Orwell e Huxley
Querido Sr. Orwell,
Foi muito gentil da sua parte pedir aos editores que me enviassem uma cópia do seu livro. Ela chegou enquanto eu estava em meio a um trabalho que me demandava muita leitura e consultas de referências; e como a falta de visão faz com que seja necessário racionar a minha leitura, eu tive que esperar por muito tempo antes de ser capaz se embarcar em 1984.
Concordando com tudo o que a crítica escreveu sobre isso, eu não preciso te dizer, mais uma vez, o quão bom e profundamente importante o livro é. [...]
Assim se inicia a carta que Aldous Huxley enviou a George Orwell, escrita em 21 de outubro de 1949, alguns meses após a publicação de 1984, uma das obras mais lidas e discutidas do Ocidente [1]; e alguns meses antes da morte de Orwell, por tuberculose, aos 46 anos.
Quando tinha vinte e poucos anos, Huxley foi professor de francês de um Orwell ainda adolescente, no Eton College, uma famosa escola inglesa. Não há evidências de que tenham tido algum tipo de convívio fora da sala de aula, mas é certo que Orwell foi um ávido leitor da célebre ficção distópica de seu antigo professor, Admirável Mundo Novo, publicado em 1932. Assim, a despeito de terem tido uma amizade mais profunda ou não, fato é que dois dos grandes escritores do século XX leram as principais obras um do outro, e nutriam uma admiração mútua.
Enquanto uma utopia é uma espécie de “Céu erguido na Terra”, um ideal futuro de uma sociedade onde predominam a justiça e o bem estar social, a distopia é justamente o oposto: um futuro sombrio onde geralmente há opressão governamental e quase nenhuma liberdade individual.
Muito já se debateu acerca das duas visões distópicas descritas nessas obras. A princípio, eles se parecem mesmo antagônicas, tanto que em sua carta a Orwell, o próprio Huxley faz uma defesa da sua própria visão de um futuro sombrio da democracia. Essa comparação foi aprofundada em 1985, num livreto do teórico da comunicação americano Neil Postman, intitulado Amusing ourselves to death (Nos divertindo até morrer). Trago um trecho da obra abaixo:
“Na visão de Huxley, não é necessário nenhum Grande Irmão [grande líder totalitário] para despojar a população de autonomia, maturidade ou história. Ela acabaria amando sua opressão, adorando as tecnologias que destroem sua capacidade de pensar. Orwell temia aqueles que proibiriam os livros. Huxley temia que não haveria motivo para proibir um livro, pois não haveria ninguém que quisesse lê-los. Orwell temia aqueles que nos privariam de informação. Huxley, aqueles que nos dariam tanta que seríamos reduzidos à passividade e ao egoísmo. Orwell temia que a verdade fosse escondida de nós. Huxley, que fosse afogada num mar de irrelevância.”
No futuro pintado por Huxley, a sociedade está dividida em castas. Crianças projetadas geneticamente saem de fábricas de bebês e são condicionadas a exercer das funções mais nobres às mais abjetas. Não há mães, pais ou casamentos. O sexo é livre. A diversão está disponível na forma de jogos esportivos, cinema multissensorial e de uma droga que garante o bem-estar sem efeito colateral: o soma. Restaram na Terra dez áreas civilizadas e uns poucos territórios selvagens, onde grupos nativos ainda preservam costumes e tradições primitivos, como família ou religião. “O mundo agora é estável”, diz um líder civilizado. “As pessoas são felizes, têm o que desejam e nunca desejam o que não podem ter. Sentem-se bem, estão em segurança; nunca adoecem; não têm medo da morte; não se acham sobrecarregadas de pais e mães; não têm esposas, nem filhos, nem amantes por quem possam sofrer emoções violentas; são condicionadas de tal modo que praticamente não podem deixar de se portar como devem. E se, por acaso, alguma coisa andar mal, há o soma.”
Aqui é preciso destacar que nem utopias nem distopias existem no mundo real. O exercício de tentar adivinhar para onde nosso mundo está caminhando, se para a distopia de Huxley ou de Orwell, é algo curioso, muitas vezes interessante, mas nem sempre tão produtivo quanto se pode imaginar. Muitas vezes caímos na armadilha de imaginar que o mundo deve ser preto ou branco: ou se encaminha totalmente para um lado, ou para outro. Quando na verdade a realidade é composta por infindáveis miríades de cinza.
