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26.11.24

Hafiz, aquele que fala do que nos transcende

O amor não tem limites, é eterno, é para sempre.

Hafiz acreditava no amor como a causa de todas as coisas.

Khwaja Shamsuddin Mohammad Hafiz Shirazi (c. 1315 – 1390), conhecido como Hafiz, é um dos mais célebres poetas persas, cujos poemas capturaram os corações e as mentes de inúmeras pessoas ao longo dos séculos. Sua coleção de poemas acerca do amor rivaliza tão somente com Jalal ud-Din Rumi em termos de popularidade e influência (Rumi foi um poeta místico do séc. XIII que viveu na atual Turquia).

A energia mística do amor e da paixão em seus poemas tem sido uma fonte de inspiração para muitos poetas, compositores e artistas em geral. A poesia de Hafiz é um precioso tesouro de riquezas simbólicas, mas também traz consigo uma paradoxal ambiguidade de imagens. Ele se vale de tais ferramentas para transmitir as emoções mais profundas da melhor maneira possível.

As odes de Hafiz, conhecidas como gazeis (ou gazals), são muitas vezes carregadas de emoções variadas, e revelam o poeta na sua busca por Allah (ou Deus) em sua própria alma.

Ó belo garçom,
traga a taça de vinho,
coloque-a em meus lábios.

A via do amor parecia fácil em seu início,
mas o que surgiu dela
foram as mais diversas provações.

Hafiz foi um escritor e cientista que viveu na cidade de Shiraz (no atual Irã) no séc. XIV, quando ela fazia parte do antigo reino persa. O nome de seu pai era Baha ud-Din Muhammad, um comerciante de carvão, mas ele morreu de forma trágica quando o poeta ainda era uma criança. Em sua adolescência, Hafiz foi aprendiz de padeiro e viveu uma vida cheia de dificuldades junto com a mãe. Com o tempo, no entanto, ele dominou todos os aspectos religiosos e científicos ao seu alcance, de modo que no início da fase adulta ele já era reconhecido como um grande expoente da literatura e das ciências em toda a região.

É interessante saber que ele havia memorizado por completo o Alcorão, o livro sagrado do Islam, e foi justamente por isso que lhe deram o nome de Hafiz, cuja tradução é “memorizador”.

Ele também era conhecido como Lesan Al-Ghayb, ou “aquele que fala sobre o oculto, o desconhecido, o que nos transcende” (séculos depois, o criador da série de ficção científica Duna, Frank Herbert, emprestou esse conceito para o personagem principal da trama). Hafiz parecia falar daquilo que existe além das palavras.

Um cavaleiro sombrio, o medo das ondas,
um redemoinho tão implacável!
Como pode o fardo tão leve das praias
saber da angústia em nossas profundezas?

A visão de mundo do poeta é inseparável do contexto do Islam medieval, assim como do gênero da poesia de amor persa, mas ainda assim é impossível defini-lo com exatidão. Hafiz é um místico que zomba dos místicos. Ele é conhecido como aquele que compreendeu o Alcorão com o coração, e mesmo assim não se cansa de fazer graça com a hipocrisia dos religiosos. Ele demonstra sua própria vocação espiritual, enquanto sua poesia está repleta de referências à intoxicação do vinho, algo que pode ser literal para alguns, e puramente simbólico para outros.

Vá, vá e cuide dos seus próprios assuntos.
Por que você me culpa?
Meu coração se rendeu ao amor,
o que você sabe sobre tal rendição?

O aspecto mais sublime da poesia de Hafiz é justamente a sua ambiguidade. Em seus poemas, os temas são organizados de forma tão intrincada que podem ter diferentes impactos na alma do leitor, de acordo com o seu estado emocional no ato da leitura.

Muitos dos seus poemas são até hoje usados como provérbios e ditados, sobretudo na região da antiga Pérsia, atual Irã. Já o seu senso travesso de ironia atraiu muitos poetas e compositores ocidentais ao longo dos séculos – incluindo Goethe, Brahms e Wagner.

O Divan (termo persa que significa literalmente “coleção de poemas”) de Hafiz contém 500 sonetos, 42 quadras e diversas odes que ele escreveu ao longo de meio século. Ele foi publicado em dezenas de variações, sendo improvável que qualquer uma delas possua de fato a totalidade de sua obra poética.

O seu túmulo está localizado ao norte de Shiraz, em um belo monumento cercado de bosques, onde a fragrância das flores se faz presente na maior parte do ano. Nos dias atuais, é uma das atrações turísticas mais importantes e visitadas do Irã.

Hafiz acreditava que o caminho para Allah residia nos mistérios do amor. Para ele, o amor não apenas criou este mundo, como é a resposta para todas as questões que afligem nossa alma.

Eu segui pelo meu próprio caminho no amor,
e hoje tenho uma má reputação.
Mas como poderia um segredo permanecer oculto,
se rodasse pelas línguas de todas as rodas de fofoca?

Se é a presença do Amado o que busca, Hafiz,
por que se importar com o que dirão de ti?
Permaneça junto Aquele que reside em seu coração,
deixe de lado os delírios de grandeza.

***

Após ter lançado dois livros com poemas de Rumi selecionados e traduzidos de versões inglesas, chegou a hora de mergulhar na poesia de Hafiz. Ao longo de 2025 estarei intercalando outras traduções com mais uma jornada no misticismo sufi. Assim que tiver mais notícias, trarei aqui no blog.

Rafael Arrais

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Crédito das imagens: Mahmoud Farshchian (artista iraniano inspirado pela obra de Hafiz)

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18.10.24

O estoicismo oculto

Se há uma função pela qual o estoicismo se tornou mundialmente conhecido, é a de auxiliar as pessoas a atravessarem momentos de crise. Isso, por si só, já explica o porquê da filosofia estoica ter voltado às prateleiras dos títulos mais vendidos em nossas livrarias. Mas, dito assim, “auxiliar as pessoas nos momentos de crise”, pode parecer que o estoicismo é uma espécie de autoajuda, e é mesmo: a raiz da autoajuda, ou seja, conhecer a si mesmo pela prática da filosofia, para assim ajudar a si mesmo a viver uma vida melhor. A questão está, portanto, em não ler o estoicismo de forma superficial, como quem segue uma receita de bolo. Afinal, não é porque este ou aquele guru lhe disse que o estoicismo era isto ou aquilo, que você deveria adentrar esta filosofia, e sim porque você mesmo a leu, conheceu, praticou, e viu que funciona, que de fato modificou sua vida para melhor. A filosofia estoica, afinal, é muito, muito mais do que um fenômeno de marketing.

Os grandes expoentes do estoicismo viveram em sua fase romana. Sêneca (ca. 3 a.C. – 65 d.C.) foi um dos mais célebres pensadores do Império Romano, tendo ao mesmo tempo alcançado altos patamares na Política de seu tempo, ao ponto de ter sido um conselheiro do imperador. Já Epicteto (ca. 50 – 135 d.C.) teve origem muito diversa: nascido como um escravo grego, eventualmente se tornou um homem livre, vivendo e lecionando em Roma até perto de sua morte. Marco Aurélio (121 – 180 d.C.), por sua vez, estava na outra ponta da escala social. Era sobrinho e filho adotivo do imperador Antonino Pio, a quem sucedeu em 161 d.C. para governar o maior império do mundo, enquanto ainda encontrava tempo para escrever suas Meditações.

Seja como for, se foi em Roma que o estoicismo se tornou imensamente popular, com seus filósofos mais preocupados em falar de uma vida virtuosa, voltada para problemas práticos, como mudar o que se pode mudar, e aceitar o que não temos controle para decidir, foi na antiga Grécia que ele nasceu – pela mente de um personagem quase lendário, Zenão de Cítio.

Nascido na ilha do Chipre, na cidade de Cítio, em torno de 332 a.C., Zenão chegou a Atenas aos 22 anos, por volta de 310 a.C. Foi descrito como um homem de pele morena, franzino, sempre de cara séria e vestido com roupas leves. Vivia de maneira frugal e comia moderadamente, sobretudo pão e mel. Amava um bom vinho, embora bebesse raramente. Era sociável até certo ponto, frequentando muitos banquetes, embora temesse a multidão, raramente sendo visto com mais do que duas ou três pessoas ao seu redor. As fontes variam sobre as circunstâncias de sua chegada a Atenas. Elas concordam no fato de que ele era um comerciante que importava mercadorias da Fenícia, mas, segundo alguns, teria perdido toda a sua carga em um naufrágio; e, para outros, vendeu toda a sua mercadoria e depois resolveu se dedicar somente à filosofia, que teria descoberto por acaso ao perambular por Atenas.

Durante aproximadamente uma década, seguiu os ensinamentos de três correntes filosóficas que tinham suas origens no célebre Sócrates: os megáricos dialéticos, dos quais não nos restou quase nada; os cínicos e, sobretudo, a Academia de Platão. Zenão abriu sua própria escola aproximadamente em 301 a.C., sob o pórtico de Atenas conhecido na época como Pórtico das Pinturas (Stoa Poikile), daí o nome de Stoa, do qual derivou o termo “estoicismo”, ou simplesmente “O Pórtico”. O sucesso foi rápido e, por ocasião da sua morte, em torno de 262 a.C., a cidade lhe prestou honrarias dignas de um sábio.

