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4.10.11

Deus cego, deusa manca

Mal houve tempo para que ambos os deuses pudessem se esconder no sótão da casa da velha cigana. A vila em que moravam desde que nasceram ficava bem na região de encontro das duas grandes marchas: o exército da bandeira com o cordeiro azul defendia a sua verdade absoluta, mas o exército da bandeira com a meia-lua rubra igualmente defendia sua própria verdade absoluta. Eram ambos os exércitos plenos de certezas; de modo que o resultado da guerra, e quantos inocentes iriam morrer, e quantos iriam escapar, era a única dúvida naquele infeliz horizonte temporal...

A pequena deusa manca, tão criança quanto seu irmão, estava feliz por ele ter nascido cego. Era um garotinho muito sensível, amoroso até demais, via bondade e esperança em quase tudo... Ficaria um tanto traumatizado se pudesse enxergar a selvageria que acomete os homens em suas guerras. Os pedaços decapitados de corpos a voar pelo ar, os rios de sangue se formando pelo solo, o desespero no rosto daqueles jovens que foram quase que arrastados pelas circunstâncias de seus reinos para a linha de frente da batalha. A guerra era, enfim, a imagem da morte. Que bom que o deus cego não podia ver tudo aquilo!

O deus cego agradecia aos céus por ter as pernas fortes e as costas largas (para seu tamanho), de modo que podia carregar sua irmã nas costas. Mesmo naquele sótão, podia ouvir todo o som da batalha. O pior não eram os gritos selvagens ou brados de guerra rapidamente interrompidos por decapitações – muito pior eram os grunhidos e gemidos baixos daqueles que não tiveram a sorte de receber um golpe letal, e eram abandonados no solo ensanguentado, agonizando em mortes lentas.

“Vamos embora agora” – alertou a pequena deusa.

“Como sabe que é seguro sair agora?” – indagou seu irmão.

“Pelo que soube de ouvir falar das batalhas que dizimaram outras vilas, ambos os exércitos enviam uma quantidade X de solados, e quando nenhum lado sai claramente vitorioso, eles retornam as suas bases com os levemente feridos, para que possam se tratar, e receber as novas ordens de seus comandantes. Isso usualmente leva uma quantidade Y de tempo, que é exatamente o tempo que teremos para fugir daqui.”

“Mas como você pode ter certeza? X e Y não me parecem muito confiáveis...”

“E os deuses para os quais reza nos céus, são por acaso confiáveis? Impediram que nossa vila fosse dizimada?”

A pequena deusa foi convincente, e prontamente seu irmão a levantou cuidadosamente e a colocou sobre as próprias costas, de modo que ela apoiava os braços cruzando-os por seus ombros... Suas pernas tortas, defeituosas de nascença, eram substituídas pelo caminhar ágil e vigoroso do deus cego. Por outro lado, ele não saberia onde ir em meio aquela calamidade, não fosse pelos olhos da irmã, que o guiavam em meio a loucura dos homens...

Sua irmã por vezes se tornava angustiada e pessimista em relação ao futuro daqueles reinos e suas verdades absolutas. Às vezes, era quase como se o fato de não conseguir andar também fizesse com que fosse incapaz de seguir adiante com seus pensamentos, projetos e estudos da natureza. Ela já sabia tanto, e queria saber ainda muito mais!

Mas o deus cego, apesar de não saber se guiar muito bem pelas florestas à volta, tinha a convicção inata de que no final tudo acabaria bem... Ele sempre dizia a irmã: “Não tenhamos pressa. Vamos devagar, fazendo as coisas uma de cada vez, mas bem feitas, sobre bases sólidas. Vamos um dia construir um reino de luz nesse mundo, um reino onde não haja mais a busca pelas verdades absolutas, mas a busca pelo amor, e pelas dúvidas que são sagradas”. Sua irmã estava cada vez mais convencida de que aquilo era uma utopia pela qual era inútil lutar... Seu irmão, no entanto, nascera para lutar por utopias.

E conseguiram escapar ilesos da guerra que devastara seu vilarejo. Seguindo o conselho da velha cigana, buscaram pelas ruínas de um antigo castelo de outrora, que jazia na estrada para o fim da terra, e onde nem o reino do cordeiro azul nem o da meia-lua rubra tinham quaisquer interesses em conquistar...

Chegando lá, foram reconstruindo o antigo castelo aos poucos, recrutando todos os refugiados que passavam em torno. Até que o castelo foi reerguido em toda sua glória, e em torno dele uma pequena vila, que depois se transformou em cidade, e depois numa larga metrópole, onde todos eram convidados para viver em harmonia, estudando e compreendendo a natureza com a mesma alegria que oravam aos céus. E diz-se que esse reino até hoje existe, mas que se encontra flutuando acima da terra, e que somente os poetas e os loucos conseguem o encontrar, por vezes, em seus sonhos mais doces e amor...


Este conto foi diretamente inspirado pela pintura “Barefoot” (pés descalços) da jovem Akiane Kramarik, e também pela frase abaixo:

“A ciência sem a religião é manca, a religião sem a ciência é cega.”
(Albert Einstein)


raph'11

***

Crédito da imagem: Akiane Kramarik ("Barefoot", quadro pintado aos 16 anos de idade)

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3 comentários:

Anonymous Kpaxx disse...

Ótimo texto.Parabéns!!!

5/10/11 14:38  
Blogger raph disse...

Obrigado :)

5/10/11 18:47  
Anonymous AD&D disse...

Muito bom Raph

11/10/11 20:01  

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