Fato é que Orwell e Huxely falavam sobre mundos diferentes em suas obras. Enquanto Orwell claramente fazia uma caricatura sombria de uma ditadura nos moldes fascistas e stalinistas, Huxley estava bem mais preocupado em criticar a cultura de massa alienante e o consumismo demasiadamente hedonista das democracias ocidentais. Além disso, é preciso lembrar do contexto específico em que 1984 é narrado, do ponto de vista de um membro do Partido [algo mais ou menos equivalente ao Partido Comunista da Coreia do Norte de hoje], que compunha uma modesta minoria dentro da sociedade como um todo. Trago um trecho do início do Cap. 7 da Parte 1 da obra que ilustra isso muito bem:
“Se havia esperança, ela DEVIA estar nos proletas [proletários; ou o povão em geral], porque só neles, naquelas massas desdenhadas, naquele enxame de gente, nos 85% da população da Oceania [uma das três superpotências do mundo], havia alguma possibilidade de que se gerasse a força capaz de destruir o Partido.”
E, se formos analisar a obra mais a fundo, veremos que, tal qual em Admirável Mundo Novo, o povão em geral também é mantido anestesiado de qualquer tipo de pensamento revolucionário através de distrações como a loteria, o noticiário de crimes e guerras e a boa e velha cerveja. O Partido de Orwell policia de maneira ferrenha os seus próprios membros, mas deixa que o restante de população desfrute de certa liberdade. Assim, embora o conhecimento em geral seja filtrado e devidamente censurado pelo Estado totalitário, nada impede que um proletário de Oceania beba a sua cerveja no final do dia e se divirta, por exemplo, com um jogo de dardos. Tons de cinza, tons de cinza...
Outra característica que separa o foco narrativo de ambas as obras é a questão religiosa. Enquanto em 1984 as religiões foram abolidas, o personagem principal é ateu (no máximo um humanista agnóstico), e todas as questões religiosas não passam de um pano de fundo para a narrativa política, na obra de Huxley há uma crítica clara e contundente à ausência de espiritualidade da sociedade dita civilizada em relação àqueles que são chamados de selvagens, vivem fora das metrópoles e ainda praticam costumes primitivos. Ora, como um perenialista, Huxley está claramente defendendo que a religião antiga não é somente importante, como essencial para que o indivíduo alcance uma vida digna e plena.
A filosofia perene, ou perenialismo, é um ponto de vista da espiritualidade moderna que enxerga todas as tradições religiosas do mundo como compartilhadoras de uma verdade única, sendo ela metafísica ou a origem da qual todo o conhecimento esotérico e exotérico se irradiou. O perenialismo tem suas raízes no interesse renascentista pelo neoplatonismo e sua ideia do Uno, da qual toda a existência emana.
Anos após Admirável Mundo Novo ter sido publicado, Huxley continuava a propagar uma interpretação universalista das religiões do mundo, inspirada por vertentes do hinduísmo. Sua obra A Filosofia Perene, de 1945, traz mais luz sobre o tema:
“A filosofia perene é expressa de maneira mais sucinta na fórmula sânscrita, tat tvam asi (‘Isto és tu’); o Atman, ou Eu eterno imanente, é um com Brahman, o Princípio Absoluto de toda a existência; e a finalidade última de todo ser humano é descobrir o fato por si mesmo, descobrir quem ele realmente é.”
Dessa forma, enquanto Orwell procurava alertar seus leitores para os graves perigos das doutrinas políticas que podiam descambar para um Estado totalitário, uma ditadura, Huxley trazia outra espécie de alerta, que dizia mais sobre o perigo de uma sociedade moderna inteiramente afastada da espiritualidade, e seduzida pelas drogas e o hedonismo exacerbado [2]. Enquanto 1984 focava quase que unicamente na política, Admirável Mundo Novo dava também um grande espaço para a religiosidade humana. Assim, o tipo de comparação que Postman nos trouxe em 1985 deve ser considerado em seu contexto limitado. Do contrário, corremos o risco de vermos demônios imaginários onde eles não existem, e nos esquecermos de que o mundo real é muito mais complexo, muito mais acinzentado, do que uma obra de ficção.
***
[1] Eu também traduzi as duas principais obras de Orwell pelas Edições Textos para Reflexão. Leia A Revolução dos Bichos e 1984 no seu Kindle, pelo preço de um café (os links levam para a loja da Amazon).
[2] Sei que pode parecer que Huxley era um conservador do tipo avesso a toda experimentação com drogas e afins. Mas, tanto pelo contrário, Huxley chegou a descrever sua experiência com uma droga alucinógena, a mescalina, que é até hoje o seu segundo livro mais famoso, intitulado As Portas da Percepção.
Crédito das imagens: [topo] Google Image Search (Orwell à esquerda, Huxley à direita); [ao longo] Autor anônimo (a cidade de Londres na obra 1984); Bill Butcher (ilustração para o Financial Times; Brave New World é o título original da obra de Huxley).
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