As principais características da escola inaugurada por Zenão, que hoje em dia vemos tão em voga, são a busca por se levar uma vida virtuosa, pautada na ética e no autocontrole, assim como aceitar aquilo que não podemos mudar, e focar naquilo que pode ser feito, isto é, aceitar corajosamente o destino e a morte, e ter uma visão mais racional da vida, avaliando constantemente nossos sentimentos, e os mantendo sob controle.

Mas toda a filosofia antiga, além da parte comportamental e ética, também se propunha a responder questões como “De onde viemos?” e “Para onde vamos?”, com sua própria cosmogonia. No caso do estoicismo, o Cosmos é finito, com a Terra, o Sol, a Lua e os demais planetas e estrelas; porém eles rejeitavam a ideia de um vácuo, um vazio absoluto, pois para eles tudo era conectado de alguma forma.

Antes do Cosmos, no entanto, existia o pneuma, o sopro divino, a substância que é a origem de tudo, a força criativa, isto é, o Deus Primordial que tudo criou a partir de si próprio. Segundo os estoicos, a criação do Universo se inicia com o fogo, que tudo moldou; e, da mesma forma, tudo há de aniquilar no fim dos tempos. No estoicismo, Deus (ou Zeus), como a substância original, dava origem ao universo, aos demais deuses, à natureza e aos seres humanos; mas, ao mesmo tempo, tudo era composto desse Deus-Substância. Seja como for, não sobraram muitas orações estoicas, nada de apelo aos deuses, visto que eles acreditavam que isso não era algo muito necessário em um universo racionalmente ordenado.

Em suas raízes, a filosofia estoica é monista, ou seja: “tudo é um”; e também panteísta, Deus como um princípio associado à natureza, compondo tudo o que existe. Além disso, é materialista, atribuindo um corpo físico até mesmo para a alma, e muito focada na mecânica dualista de “ativo e passivo”, que afirma que tudo o que existe é capaz de agir ou de receber uma ação. O Cosmos material, entretanto, é preenchido com o pneuma, com o sopro divino, que é racional e ordena a realidade.

Embora tenha sido convenientemente deixado de lado por boa parte dos estudiosos acadêmicos, o estoicismo também guarda um lado profundamente espiritual, até mesmo esotérico: dentre as suas principais contribuições para a cena esotérica do Ocidente estão a ideia do perenialismo e a doutrina das correspondências.

É comum, ao pensarmos nos primeiros seres humanos, que os imaginemos como ignorantes, desprovidos de conhecimento e ingênuos, pois somos influenciados pelas ideias da biologia evolutiva, que considera que os humanos vão se tornando mais inteligentes e complexos após muitas e muitas gerações. Para os estoicos, no entanto, era justamente o contrário: para eles os primeiros humanos, surgidos do fogo criador, eram homens e mulheres de profunda capacidade intelectual, com uma natureza até mesmo semidivina, capazes de compreender o Cosmos de forma precisa, sem falhas de interpretação. Eles eram considerados muito superiores, em todos os sentidos, aos homens da época de Zenão. Os estoicos também acreditavam que a primeira linguagem surgiu diretamente do contato do homem com a natureza divina e profunda, sendo que a natureza e a linguagem eram conceitos intimamente conectados.

Por isso a filosofia estoica era tão preocupada com a linguagem, com o significado das palavras, e sempre recomendava que tentássemos encontrar a sua origem profunda, primeva. Tal conhecimento poderia revelar a real natureza da natureza, que era considerada divina. Para os estoicos, as verdade primordiais estavam preservadas na filosofia da natureza, nas leis e nos mitos religiosos.

Aliás, os mitos eram vistos como extremamente importantes, por serem superiores à simples narrativa, assim como pelo seu profundo caráter épico: eles carregavam verdades que precisavam ser interpretadas e compreendidas. Assim, por meio da linguagem e do estudo dos mitos, era possível exercer a piedade, no sentido espiritual do termo, e decifrar o entendimento divino por trás dessas histórias de heróis e deuses. Ou seja, os estoicos foram pioneiros em defender interpretações não literais dos contos mitológicos, como uma forma de se conectar espiritualmente à natureza divina.

Assim, vemos conceitos importantes do estoicismo que viriam a influenciar o perenialismo, ou a filosofia perene, que busca identificar a verdade que une todas as religiões, algo que posteriormente iria ser mais aprofundado por espiritualistas da era moderna, como René Guénon e Helena Blavatsky. Ou seja, eles acreditavam que analisar as diversas crenças poderia dar origem a um corpo de entendimento que é comum a todas elas, que existe uma verdade que é expressa em todas as religiões. E não só isso, como a própria busca do significado das palavras e do entendimento profundo da linguagem, segundo eles, era algo que poderia nos levar à compreensão da natureza.

É engraçado considerar tudo isso como advindo de uma filosofia que hoje em dia é vista como algo tão racional, tão voltado para o dia a dia mundano.

Bem, e a principal conexão estoica com a espiritualidade é justamente a ideia da ligação entre as coisas: os estoicos acreditavam que havia um princípio ordenador, um pneuma, que ligava os objetos e mantinha a natureza racionalmente coesa. E o pneuma não somente conectava as coisas, como também espalhava sinais e símbolos na própria natureza, para que fossem interpretados pelos seres que a contemplassem. Dessa forma, o sábio poderia contemplar o leão, e por meio de uma compreensão oculta, associá-lo ao Sol. Ou ainda identificar tanto o leão quanto o Sol com o ouro. Tal doutrina parte do desejo estoico de buscar compreender as pistas e os sinais deixados pela inteligência divina.

E é por tudo isso que você pode, sim, ser ao mesmo tempo um estoico e um espiritualista, e se dedicar tanto a uma vida virtuosa quanto à busca pelos sinais divinos ocultos na natureza a sua volta. Essas são as verdadeiras raízes do estoicismo, e quando Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio falam em “viver de acordo com a natureza”, são tais ideias que eles têm em mente.


Bibliografia
História da filosofia ocidental, de Bertrand Russell; Epicteto e a sabedoria estoica, de Jean-Joël Duhot; A odisseia da filosofia, de José Francisco Botelho; Canais Esoterica (por Dr. Justin Sledge) e Barbarismo Esotérico (por João Drewes) no YouTube.

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Crédito das imagens: Google Image Search

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22.8.24

A felicidade possível

Em abril do ano 65 d.C., numa vila nos arredores de Roma, a filosofia ocidental viveu mais um grande drama: após Sócrates, era a vez de outro expoente do amor a sabedoria ter a sua sentença de morte. O seu nome era Sêneca, um espanhol nascido aproximadamente no ano 3 a.C., que teve como pai um habitante instruído de Roma. Ele seguiu carreira política e vinha sendo razoavelmente bem-sucedido quando o imperador Cláudio o exilou na Córsega (em 41 d.C.), por conta de uma birra da imperadora Messalina. Mas a segunda esposa de Cláudio, Agripina, o retirou de seu exílio forçado (em 48 d.C.) e o nomeou tutor de seu filho, então com 11 anos. Sêneca, entretanto, não teve a mesma sorte de Aristóteles: o seu pupilo cresceu para se tornar o imperador Nero, aquele que entrou para a história como o louco que pôs fogo em Roma.

Aos 28 anos, com distúrbios mentais cada vez mais agravados, Nero foi informado da existência de uma conspiração para afastá-lo do trono. Fora de si, ele buscou vingança contra todos a sua volta (incluindo sua própria mãe, seu meio-irmão e sua esposa, além de inúmeros nobres e senadores, todos sentenciados à morte). Embora não houvesse prova alguma do envolvimento de Sêneca na tentativa de golpe, e a despeito de ter sido o seu tutor e depois um ministro leal por mais de uma década, Nero o sentenciou à morte como medida de precaução.

Um centurião foi enviado a sua casa com as instruções do imperador: Sêneca deveria dar cabo da própria vida imediatamente, escolhendo o método que achasse melhor. Os familiares e amigos do filósofo empalideceram e começaram a chorar assim que souberam da notícia. Todavia, segundo o relato de Tácito, um historiador daquela época, Sêneca permaneceu inabalado, e tratou de acalmar todos a sua volta:

Ora, meus amigos, onde está sua filosofia? E o que foi feito da decisão de jamais se deixarem abater diante da iminência de qualquer desgraça que, durante tantos anos, todos temos incentivado uns aos outros a manter? Decerto ninguém aqui ignorava que Nero era cruel! Após matar a própria mãe e o irmão, só lhe restava matar seu conselheiro e tutor.

Em seguida, Sêneca se voltou para sua esposa, Paulina, e lhe deu um longo e afetuoso abraço, recomendando que achasse consolo para aquela tragédia em uma vida bem vivida. Mas ela não podia conceber uma vida sem o filósofo ao seu lado, e lhe pediu permissão para cortar os pulsos juntamente com ele. A princípio, ainda segundo Tácito, ele não impôs barreiras ao seu desejo:

Não impedirei que você dê um exemplo tão admirável. Podemos morrer com uma força moral idêntica, embora o seu fim seja muito mais nobre que o meu.

