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17.6.24

Oceânico, parte 2

« continuando da parte 1


A religião matriarcal

Há muito nos acostumamos a ver por aí religiões dominadas pelos homens, com seus deuses nos postos de comando celeste, e seus sacerdotes ditando as regras cá embaixo. Mas, será que foi sempre assim? E, se não foi, quando é que as religiões deixaram de ser matriarcais e predominantemente ligadas ao feminino?

Se voltamos a época pré-histórica, é possível constatar que há um farto registro arqueológico de alguma espécie de culto feminino, ou pelo menos foram achadas inúmeras esculturas de alguma espécie de Deusa, com seios fartos e em geral bem corpulentas, que foram chamadas de Estatuetas de Vênus, sendo a mais célebre a Vênus de Willendorf, encontrada por um explorador na Áustria, em 1908, e que pode ter até 30 mil anos.

Bem, há 30 mil anos não existia agricultura, e a totalidade dos seres humanos vivia da caça e da coleta, perambulando aqui e ali em um nomadismo sem fim. Diz-se que nessa época o próprio nascimento de um bebê era um grande mistério, de modo que a figura da mulher era grandemente valorizada, até mesmo de forma religiosa, como a fonte primária da vida. Então, há cerca de 11,5 mil anos atrás nós descobrimos a agricultura, e lentamente fomos deixando de ser nômades e nos tornando sedentários.

É mais ou menos aqui que surge uma história relativamente conhecida de como as mulheres podem ter perdido seu posto religioso. Primeiro, eventualmente se entendeu que os homens também eram necessários no surgimento da vida, e o seu sêmen também foi associado à fertilização da terra pelas águas do céu (por isso na maioria dos panteões há um deus celeste que germina a deusa da terra), de modo que a figura da mulher não mais monopolizava o mistério da vida. Segundo, com o surgimento da agricultura, os grupos de caçadores-coletores viram que era mais vantajoso simplesmente se assentar em terrenos férteis e guardar os excedentes das colheitas para as épocas mais difíceis, como no pico do inverno. Assim eles começaram a guardar grãos em silos, e em volta desses silos surgiram aldeias cada vez maiores. Ocorre que isso não se deu da noite para o dia, e enquanto alguns agrupamentos formavam aldeias, outros grupos de nômades, muitas vezes famintos, ainda perambulavam no entorno.

Agora imagine que você é um caçador-coletor faminto, que já não acha mais nada para caçar, mas se depara com uma aldeia cheia de grãos, e que nessa aldeia, por falta de necessidade, muitos deixaram de se armar para a caça, e tenham optado por viver apenas da agricultura: isto é, você tem fome e está bem armado, e eles têm comida de sobra e mal sabem se defender, o que você acha que acontece então? Pois é, invariavelmente você rouba os grãos, e se deixar alguém vivo na aldeia já é lucro para eles.

Mas não acaba aí: alguns aldeãos sedentários eram mais espertos que outros, e eventualmente chegaram à conclusão de que era mais fácil comprar os caçadores nômades com comida, e transformá-los basicamente em soldados, em defensores dos limites da aldeia. Até que surgiram aldeias com muros de madeira, de pedra, e torres de defesa, e cidades, e metrópoles. Com isso, um mundo onde agricultores pacíficos poderia sobreviver com certa autonomia passou a ser dominado pela guerra de cidades-estado tentando defender seu próprio território – e eventualmente abocanhar a terra alheia. E, nesse mundo, era inviável que as posições de poder religioso e/ou político se mantivessem entre as mulheres. Segundo a moral dessa história, os homens derrotaram a religião matriarcal na base da porrada.

Ora, essa história sempre me pareceu um tanto verossímil. Claro que se trata de uma grande aproximação da realidade, sem condições de descrever como as coisas se passaram em maiores detalhes, sem muita precisão histórica ou de datas. Mas, ainda assim, verossímil. O problema é que ela delimita a chamada transição do matriarcado para o patriarcado numa data muito distante, muito anterior à formação das grandes civilizações do Ocidente e do Oriente. Segundo essa narrativa, não poderia haver mulheres em posição proeminente de poder religioso e/ou político em praticamente nenhuma dessas sociedades, salvo raríssimas exceções.

Bem, ocorre que eventualmente eu me deparei com situações onde as grandes sacerdotisas ainda eram a regra, e não a exceção, e isso numa época bem mais recente do que “logo após o surgimento das primeiras aldeias”. Muitos de vocês devem conhecer Pitágoras, e alguns devem saber que ele é considerado “o pai da filosofia”, visto que supostamente ele mesmo cunhou o termo, ele mesmo se considerava, acima de tudo, um filósofo, um amigo ou amante (filos) do saber (sophia). Ocorre que Pitágoras teve uma mestra no início de sua trajetória, chamada Temistocleia, uma sacerdotisa do templo de Apolo em Delfos. A conexão entre Pitágoras e Temistocleia é feita num trecho da Vida dos Grandes Filósofos, de Diógenes Laércio, um historiador que viveu no século III d.C (cerca de 8 séculos depois do filósofo). Lá no livro, Diógenes nos diz que “Pitágoras derivou a maior parte de suas doutrinas éticas a partir dos ensinamentos de Temistocleia, sacerdotisa de Delfos”.

