, inteligência artificial, Pedro Burgos, Superinteressante, tecnologia
2 comentários:
Muito legal!
Realmente são duas inteligências diferentes.
O duro é que há tantos mistérios por trás da mente humana sendo ignorados...
As pessoas acreditam muito mais no aumento diário de potência dos computadores através de processadores melhores do que no aumento da potência humana através de técnicas de meditação diária ou simplesmente melhorar o estilo de vida.
Pois é, Renato...
Como se a inteligência fosse apenas computacional, e não sentimental, emocional, espiritual, e tantos outros atributos que escapam da capacidade de programação dos engenheiros.
Abs
raph
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