No entanto, o centurião e seus soldados impediram que aquela tragédia fosse ainda mais cruel, quiçá na esperança de serem lembrados como meros cumpridores de ordens, e não como monstros. Já o que se sucedeu ao próprio Sêneca, segundo os relatos, foi algo extraordinário, quase sobrenatural.

Mesmo após ter cortado os pulsos, as veias dos tornozelos e da parte interna dos joelhos, o sangue simplesmente não fluía com rapidez suficiente de seu corpo já quase septuagenário. Foi então que, lembrando da morte de Sócrates, 464 anos antes, Sêneca pediu a seu médico que lhe preparasse uma taça de cicuta. Afinal, assim como outros expoentes do estoicismo [1], ele tinha a figura de Sócrates na mais alta conta, um verdadeiro exemplo de como era possível vencer as tragédias do mundo com a ajuda da filosofia. Em uma carta escrita anos antes daquele dia, ele já havia deixado registrada tal admiração:

Ele viveu em tempos de guerra e sob o jugo de tiranos (...), mas todas essas provações afetaram tão pouco seu espírito que suas feições jamais se alteraram [na morte]. Que privilégio tão raro e maravilhoso! Ele manteve a mesma atitude até o fim. (...) Em meio a tantos reveses da [deusa] Fortuna, ele foi imperturbável.

Seja como for, o desejo de Sêneca em seguir Sócrates até na morte não pôde ser concretizado. Ele bebeu a cicuta, duas vezes, mas continuava bem vivo! Depois de tantas tentativas em vão, ele finalmente pediu que o colocassem em um banho de vapor, onde sufocou lentamente até a morte, sereno e impassível diante do revés derradeiro.

Com sua morte, Sêneca ajudou a consolidar um dos pilares do estoicismo, uma abordagem comedida e serena em relação as tragédias e os desprazeres da vida. Ao se portar tal qual Sócrates em seus momentos finais, ele comprovou que sua filosofia não era somente algo teórico, metafísico, mas sim extremamente prático. Sêneca tentou ser filósofo 24 horas por dia, e tudo indica que foi extremamente bem-sucedido nisso, do contrário dificilmente teria continuado filósofo nos momentos derradeiros. Foi justamente porque praticou sua filosofia em boa parte da vida que foi, verdadeiramente, um filósofo.

Podemos ter uma boa ideia de como era esta prática pela espécie de reflexão que Sêneca recomendava a todos que fizessem todos os dias, pela manhã, de preferência logo após despertar:

Nenhuma dádiva da [deusa] Fortuna nos pertence de fato.
Nada, seja público ou privado, é estável: os destinos dos homens, assim como os das cidades, estão sujeitos a um turbilhão. Qualquer edificação que tenha levado longos anos para ser erguida, à custa de grande sacrifício e graças ao bom humor dos deuses, pode dispersar-se ou desfazer-se em um único dia. Não, aquele que disse “um dia” exagerou, dando um prazo longo demais para um revés repentino: uma hora, um átimo, é o bastante para promover a queda de impérios.
Com que frequência cidades da Ásia foram destruídas por um único tremor de terra? Quantas aldeias na Síria, ou na Macedônia, já não foram engolidas? Quantas vezes devastações desse tipo já não deixaram o Chipre em ruínas?
Vivemos em meio a coisas que estão, sem qualquer exceção, destinadas a morrer.
Mortal você nasceu; mortal você dá à luz.
Não se surpreenda com nada, espere tudo.

A sua morte não foi o único exemplo de como a sua sabedoria não estava limitada à teoria. Quando exilado na ilha de Córsega, ele se viu repentinamente privado de todos os luxos de que dispunha, afinal aquela ilha em específico estava muito distante de gozar dos benefícios da civilização romana. Assim, as condições de vida no exílio deveriam ter formado um doloroso contraste com a vida em Roma. No entanto, em uma carta a sua mãe, Sêneca explicou como havia conseguido se adaptar às circunstâncias, graças aos anos de meditação pela manhã, regados a água e sopa rala:

Nunca confiei na Fortuna, mesmo quando ela parecia estar oferecendo paz. Todas aquelas bênçãos que generosamente derramou sobre mim  riquezas, cargos, prestígio  eu releguei de tal maneira que ela pudesse retomá-las sem me causar grandes aflições. Sempre mantive grande distância entre mim e seus favores. Ela tão somente me tirou o que havia concedido, portanto nada arrancou de mim.

Há uma espécie de metáfora estoica que resume muito bem tanto o pensamento de Sêneca quanto de outros expoentes dessa filosofia. Ela foi formulada pelo filósofo Zenão de Cítio, fundador do estoicismo, e “repaginada” pelos seus discípulos, Cleantes e Crisipo, sucessivamente. A sua referência mais antiga é relatada pelo sacerdote romano Hipólito:

Quando um cão atrelado a uma carroça quiser acompanhá-la, ele é puxado por ela e avança, fazendo com que seu gesto espontâneo coincida com a necessidade. Mas se o cão decidir não se mexer, o movimento da carroça irá obrigá-lo a segui-la, de qualquer maneira. O mesmo se passa com os homens: mesmo que não queiram, eles são forçados a obedecer o que o destino lhes reservou.

Ou seja, um homem é livre para seguir em qualquer direção que queira. Todavia, como sugere a metáfora, se os seus movimentos são limitados, é melhor acompanhar a direção da carroça do destino do que ser arrastado por ela. Embora o nosso primeiro impulso possa ser o de lutar contra a guinada repentina do veículo, caso ele siga noutra direção, o nosso sofrimento decorrerá exclusivamente de nossa resistência. Se vivemos de acordo com as necessidades da natureza, aceitando tanto a liberdade momentânea de seguirmos na direção desejada quanto a necessidade, igualmente momentânea, de irmos para onde não gostaríamos de ir, então não há realmente nada que possa nos abalar.

Os filósofos antigos tinham um belo nome para tal estado de contentamento: eudaimonia. A sua tradução literal seria algo como “o estado de ser habitado por um bom daemon, ou espírito”. Os estoicos, provavelmente, diriam que é simplesmente o estado alcançado quando “vivemos de acordo com a natureza”. Isto é, quando temos perfeita noção da natureza e do mundo a nossa volta, e sabemos que há coisas que podemos decidir, e outras que nos escapam totalmente o controle. Assim, seria inútil buscar a felicidade todo o tempo, algo literalmente impraticável, de modo que o mais sábio é sabermos discernir a felicidade possível em meio a um mundo impermamente e, muitas vezes, brutalmente dolorido. Mas viver apenas lamentando as dores do mundo seria tão equivocado quanto buscar somente os prazeres, todo o tempo. O estado de contentamento com a vida, eudaimonia, surge justamente da sabedoria que reconhece a felicidade possível, mesmo que a carroça volta e meia nos arraste para aqui e acolá.

Sêneca foi o filósofo estoico que mais deixou obras inteiras para a posteridade, e dentre mais de uma centena de cartas, peças de teatro e diálogos filosóficos, quiçá aquela que melhor resuma o seu pensamento seja justamente a que fala da felicidade possível, De Vita Beata, cujo título foi traduzido do latim como Da Felicidade ou A Vida Feliz.

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[1] O estoicismo é uma escola de filosofia helenística que floresceu na Grécia Antiga e, posteriormente, também na Roma Antiga. Os estoicos acreditavam que a prática das virtudes filosóficas era suficiente para alcançar a eudaimonia (ver restante do artigo) e, consequentemente, uma vida bem vivida. Foi fundada na antiga Atenas por Zenão de Cítio, em torno de 300 a.C.

Crédito das imagens: [topo] Google Image Search (Sêneca); [ao longo] A Morte de Sêneca; pintura de Manuel Domínguez Sánchez (1840-1906); Olu Eletu/unsplash

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8.8.24

O Buda que Ri

Quando muitos ocidentais pensam em “Buda”, geralmente não visualizam o Buda histórico, seja meditando ou ensinando. Este “Buda verdadeiro” é conhecido mais precisamente como Buda Gautama ou Buda Sakyamuni, e é quase sempre retratado em profunda meditação ou contemplação. Geralmente a imagem ilustra um indivíduo muito magro com uma expressão séria no rosto, embora plena de paz.

A maioria dos ocidentais, no entanto, traz à mente um personagem gordo, careca e alegre chamado “O Buda que Ri” quando pensa no Buda. De onde veio essa figura?

O Buda que Ri surgiu dos contos populares chineses do século X. As histórias originais do Buda que Ri retratavam um monge zen budista chamado Chi-tzu, ou Qieci, de Fenghua, no que hoje é a província de Zhejiang. Chi-tzu era um personagem excêntrico, mas muito amado, que fazia pequenas maravilhas, como prever o tempo. A história chinesa atribuiu a data aproximada entre 907 e 923 d.C. para o nascimento de Chi-tzu, o que significa que ele viveu consideravelmente mais tarde do que o histórico Sakyamuni, o verdadeiro Buda.

De acordo com a tradição, pouco antes da morte, Chi-tzu revelou ser uma encarnação do Buda Maitreya. Maitreya é nomeado nas escrituras como o Buda de uma era futura. As últimas palavras de Chi-tzu foram:

Maitreya, verdadeiro Maitreya,
renascido inúmeras vezes,
de tempos em tempos manifestado entre os homens:
[mas] os homens de sua época não o reconhecem.

