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28.6.24

Zigue-zague (ou traduzindo o Atthaka Vagga)

Monges budistas da vertente teravada registraram o Cânone Páli algumas centenas de anos após a morte do Buda. Dentre todo o Cânone, o Atthaka Vagga (em páli, Capítulo [vagga] das Oitavas [atthaka]) é um dos registros mais antigos que se conhece dos ensinamentos do Buda. Ele é chamado de Atthaka (oitavas) por ter sido escrito originalmente em 16 seções de 8 estrofes. Em português, eventualmente ficou conhecido como O Livro das Oitavas, ou O Livro Budista das Oitavas.

Após traduzir o Dhammapada anos trás, hoje estou me aventurando nessa tradução de um texto bem mais curto, embora incomparavelmente mais complexo e poético, usando como base diversas versões inglesas. O quinto poema (ou seção) do Atthaka segue abaixo sob o título de Zigue-zague. Os estudiosos irão notar que optei por um título bem exótico – o mais “correto” seria usar O supremo, ou talvez A suprema visão, mas não pude evitar o termo, e creio que muitos dos leitores irão entender o porquê.


Zigue-zague

Ao insistir em uma visão de mundo
que julga ser “suprema”,
uma pessoa a eleva ao pedestal
da coisa mais importante do mundo;
e então, a partir daí,
ela julga todas as outras visões como inferiores,
e não se desenlaça dessas disputas.

Quando ela se vê em vantagem
em tudo o que observa, escuta e sente,
ou em seus hábitos e suas práticas,
quando ela se enlaça em tal sentimento,
ela vê todo o resto, todos os demais,
como inferiores.

E isso também é, dizem os engenhosos,
o que mantém o nó em seu laço
cada vez mais apertado:
a sua vantagem é dependente
do julgamento do outro
como inferior.

Por isso um monge não deve ser dependente
do que é visto, ouvido ou sentido,
nem de seus hábitos nem de suas práticas;
tampouco deve teorizar uma visão de mundo
atrelada a algum conhecimento,
ou hábito, ou prática;
um monge não deve se considerar “um igual”,
muito menos inferior ou superior [1].

Tendo abandonado o que abraçou,
não se apegando a nada,
ele não se torna dependente
nem mesmo do seu conhecimento;
ele não segue esta ou aquela facção
entre aqueles que vivem divididos;
ele não percorre seu caminho
em zigue-zague.

Aquele que não está inclinado
para nenhuma dos lados –
em vir ou não a ser,
neste mundo ou no próximo –;
que não se deixa entrincheirar
ao considerar o que aprendeu
desta ou daquela doutrina;
que não nutre a mínima
percepção teorizada
com relação ao que é visto, ouvido ou sentido:
por quem, sob quais parâmetros
uma pessoa assim poderia ser rotulada
aqui neste mundo?
“Este sábio, este amigo
que não adotou nenhuma visão de como viver,
apenas viveu”.

Pessoas assim não teorizam, não anseiam,
não aderem a nada, nem mesmo às doutrinas.

O sábio, que não se deixou conduzir
nem por hábitos, nem por práticas,
mirou o que há além,
alcançou o que há além:
ele já não anda mais
em zigue-zague.


(tradução por Rafael Arrais)

Obs.: em breve a tradução completa será vendida na Amazon, a princípio apenas na versão digital.

***

[1] Nota do tradutor: Não confundir com questões sociais de igualdade. Aqui me parece que o monge deve se bastar em si mesmo, em sua própria identidade, e não ficar se comparando aos demais, ou adentrando em disputas sobre “qual é a melhor doutrina” – isto é, se juntando a esta ou aquela facção “entre aqueles que vivem divididos”.

Crédito das imagens: [topo] Google Image Search.

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