As sacerdotisas dos templos em Delfos e outras grandes cidades da Grécia Antiga também eram chamadas de pitonisas, e além de realizar profecias e ensinar jovens filósofos, eram amplamente reconhecidas como grandes autoridades religiosas, o que certamente lhes conferia certa relevância política. E, vejam bem, não eram duas ou três, eram diversas mulheres, diversas sacerdotisas, que em sua época eram mais famosas e relevantes do que homens como Pitágoras. Prova disso é que o próprio Sócrates, alguns séculos depois, iniciou sua jornada na filosofia justamente porque outra sacerdotisa em Delfos disse a um amigo seu que ele era “o homem mais sábio de Atenas”. Se as pitonisas não fossem tão importantes, se o seu conselho oracular não fosse amplamente respeitado por todos, Sócrates não teria se disposto a buscar por alguém mais sábio, e talvez Platão sequer tivesse sobre o que escrever.

E, se nos parágrafos acima eu lhes trouxe um exemplo relevante de como existiram sacerdotisas com amplo poder religioso mesmo muitos séculos após “o advento da civilização”, em Quando Deus era mulher a escritora e pesquisadora norte-americana Merlin Stone nos traz inúmeros outros casos parecidos. A obra nos conta a história do antigo culto à Deusa Mãe, e de como o rito às deidades femininas foi suprimido ao longo dos séculos. Antes de publicá-la, em 1976, Stone passou quase uma década pesquisando as deusas na Antiguidade, período em que a vida social, política, econômica e cultural de muitos povos girava em torno da mulher.

Pessoalmente, o que achei mais curioso e importante na interpretação histórica de Stone foi a sua defesa de que a perseguição aos cultos da Deusa Mãe não tiveram motivação puramente religiosa, pois a política e, principalmente, a questão da herança, também foram tão ou mais importantes na equação. Afinal, como ela bem descreve no livro, na religião matriarcal a herança passava da mãe para os filhos, de modo que eram as sacerdotisas quem decidiam o rumo de suas vidas, e de seus templos, exatamente como o fazem hoje os sacerdotes de religiões patriarcais. Mas o mais interessante é como exatamente isso se dava, o que nos dá uma bela dica do porquê a própria sexualidade foi amplamente demonizada, juntamente com as sacerdotisas e suas deusas:

As mulheres [sacerdotisas] que residiam nos recintos sagrados da Deusa Mãe tomavam amantes dentre os homens da comunidade, fazendo amor com aqueles que vinham prestar honra à Deusa. Para aquelas pessoas o ato sexual era considerado sagrado, tão santificado e precioso que era efetuado dentro da casa da Criadora do Céu, da Terra e de toda a vida. Um dos muitos aspectos da Deusa, e pelo qual era reverenciada, era ser a deidade padroeira do amor sexual. [...] Na minha opinião, tais costumes sexuais devem ter se desenvolvido em virtude da primeira compreensão e tomada de consciência da relação entre sexo e reprodução. Já que essa conexão foi provavelmente observada de início pelas mulheres, pode ter sido integrada na estrutura religiosa como um meio de assegurar a procriação entre as mulheres que escolhiam viver e criar seus filhos dentro do complexo do templo, e também, possivelmente, como um método de controlar a gravidez.

(Merlin Stone, Quando Deus era mulher)

Ou seja, a Deusa subitamente se torna definitivamente mais diabólica para as religiões patriarcais; afinal, nos templos de culto à Deusa, são as mulheres quem decidem quando e com quem terão filhos, e são elas quem detém os direitos à herança, que é matrilinear. Assim, não admira que as religiões matriarcais e os cultos femininos tenham sido tão perseguidos na Antiguidade. E não admira, certamente, que até hoje a sexualidade, principalmente a sexualidade ditada pela mulher, seja tão demonizada, tão deturpada e distorcida de seu aspecto sagrado. Tudo isso, infelizmente, ainda é um eco de milênios atrás.

Mas, e como eram exatamente tais cerimônias religiosas que envolviam o sexo? Como a sexualidade sagrada pode nos ajudar a compreender melhor esse tal sentimento oceânico citado pelo amigo de Freud? Bem, isso certamente terá de ficar para o próximo texto.


» Na sequência, a pequena morte.

***

Bibliografia
Quando Deus era mulher, de Merlin Stone (Editora Goya/Aleph).
Mulheres que inspiram, diversas autoras (Edições Textos para Reflexão).

Crédito das imagens: [topo] Google Image Search (A Vênus de Willendorf); [ao longo] John Collier (A Sacerdotisa de Delfos); Foto que consta na capa da biografia de Merlin Stone, Merlin Stone Remembered: Her Life and Works.

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