Os contos de Chi-tzu se espalharam por toda a China, e ele passou a ser chamado de Budai, que significa “saco de cânhamo”. Ainda segundo a tradição, ele carregava um saco cheio de coisas boas, como doces para crianças, e muitas vezes é retratado com muitas delas ao seu redor. Budai representa felicidade, generosidade e riqueza, e também é considerado um protetor das crianças, dos pobres e dos fracos.

Hoje, uma estátua de Budai pode ser encontrada perto da entrada na maioria dos templos budistas chineses. A tradição de esfregar a barriga de Budai para se obter sorte é uma prática popular; todavia, não é um ensinamento budista genuíno.

Seja como for, é um claro sinal da ampla tolerância do budismo à diversidade que este Buda risonho do folclore seja aceito na prática oficial. Para os budistas, qualquer qualidade que represente a natureza búdica deve ser encorajada, e o personagem folclórico do Buda que Ri não é visto como algum tipo de sacrilégio, mesmo que as pessoas inconscientemente possam confundi-lo com o Buda Gautama.

Budai também está associado ao último painel dos Retratos dos Dez Pastores de Bois. Estas são dez imagens que representam estágios de iluminação no zen budismo. O último painel mostra um mestre iluminado que entra em cidades e mercados para dar às pessoas comuns as bênçãos da iluminação.

A figura de Budai seguiu a disseminação do budismo em outras partes da Ásia. No Japão, ele se tornou um dos Sete Deuses da Sorte do Xintoísmo, e é chamado de Hotei. Ele também foi incorporado ao taoísmo chinês como uma divindade da abundância.

***

Este texto será um dos textos adiconais da minha tradução do “Atthaka Vagga, O Livro Budista das Oitavas”, a ser lançado em breve tanto em ebook como na versão impressa.

Crédito das imagens: [topo] Wikipedia (Budai na entrada de um templo budista chinês); [ao longo] Google Image Search (Buda Gautama).

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19.6.24

Oceânico, parte final

« continuando da parte 2


Aquele que tenha explicá-lo, mente

Para realizarmos qualquer coisa, mesmo a mais banal, como ir até a sorveteria tomar um sundae ou uma banana split, antes de mais nada precisamos ter a vontade de agir. Segundo Freud, todos nós temos uma espécie de reservatório de energia psíquica, isto é, uma quantidade de energia disponível para realizar nossas atividades. Freud também chamou essa energia de libido, uma espécie de energia sexual. Tal energia pode se manifestar diretamente na vida sexual em si, como no sexo ou nas fantasias eróticas, mas Freud acreditava que ela também serve como um impulso, uma pulsão, para a realização das mais diversas atividades, mesmo aquelas que julgamos ter pouca ou nenhuma relação com o sexo. Por exemplo, para ele a atividade artística é uma forma de sublimação da libido: ao invés de buscar a satisfação de seus impulsos estritamente sexuais, o artista “desvia” tal energia para a execução de todo tipo de atividade artística. E isso também é válido para a ciência, o trabalho em geral, e até mesmo a espiritualidade. Aliás, essa foi a principal divergência de Freud com Carl Gustav Jung, o jovem psiquiatra que era uma espécie de “discípulo predileto” do fundador da psicanálise.

Ao contrário de Freud, Jung acreditava que a energia psíquica tinha uma origem espiritual, e que poderia se manifestar de diversas formas nas ações humanas, incluindo aí a sexualidade. Mas Freud permaneceu irredutível em sua crença de que tal energia era primordialmente sexual, e que poderia até influenciar a espiritualidade, mas não o contrário. Os dois grandes nomes da psicologia do século XX divergiram justamente no que seria o fundamento da energia psíquica. Ainda assim, é preciso analisar com cuidado a divergência de Jung, pois não é que ele achasse que a sexualidade não tinha papel extremamente importante na vontade humana (e nesse aspecto ele não discordava de Freud), apenas ocorre que Jung não era tão avesso à espiritualidade em geral, e de alguma forma acreditava que a sexualidade por si só não era suficiente para abarcar toda a experiência religiosa, que ela não daria conta de explicar o tal sentimento oceânico (que ele provavelmente chamaria de misticismo).

Foi Jung quem popularizou os termos introversão e extroversão (ou “extraversão”, como ele escrevia) quando fundou seu corpus teórico e clínico, que chamou de psicologia analítica. A premissa básica é que os introvertidos buscam energia internamente, em solitude, enquanto os extrovertidos a obtêm da própria relação com as pessoas ao seu redor. No entanto, embora hoje em dia muitos de nós nos descrevamos como “extrovertidos” ou “introvertidos”, e vejamos esses traços como partes essenciais de nossa identidade, as definições de Jung não eram tão polarizadas. Na visão de Jung, precisávamos buscar essa energia tanto nas relações externas quanto dentro de nós mesmos para sermos pessoas plenas. Longe de definir “o que somos”, como algo escrito em pedra, Jung considerava a introversão e a extroversão como tipos de consciência que podemos experimentar de maneiras diferentes em situações distintas. Tanto a introversão quanto a extroversão podem dominar nosso comportamento, mas também podemos nos beneficiar da outra, não dominante. Aproveitando ambas as fontes de energia, podemos realmente expandir nossa experiência de vida.

Jung trouxe da alquimia antiga essa noção de que precisamos equilibrar as nossas caraterísticas internas, e tal noção também perpassa a sexualidade sagrada, a união e o equilíbrio dos polos feminino e masculino, algo que todos nós carregamos conosco, a todo momento. Mas, para explicar isso melhor, será bom recorrermos ao taoismo chinês:

Bem, o taoismo é uma filosofia espiritual bastante vasta, aqui bastará nos focarmos nos conceitos de yin e yang. Eles descrevem duas forças fundamentais, opostas e complementares, que podem ser encontradas em tudo o que há na natureza. O yin é o princípio feminino, a terra, a passividade, a escuridão e a restrição, enquanto o yang é o princípio masculino, o céu, a atividade, a luz e a expansão. Claro que citei apenas alguns exemplos de opostos complementares aqui, pois a lista é infindável. Seja como for, não há qualquer espécie de hierarquia entre os dois princípios. Por exemplo, se dizemos que yang é positivo, ele só é positivo quando comparado a yin, que será negativo. Essa analogia se assemelha a carga elétrica atribuída a prótons e elétrons, de modo que um não é “bom” por ser positivo, tampouco o outro será “mau” por ser negativo.

Segundo essa ideia, cada ser, objeto ou pensamento do universo possui um complemento do qual depende para a sua existência e que, por sua vez, também o traz dentro de si. Disso se tira que nada existe em estado absolutamente puro nem na absoluta passividade, mas sim em constante transformação. Há um símbolo que resume muito bem o yin e yang, e que muitos de vocês possivelmente já viram em algum lugar. Ele se chama taiji, e representa duas carpas vistas do alto, nadando em círculos num lago. Há uma carpa preta, de olho branco; e uma carpa branca, de olho preto. Ou seja, a carpa preta, yin, também tem um pouco de yang; e, da mesma forma, a carpa branca, yang, também carrega um pouco de yin consigo. E ainda temos um conceito essencial no símbolo em si: ambas as carpas jamais param de nadar, e do seu nado advém o equilíbrio e a harmonia de todas as coisas.

Com isso tudo em mente, será muito importante levar em consideração, daqui em diante, que na sexualidade sagrada, nos diversos rituais e práticas de magia sexual, sempre haverá uma conexão entre dois seres humanos, entre duas almas [1], e uma delas fará o papel ativo (yang), enquanto a outra assumirá o passivo (yin). Isso não significa que tais papeis não possam eventualmente se inverter. Tampouco significa, como alguns já devem ter percebido, que todo homem seja sempre ativo, e toda mulher, sempre passiva. Aliás, sequer podemos levar em consideração a própria orientação sexual de cada participante, pois um casal homossexual também terá aquele que se sente mais à vontade no papel de yang, e aquele que está mais próximo de yin. Ou, em outras palavras, no fundo no fundo somos todos alma.

Pois bem, eu sei que muitos gostariam de saber em detalhes como eram exatamente tais rituais sexuais milenares, o que era, o que é exatamente a magia sexual. O que eu posso dizer é que, de certa forma, a única coisa que separa a magia sexual de qualquer outro tipo de magia [2] é o contato íntimo entre os operadores de determinado ritual. Afinal, nada do que se faça com falos e orifícios deveria ser alguma novidade para um mago, de modo que o próprio ato sexual em si é mera parte de um processo, e não um fim em si mesmo.

Como em qualquer ato mágico, o sexo sagrado também busca uma alteração na consciência. Ao contrário de diversas outras técnicas, no entanto, como as que se valem do controle da respiração ou de encenações teatrais específicas, nesse tipo de magia há um momento de alteração radical do estado de consciência, que no mundo profano é chamado de orgasmo.

Ora, sejam ou não magos e sacerdotisas, todos os que já experimentaram ao menos um orgasmo sabem muito bem do que se trata, não é preciso descrever nada: o orgasmo é uma experiência. A questão é saber o que diabos exatamente é essa experiência. Há um termo em francês que também é sinônimo para orgasmo, la petite mort, a pequena morte. Ele compara o orgasmo à morte no sentido de que experimentamos uma alteração tão radical em nosso estado de consciência usual, que é como se tivéssemos “morrido por alguns instantes”. Mas é precisamente esse estado quase que alienígena de consciência, onde muitas vezes sequer temos noção do tempo e do espaço, que possibilita que a própria magia sexual ocorra de modo mais potente. Se quiser saber como é, poderia, por exemplo, nos momentos que antecedem um orgasmo, começar a pensar em natureza, em montanhas e florestas e riachos, em abundância de vida, na Deusa como ela é, ao invés de nádegas e falos.

Nos primórdios da humanidade a religião era matriarcal, a mulher era sagrada, e o seu corpo era um templo. No xamanismo ancestral, os ritos de iniciação eram realizados nas cavernas, pois suas entradas eram comparadas a vaginas, uma vez que o próprio interior da caverna era o ventre da Deusa. Pode parecer estranho pensar sobre isso hoje, mas até mesmo as catedrais góticas seguiram esse padrão simbólico, uma vez que a Igreja também era a “esposa” de Cristo. E, se até hoje bebemos simbolicamente o sangue de Jesus em certas cerimônias, não deveria causar grande surpresa que isso também tenha se originado em ritos muito, muito mais antigos.

No fim das contas, o sentimento oceânico de fato sempre esteve à nossa disposição. Não é sequer o caso de termos de buscá-lo lá fora, no topo de alguma montanha, no texto de algum grimório secreto, mas simplesmente de retirar as barreiras que nós mesmos erguemos contra ele, quiçá por ser tão avassalador, tão irracional, tão além das palavras. Delimitamos nosso ego quando deixamos de ser recém-nascidos na Criação, e experimentar o sentimento oceânico pode ser a via mais breve de retorno ao que sempre fomos.

Há uma wali (amiga de Allah), uma mística sufi que viveu no Oriente Médio, lá no século VIII, que soube descrever essa tal experiência de modo muito poético – quiçá o único modo com que ela possa, de fato, ser descrita:

Em Ishq-e Haqeeqi [3], não há nada se interpondo 
entre um coração e outro.

O querer falar nasce da saudade,
a verdade acerca do real sabor da vida.
Aquele que o provou, sabe;
aquele que tenta explicá-lo, mente...

Como você poderia descrever a verdadeira forma de Algo
em cuja presença você se torna um borrão?
E em cujo Ser você ainda existe e perdura?
E que vive como um signo eterno para a sua jornada?

(Rabia Basri)


***

[1] É claro que os adeptos da não monogamia também podem adentrar a sexualidade sagrada com três ou mais almas, de uma só vez. Apenas leve em consideração que cada alma adicional torna a operação exponencialmente mais complexa. Nada impede, entretanto, a simples alternância de casais dentro de uma relação não monogâmica.

[2] Se você crê que “magia” é o mesmo que “algo que não existe”, ou “algo que se faz contra Deus”, talvez não devesse sequer estar por aqui. Mas, se gostou do que leu até aqui e ficou curioso em descobrir o que é de fato magia, recomendo o meu livro Artemagia (Edições Textos para Reflexão).

[3] Ishq-e Haqeeqi, o amor divino, a experiência de união mística com Deus, algo que pode muito bem ser comparado ao sentimento oceânico. Você pode encontrar este e outros poemas de Rabia Basri no livro Rumi – Além das ideias de certo e errado (Edições Textos para Reflexão).

Crédito das imagens: [topo] cena do filme Um método perigoso (respectivamente, Jung e Freud); [ao longo] Google Image Search (taiji taoista); Dennis Mahlmeister (O Grande Rito).

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17.6.24

Oceânico, parte 2

« continuando da parte 1


A religião matriarcal

Há muito nos acostumamos a ver por aí religiões dominadas pelos homens, com seus deuses nos postos de comando celeste, e seus sacerdotes ditando as regras cá embaixo. Mas, será que foi sempre assim? E, se não foi, quando é que as religiões deixaram de ser matriarcais e predominantemente ligadas ao feminino?

Se voltamos a época pré-histórica, é possível constatar que há um farto registro arqueológico de alguma espécie de culto feminino, ou pelo menos foram achadas inúmeras esculturas de alguma espécie de Deusa, com seios fartos e em geral bem corpulentas, que foram chamadas de Estatuetas de Vênus, sendo a mais célebre a Vênus de Willendorf, encontrada por um explorador na Áustria, em 1908, e que pode ter até 30 mil anos.

Bem, há 30 mil anos não existia agricultura, e a totalidade dos seres humanos vivia da caça e da coleta, perambulando aqui e ali em um nomadismo sem fim. Diz-se que nessa época o próprio nascimento de um bebê era um grande mistério, de modo que a figura da mulher era grandemente valorizada, até mesmo de forma religiosa, como a fonte primária da vida. Então, há cerca de 11,5 mil anos atrás nós descobrimos a agricultura, e lentamente fomos deixando de ser nômades e nos tornando sedentários.

É mais ou menos aqui que surge uma história relativamente conhecida de como as mulheres podem ter perdido seu posto religioso. Primeiro, eventualmente se entendeu que os homens também eram necessários no surgimento da vida, e o seu sêmen também foi associado à fertilização da terra pelas águas do céu (por isso na maioria dos panteões há um deus celeste que germina a deusa da terra), de modo que a figura da mulher não mais monopolizava o mistério da vida. Segundo, com o surgimento da agricultura, os grupos de caçadores-coletores viram que era mais vantajoso simplesmente se assentar em terrenos férteis e guardar os excedentes das colheitas para as épocas mais difíceis, como no pico do inverno. Assim eles começaram a guardar grãos em silos, e em volta desses silos surgiram aldeias cada vez maiores. Ocorre que isso não se deu da noite para o dia, e enquanto alguns agrupamentos formavam aldeias, outros grupos de nômades, muitas vezes famintos, ainda perambulavam no entorno.

Agora imagine que você é um caçador-coletor faminto, que já não acha mais nada para caçar, mas se depara com uma aldeia cheia de grãos, e que nessa aldeia, por falta de necessidade, muitos deixaram de se armar para a caça, e tenham optado por viver apenas da agricultura: isto é, você tem fome e está bem armado, e eles têm comida de sobra e mal sabem se defender, o que você acha que acontece então? Pois é, invariavelmente você rouba os grãos, e se deixar alguém vivo na aldeia já é lucro para eles.

Mas não acaba aí: alguns aldeãos sedentários eram mais espertos que outros, e eventualmente chegaram à conclusão de que era mais fácil comprar os caçadores nômades com comida, e transformá-los basicamente em soldados, em defensores dos limites da aldeia. Até que surgiram aldeias com muros de madeira, de pedra, e torres de defesa, e cidades, e metrópoles. Com isso, um mundo onde agricultores pacíficos poderia sobreviver com certa autonomia passou a ser dominado pela guerra de cidades-estado tentando defender seu próprio território – e eventualmente abocanhar a terra alheia. E, nesse mundo, era inviável que as posições de poder religioso e/ou político se mantivessem entre as mulheres. Segundo a moral dessa história, os homens derrotaram a religião matriarcal na base da porrada.

Ora, essa história sempre me pareceu um tanto verossímil. Claro que se trata de uma grande aproximação da realidade, sem condições de descrever como as coisas se passaram em maiores detalhes, sem muita precisão histórica ou de datas. Mas, ainda assim, verossímil. O problema é que ela delimita a chamada transição do matriarcado para o patriarcado numa data muito distante, muito anterior à formação das grandes civilizações do Ocidente e do Oriente. Segundo essa narrativa, não poderia haver mulheres em posição proeminente de poder religioso e/ou político em praticamente nenhuma dessas sociedades, salvo raríssimas exceções.

Bem, ocorre que eventualmente eu me deparei com situações onde as grandes sacerdotisas ainda eram a regra, e não a exceção, e isso numa época bem mais recente do que “logo após o surgimento das primeiras aldeias”. Muitos de vocês devem conhecer Pitágoras, e alguns devem saber que ele é considerado “o pai da filosofia”, visto que supostamente ele mesmo cunhou o termo, ele mesmo se considerava, acima de tudo, um filósofo, um amigo ou amante (filos) do saber (sophia). Ocorre que Pitágoras teve uma mestra no início de sua trajetória, chamada Temistocleia, uma sacerdotisa do templo de Apolo em Delfos. A conexão entre Pitágoras e Temistocleia é feita num trecho da Vida dos Grandes Filósofos, de Diógenes Laércio, um historiador que viveu no século III d.C (cerca de 8 séculos depois do filósofo). Lá no livro, Diógenes nos diz que “Pitágoras derivou a maior parte de suas doutrinas éticas a partir dos ensinamentos de Temistocleia, sacerdotisa de Delfos”.

As sacerdotisas dos templos em Delfos e outras grandes cidades da Grécia Antiga também eram chamadas de pitonisas, e além de realizar profecias e ensinar jovens filósofos, eram amplamente reconhecidas como grandes autoridades religiosas, o que certamente lhes conferia certa relevância política. E, vejam bem, não eram duas ou três, eram diversas mulheres, diversas sacerdotisas, que em sua época eram mais famosas e relevantes do que homens como Pitágoras. Prova disso é que o próprio Sócrates, alguns séculos depois, iniciou sua jornada na filosofia justamente porque outra sacerdotisa em Delfos disse a um amigo seu que ele era “o homem mais sábio de Atenas”. Se as pitonisas não fossem tão importantes, se o seu conselho oracular não fosse amplamente respeitado por todos, Sócrates não teria se disposto a buscar por alguém mais sábio, e talvez Platão sequer tivesse sobre o que escrever.

E, se nos parágrafos acima eu lhes trouxe um exemplo relevante de como existiram sacerdotisas com amplo poder religioso mesmo muitos séculos após “o advento da civilização”, em Quando Deus era mulher a escritora e pesquisadora norte-americana Merlin Stone nos traz inúmeros outros casos parecidos. A obra nos conta a história do antigo culto à Deusa Mãe, e de como o rito às deidades femininas foi suprimido ao longo dos séculos. Antes de publicá-la, em 1976, Stone passou quase uma década pesquisando as deusas na Antiguidade, período em que a vida social, política, econômica e cultural de muitos povos girava em torno da mulher.

Pessoalmente, o que achei mais curioso e importante na interpretação histórica de Stone foi a sua defesa de que a perseguição aos cultos da Deusa Mãe não tiveram motivação puramente religiosa, pois a política e, principalmente, a questão da herança, também foram tão ou mais importantes na equação. Afinal, como ela bem descreve no livro, na religião matriarcal a herança passava da mãe para os filhos, de modo que eram as sacerdotisas quem decidiam o rumo de suas vidas, e de seus templos, exatamente como o fazem hoje os sacerdotes de religiões patriarcais. Mas o mais interessante é como exatamente isso se dava, o que nos dá uma bela dica do porquê a própria sexualidade foi amplamente demonizada, juntamente com as sacerdotisas e suas deusas:

As mulheres [sacerdotisas] que residiam nos recintos sagrados da Deusa Mãe tomavam amantes dentre os homens da comunidade, fazendo amor com aqueles que vinham prestar honra à Deusa. Para aquelas pessoas o ato sexual era considerado sagrado, tão santificado e precioso que era efetuado dentro da casa da Criadora do Céu, da Terra e de toda a vida. Um dos muitos aspectos da Deusa, e pelo qual era reverenciada, era ser a deidade padroeira do amor sexual. [...] Na minha opinião, tais costumes sexuais devem ter se desenvolvido em virtude da primeira compreensão e tomada de consciência da relação entre sexo e reprodução. Já que essa conexão foi provavelmente observada de início pelas mulheres, pode ter sido integrada na estrutura religiosa como um meio de assegurar a procriação entre as mulheres que escolhiam viver e criar seus filhos dentro do complexo do templo, e também, possivelmente, como um método de controlar a gravidez.

(Merlin Stone, Quando Deus era mulher)

Ou seja, a Deusa subitamente se torna definitivamente mais diabólica para as religiões patriarcais; afinal, nos templos de culto à Deusa, são as mulheres quem decidem quando e com quem terão filhos, e são elas quem detém os direitos à herança, que é matrilinear. Assim, não admira que as religiões matriarcais e os cultos femininos tenham sido tão perseguidos na Antiguidade. E não admira, certamente, que até hoje a sexualidade, principalmente a sexualidade ditada pela mulher, seja tão demonizada, tão deturpada e distorcida de seu aspecto sagrado. Tudo isso, infelizmente, ainda é um eco de milênios atrás.

Mas, e como eram exatamente tais cerimônias religiosas que envolviam o sexo? Como a sexualidade sagrada pode nos ajudar a compreender melhor esse tal sentimento oceânico citado pelo amigo de Freud? Bem, isso certamente terá de ficar para o próximo texto.


» Na sequência, a pequena morte.

***

Bibliografia
Quando Deus era mulher, de Merlin Stone (Editora Goya/Aleph).
Mulheres que inspiram, diversas autoras (Edições Textos para Reflexão).

Crédito das imagens: [topo] Google Image Search (A Vênus de Willendorf); [ao longo] John Collier (A Sacerdotisa de Delfos); Foto que consta na capa da biografia de Merlin Stone, Merlin Stone Remembered: Her Life and Works.

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11.6.24

Oceânico, parte 1

Um debate entre amigos

Sigmund Freud, fundador da psicanálise e grande desbravador do inconsciente humano, costumava debater sobre a religião com um amigo, Romain Rolland, escritor e biógrafo de grandes espiritualistas do seu tempo, como Sri Ramakrishna e Swami Vivekananda. O debate é usado como ponto de partida do célebre O mal-estar na civilização, de Freud, onde o autor cita que Rolland até concorda com as teses de O futuro de uma ilusão [1], mas afirma que a verdadeira religiosidade humana tem muito pouco a ver com isso tudo:

Eu lhe enviei meu pequeno manuscrito, no qual trato a religião como uma ilusão, e ele me respondeu que concordava inteiramente com a minha opinião, lamentando, todavia, que eu não tivesse apreciado corretamente a verdadeira fonte da religiosidade. Segundo ele, ela seria um sentimento peculiar que jamais o abandonava, sendo que a sua existência fora confirmada por muitas outras pessoas, de modo que ele supunha que ela estaria atuante em milhões de indivíduos.

(Freud, O mal-estar na civilização)

Mais adiante na obra, Freud explica que para Rolland tal sentimento não era propriamente mero “artigo de fé”, mas um verdadeiro contato com algo ilimitado, sem fronteiras, eterno: um sentimento oceânico. Ora, mas Freud era um entusiasta da ciência, das observações objetivas dos casos clínicos, e confessa no livro que ele mesmo jamais conseguiu tocar esse tal sentimento que, segundo seu amigo, era a verdadeira fonte da religiosidade humana. Daí em diante, sem recorrer à desonestidade intelectual ou a alguma espécie de ceticismo de negação [2], Freud dedica o restante do primeiro capítulo da obra a tentar desvendar de onde viria tal sentimento oceânico.

É então que ele nos traz uma comparação curiosa com a percepção de mundo dos recém-nascidos. Segundo Freud, inicialmente o bebê não consegue diferenciar a si mesmo do restante do mundo a sua volta, mas aos poucos vai aprendendo que há “objetos distintos de si”, como o próprio seio da mãe, que só “aparece” quando chamado. Assim o bebê aprende que, ao chorar de fome, é amamentado por um objeto externo, que não era parte de si mesmo. Com o tempo, vamos aprendendo a nos dissociar do mundo, vamos delimitando nosso ego:

Originalmente o ego contém tudo, e só mais tarde separa, de si mesmo, um mundo exterior. Assim, o nosso presente sentimento do ego não passa de um atrofiado resíduo de um sentimento muito mais inclusivo – de fato, totalmente abrangente –, que corresponde a um vínculo mais íntimo entre o ego e o mundo que o cerca. Caso nós pudéssemos supor que esse sentimento primário do ego persistiu, em maior ou menor grau, na vida mental de muitas pessoas, ele poderia ser colocado, como um tipo de contraponto, lado a lado com o sentimento do ego da maturidade, que é mais nitidamente demarcado. Nesse caso, os conteúdos imaginativos a ele pertinentes seriam justamente aqueles da ausência de limites e de um vínculo ao universo como um todo, precisamente os mesmos que meu amigo utiliza para descrever o sentimento “oceânico”.

(Freud, O mal-estar na civilização)

Segundo a tese de Freud, o tal sentimento oceânico não teria uma fonte mística, não seria relacionado com um suposto contato real com a divindade ou alguma manifestação cósmica, mas antes seria tão somente o “resíduo” de um sentimento de nossa primeira infância, que por alguma razão jamais foi esquecido. Em resumo, é como se o que chamamos de misticismo fosse reduzido a alguma espécie de sentimento de amamentação cósmica, como se ainda bebêssemos algum leite metafísico direto da fonte eterna.

Como espiritualistas, devemos aplaudir Freud por ter ido até onde poderia ir, por ter se esforçado em tentar compreender o incompreensível. É como se algum mergulhador tivesse retornado do oceano em estado de êxtase, maravilhado com seu primeiro mergulho no mar, e tentasse descrever com palavras algo que não pode realmente ser descrito em palavras; e Freud, sem nunca ter mergulhado sequer numa piscina, tentasse explicar tal descrição com sua própria visão de mundo. Mas as palavras são apenas cascas de sentimento, e o misticismo de fato vai muito além disso.

O que quer que pensem de nós, em nada lembrará o que somos.

(Rumi)

Seja como for, também me parece que Freud teria sido mais feliz em sua analogia se considerasse o sentimento de um recém-nascido como algo mais digno de nota, e não somente parte de um mero instinto de sobrevivência. Pois o bebê chora quando tem fome, e é amamentado; mas, quando não tem fome, ele vive em uma espécie de estado de êxtase persistente. Ou, como bem resumiu Satyaprem, um budista brasileiro:

Uma criança é um buda que não sabe que é um buda.
Um buda é uma criança que sabe que é um buda.

Ou seja, a criança saudável e bem cuidada vive em seu próprio estado de iluminação, muito embora tal estado seja lentamente vencido pelo peso do mundo. Nascemos, e não nos entendemos como algo separado do resto, somos parte de tudo. Então, lentamente vamos construindo/delimitando um ego, tão necessário a nossa sobrevivência, mas que também necessariamente nos retira do Céu, e somos expulsos desse paraíso oceânico. Mas um buda, um iluminado, é aquele que, mesmo tendo caído no mundo adulto, consegue de alguma forma alcançar novamente tal estado, ainda que em curtos espaços de tempo (se é que o tempo pode ser medido no Céu).

Nada disso se explica com palavras. Se não entendeu, leia novamente o parágrafo acima, mas com o coração. E, se ainda não sabe ler com o coração, talvez seja porque sofre desse mal do Ocidente, que tenta se relacionar com o sagrado apenas do ponto de vista masculino, como uma espécie de fonte eterna de onde todas as coisas são criadas e cuidadas. Isso é uma visão bem diversa da do Oriente, que em geral considera que o sagrado é todas as coisas, de modo que jamais poderíamos estar longe, muito menos fora do Céu. Se não vemos o sagrado a nossa volta, se quando choramos de angústia não há nenhum seio da Grande Mãe que venha nos amamentar, quiçá tenhamos de retornar ao passado, quando a religião era ditada pelas mulheres, para beber uma vez mais desse leite.


» Na sequência, quando Deus era mulher.

***

[1] Outra obra de Freud, onde ele basicamente considera o monoteísmo do Ocidente como uma grande ilusão cuja função primordial é frear os instintos humanos e manter a sociedade “em ordem”.

[2] O ceticismo de negação afirma que algo não existe somente porque não há evidências objetivas da sua existência. No entanto, é impossível comprovar objetivamente que algo não existe, apenas que existe. Ou, usando as palavras de Carl Sagan, a ausência de evidência não é evidência de ausência.

Bibliografia
O mal-estar na civilização, de Sigmund Freud (Edições Textos para Reflexão).

Crédito das imagens: [topo] Google Image Search (Freud e Romain Rolland); [ao longo] Bia Octavia/unsplash.

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1.12.23

O andarilho de Copenhague

O texto abaixo foi escrito para compor o prefácio de Adquirir sua alma na paciência, o discurso de Soren Kierkegaard que tive a honra de traduzir de versões inglesas. Como a maioria dos meus prefácios, procurei falar sobre não apenas o que o autor nos trouxe em sua obra, mas também sobre como viveu sua vida. Creio que ganhamos muito ao nos imaginar, tal qual o pensador dinamarquês, simplesmente caminhando pelas vielas de Copenhague, saudando as almas que nos cruzam o caminho...


A vida só pode ser compreendida quando olhamos para trás, mas só pode ser vivida olhando para frente.

Esta frase, retirada de uma das suas cerca de 7.000 páginas de diários, acabou se tornando uma das mais famosas de Kierkegaard; e, como toda célebre frase de um pensador, resume muito do que ele buscou falar em sua obra. Você arriscaria dizer sobre o que o pensador dinamarquês falou? Bem, se pensou em “autorreflexão”, “autoconhecimento”, ou ainda em “como lidar com a existência humana”, não está muito longe da resposta, seja ela qual for.

Tendo nascido e vivido em Copenhague, na Dinamarca, Soren Kierkegaard (1813 – 1855) foi ao mesmo tempo melancólico e bem-humorado, ao mesmo tempo filósofo e teólogo, mas quase sempre brilhante. Sua mãe, Ane Sorensdatter Kierkegaard, trabalhou como empregada doméstica antes de se casar com seu pai, Michael Pedersen Kierkegaard. Ela era uma pessoa simples, que não recebeu nenhuma educação formal, mas exerceu uma influência duradoura na vida do filho. Já seu pai, Michael, foi um comerciante de lã muito bem-sucedido. Mesmo sendo um homem severo, cultivava interesse por filosofia e costumava hospedar intelectuais em sua casa. Por conta da influência do pai, ele entrou em contato com os livros de Platão ainda bem jovem, e foi especialmente tocado pela figura de Sócrates.

Kierkegaard era o mais novo dos sete filhos do casal. Contudo, quando contava 22 anos, já havia perdido cinco dos seus irmãos, tendo restado apenas Peter Kierkegaard, que mais tarde veio a se tornar um bispo luterano. Logo depois, naquele mesmo ano de 1834, foi a vez da sua mãe deixar o mundo; e, poucos anos depois, em 1838, veio o falecimento do pai. Não admira, portanto, que o filósofo fosse íntimo dos grandes sofrimentos da existência humana, e que tenha se dedicado justamente a viver da melhor forma possível, apesar deles.

Com a herança da sua família, Kierkegaard pôde custear a sua educação, a sua vida e várias publicações das suas primeiras obras. Em 8 de setembro de 1840, Kierkegaard formalizou o pedido de noivado a Regine Olsen, jovem dinamarquesa que havia conhecido cerca de três anos antes. No entanto, ele logo se sentiu desiludido com as perspectivas da vida a dois. Encerrou o noivado em 11 de agosto de 1841, apesar de se acreditar que havia um amor profundo entre eles. Nos seus Diários, Kierkegaard menciona a sua crença de que sua “melancolia” o tornava impróprio para o casamento, mas o motivo exato para o rompimento permanece obscuro até hoje. Dali em diante, seu matrimônio seria com a filosofia e, por assim dizer, com a própria existência.

Uma das primeiras descrições da aparência física do pensador dinamarquês veio de Hans Brochner, um convidado para a festa de casamento do seu irmão, Peter, em 1836: “Eu achei [sua aparência] quase cômica. Na época ele estava com 23 anos de idade. Ele tinha algo bastante irregular em toda a sua forma e usava um penteado estranho. Seu cabelo subiu quase seis centímetros acima de sua testa em uma forma de crista desgrenhada, que lhe dava uma estranha aparência de espanto”. Já o próprio Kierkegaard se descreveu como alguém de composição frágil: “Franzino, raquítico e fraco para poder valer como um homem completo. [E ainda] melancólico, submetido ao sofrimento interior, profundamente ferido de muitas maneiras no íntimo da alma. Bem, a mim só uma coisa me foi concedida: uma inteligência eminente, com certeza para que eu não ficasse inteiramente desarmado”.

Em seu tempo, as ruas de Copenhague eram tortuosas, de modo que poucas carruagens passavam por elas. Kierkegaard amava caminhar pelas ruelas e simplesmente observar o dia a dia das pessoas comuns. Em 1848, ele escreveu: “Eu tinha verdadeira satisfação cristã no pensamento de que, se não houvesse outro, definitivamente havia um homem em Copenhague com quem todas as pessoas pobres poderiam abordar livremente e conversar na rua; se não houvesse outro, havia um homem que, qualquer que fosse o seu círculo social mais frequentado, não se esquivava do contato com os pobres, mas saudava toda empregada que lhe parecia familiar, todo servo, todo trabalhador comum”. Também podemos resumir boa parte da sua teologia sob esse ponto de vista: ao teólogo dinamarquês interessava mais a figura do Cristo andarilho e contador de parábolas do que toda a Igreja que se construiu ao redor dele.

Sócrates dizia que “uma vida irrefletida não vale a pena ser vivida”, e o pensador dinamarquês levou essa afirmação as últimas consequências. Em O desespero humano, publicado em 1849 e, para alguns, uma das obras inaugurais da filosofia existencialista, Kierkegaard nos apresenta a autorreflexão como uma ferramenta para entender o problema do “desespero”, que para o pensador não derivava da depressão em si, mas antes da alienação do “eu”. Assim, ele classificou diversos graus de desespero. O mais inferior e comum é derivado da ignorância: o indivíduo mal sabe o que o “eu” significa, e não tem a menor consciência da natureza do seu “eu” potencial, a melhor versão de si. Tal desconhecimento é quase uma bênção, e tão sem consequência que Kierkegaard não estava certo se deveria ser classificado como desespero. Segundo ele, o verdadeiro desespero ocorre quando temos mais consciência de nós mesmos, uma vez que os graus mais profundos de desespero derivam de uma profunda consciência do “eu” aliada a uma profunda aversão por esse mesmo “eu”.

Quando algo dá errado, quando falhamos e, por exemplo, não passamos numa prova, nós aparentemente nos desesperamos porque perdemos algo. Mas numa análise mais atenta, segundo o pensador dinamarquês, fica óbvio que a pessoa não se desespera por conta do fato em si, como não passar na prova, mas antes por conta de si mesma. O “eu” que não conseguiu conquistar seu objetivo se torna intolerável. A pessoa queria se tornar um “eu” diferente, alguém que passou no vestibular, mas agora está presa a um “eu” fracassado, em desespero. Mas seria possível nos desviar desse desespero simplesmente sendo bem-sucedidos em tudo aquilo que desejamos alcançar?

Para responder esta pergunta, Kierkegaard usou como exemplo um homem que queria se tornar imperador. E demonstrou que, ironicamente, ainda que ele conseguisse alcançar seu objetivo, na verdade ainda teria abandonado o seu antigo “eu”. Ou seja, tanto em seu desejo quanto em sua conquista, ele queria “se livrar de si mesmo”. Ora, essa negação do “eu” é dolorosa: é avassalador o desespero de uma pessoa que quer se afastar de si, que “não possui a si mesma; que não é ela mesma”.

Mas ele também propôs, é claro, uma solução para tal dilema. Kierkegaard concluiu que um homem poderia alcançar a paz e a harmonia internas se tivesse a coragem de ser seu verdadeiro “eu”, em vez de querer ser outro. “Querer ser quem se é realmente é, na realidade, o oposto do desespero”, ele resumiu. O pensador acreditava que o desespero desaparece quando paramos de negar quem realmente somos e aceitamos a nossa verdadeira natureza.

Em um trecho dos seus Diários, datado de 1835, Kierkegaard esboçava a essência do que viria a tratar em suas obras posteriores:

O que eu realmente preciso é ter clareza sobre o que devo fazer e não o que eu preciso saber, a não ser na medida em que o conhecimento deve preceder cada ato. O que importa é encontrar um propósito, para ver o que realmente é que Deus quer que eu faça; o mais importante é encontrar uma verdade que é verdade para mim, encontrar a ideia pela qual estou disposto a viver e morrer.

Em sua busca por si mesmo, por quem realmente é, em oposição às inúmeras máscaras sociais ofertadas pela sociedade da época, Kierkegaard nos deu uma contribuição que já era muito relevante em sua época, e que hoje, na sociedade da ebulição da informação e das redes sociais, se tornou ainda mais relevante.

Mas foi em Adquirir a sua alma na paciência, um dos Quatro Discursos Edificantes, publicado em 1843, que o andarilho de Copenhague nos ofereceu a chave para o encontro e a conquista de nossa própria alma. Comentando uma passagem do Novo Testamento bíblico, Kierkegaard nos apresenta um conceito único de “paciência”: uma paciência que tem mais a ver com o mundo espiritual, mais com a sua teologia do que com a sua filosofia. Para um estudante de filosofia ou psicologia, tal conceito pode soar demasiadamente místico, até mesmo incômodo. Se for o caso, vá mais além, mergulhe em tal “incômodo”, desvele o que acha que é o misticismo, se aventure pelo misticismo real, a coisa em si: você mesmo – mas tenha toda a paciência do mundo!


Soren Kierkegaard morreu em 1855, aos 42 anos. Embora a causa de sua morte não seja clara, estudos recentes apontam que a possível causa foi uma doença na coluna vertebral (antes, se achava que ele havia falecido em decorrência da tuberculose). Seu corpo se encontra sepultado no Cemitério Assistens, em Copenhague.


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Crédito das imagens: [topo] Desenho não terminado de Kierkegaard feito pelo seu primo, Niels Christian Kierkegaard (c. 1840); [ao longo] Martinus Rorbye (pintura de 1831; retrata a Copenhague da época).

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28.11.23

Mas o que exatamente eu sou?

René Descartes foi um dos grandes pensadores modernos, tanto que é considerado por alguns como “o fundador da filosofia moderna”, e por outros como “o pai da matemática moderna”. E, de fato, ele foi tão ou mais importante para a ciência e a matemática quanto o foi para a filosofia em si. Entretanto, se formos analisar hoje pelo que Descartes é mais lembrado, será difícil escapar da sua célebre afirmação:

Penso, logo existo.

Tal frase, cuja tradução do latim original – cogito ergo sum – seria melhor definida como “Penso, logo sou”, surgiu em um livro que a princípio era quase que um prefácio para outras obras mais científicas, intitulado Discurso sobre o Método. Nesta obra, escrita em 1637 e publicada originalmente na Holanda, pois nessa época o pensador francês residia por lá, Descartes propõe um modelo quase matemático para conduzir o pensamento humano, uma vez que a matemática tem por característica a certeza, a ausência de dúvidas. De acordo com o próprio autor, parte da inspiração de seu método (descrito nesse tratado) veio de três sonhos ocorridos na noite de 10 para 11 de novembro de 1619: em tais sonhos lhe surgiu “a ideia de um método universal para encontrar a verdade”.

E o método de Descartes entrou para a história, ao ponto de se confundir com as bases do próprio método científico como veio a ser conhecido de lá para cá. Mas o que me interessa discutir aqui é a tal frase, o “penso, logo sou”. Como exatamente ele chegou nela?

Ora, Descartes estava preocupado com a validade das evidências que poderiam comprovar as verdades da nossa existência. Se devemos questionar tudo, por que devemos confiar nas informações que colhemos da natureza, já que tudo passa pela interpretação dos nossos cinco sentidos?

Tudo o que olhamos, cheiramos, escutamos, tocamos ou saboreamos só pode ser analisado pela consciência quando passa pelos nossos ouvidos, olhos, boca, tato e nariz. E, para piorar, essa interpretação é pessoal e intransferível. Como confiar que todas as pessoas perceberiam esses estímulos da mesma forma, permitindo que uma verdade se tornasse válida para todos?

O francês concluiu que nós só temos a capacidade de duvidar dos nossos sentidos (isto é, pensar) porque estamos vivos para receber esses estímulos. Ter a convicção da nossa existência seria a única coisa da qual não podemos duvidar. Eis as suas palavras, traduzidas do original:

“[...] ao analisar com atenção o que eu era, e vendo que podia presumir que não possuía corpo algum e que não havia mundo algum, ou lugar onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao contrário, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas, resultava com bastante evidência e certeza que eu existia; ao passo que, se somente tivesse parado de pensar, apesar de que tudo o mais que alguma vez imaginara fosse verdadeiro, já não teria razão alguma de acreditar que eu tivesse existido; compreendi, então, que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de lugar algum, nem depende de qualquer coisa material. De maneira que esse eu, ou seja, a alma, por causa da qual sou o que sou, é completamente distinta do corpo e, também, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, mesmo que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é.

Depois disso, considerei o que é necessário a uma proposição para ser verdadeira e correta; pois, já que encontrara uma que eu sabia ser exatamente assim, pensei que devia saber também em que consiste essa certeza. [Assim, percebi] que nada há no eu penso, logo sou que me dê a certeza de que digo a verdade, salvo que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir.”

Ou seja, ainda que tudo o que percebemos com os sentidos desde que nos entendemos por gente for algum tipo de ilusão, e ainda que não possamos obter uma certeza derradeira e absoluta sobre basicamente nenhuma verdade, ainda assim não podemos negar que existimos, que estamos aqui pensando sobre a existência. Descartes havia encontrado a única certeza genuína da filosofia, a única que não pode ser questionada. E vejam que, ainda assim, o fato de existirmos não significa que tenhamos sequer a certeza sobre a nossa própria vontade, ou liberdade de agir; porém, fato é que algo existe, e não nada.

Agora, me desculpem, mas nesse momento não posso deixar de sorrir ante tamanha ironia, isto é: que um dos tratados que servem de alicerce para o próprio método científico, que um dos pilares da racionalidade moderna seja mais lembrado justamente por sua afirmação mais mística, mais espiritual, ainda que a imensa maioria dos que esbarraram nela não tenha percebido sua profundidade abissal.

Sim, pois muitos se comportam diante dela como aqueles que estavam se preparando para a sua primeira aula de mergulho na praia mas, ao ver a placa informando “Perigo, correnteza forte”, preferiram se abster de mergulhar. Tivessem mergulhado, a primeira coisa que teriam de se deparar era com a continuação até mesmo óbvia da preposição de Descartes:

Penso, logo sou. Mas o que exatamente eu sou?

Então cairiam de cabeça no misticismo, ou seja, na tentativa de conceber a verdadeira natureza do que existe, do que é. E poderia falar aqui de Parmênides, dos estoicos, de Plotino ou Benedito Espinosa, mas será mais fácil se deixarmos a filosofia de lado e recorrermos à poesia, mais precisamente a poesia de Jalal ud-Din Rumi, um poeta sufi (o misticismo do Islam) que viveu no século XIII. Eis o que ele soube nos dizer sobre o tema:

Na verdade nós somos uma só alma, eu e você. Nos mostramos e escondemos, você em mim, eu em você.

Eis o sentido profundo da nossa relação: é que entre você e eu não existe nem eu nem você.

Os poemas de Rumi eram um eterno diálogo entre ele e Allah, ou Deus. Mas a ideia principal, a que permeia toda a sua obra, e também a de todo místico genuíno, é justamente esta: “entre eu e você, não existe nem eu nem você”. O que existe é o que é, sempre foi e será, justamente porque existe, porque não é nada. Mas isto não se entende com palavras.

Afinal, se fosse necessário pensar através de alguma espécie de linguagem, por mais rudimentar que fosse, então não existiríamos enquanto recém-nascidos, e só passaríamos a existir a partir de dado momento desta vida. Ocorre que mesmo tal ideia é absurda nesse contexto: “passar a existir”. Não faz o menor sentido. Mas isto também não se entende com palavras.

E, mesmo no ápice de sua racionalidade, o próprio Descartes intuiu a mesma coisa, embora talvez não tenha conseguido se expressar através de um conceito cristão. Pois o pensador francês ainda defende a existência de Deus poucas páginas após o trecho que eu trouxe acima. E, para tal, ele se vale de uma lógica que muitos consideram até mesmo infantil: ele afirmou basicamente que o fato de concebermos a ideia da perfeição e do infinito, mesmo sendo imperfeitos e finitos, era a prova da existência de Deus.

Faltou a Descartes justamente ir um pouco além, e mergulhar nos mares abissais do Grande Mistério. Nós não “concebemos” Deus, nós somos Deus. Nós somos o que existe.

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Crédito das imagens: [topo] Corbis (Descartes); [ao longo] Cristofer Maximilian/unsplash.

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