Yeshuah, parte 2
Texto de Júlia Bárány Yaari prefaciando a HQ "Yeshuah” de Laudo Ferreira (Ed. Devir) – As notas ao final são minhas.
[...] No início do cristianismo circulavam histórias transmitidas pela tradição oral e somente cerca de trinta anos após a morte de Jesus é que começaram a ser registradas por escrito. Dos mais de cem documentos existentes no Concílio de Nicéia em 325 d.C., escolheu-se os quatro evangelhos sinópticos, atribuídos a Mateus, Marcos, Lucas e João. Não temos provas de quem os escreveu, pois na época o seguidor que registrasse uma tradição oral não assinava o próprio nome e sim daquele a quem seguia [1]. Os outros evangelhos foram considerados falsos e hereges, e foram queimados. Mas muitos se preservaram escondidos e enterrados.
Os quatro evangelhos escolhidos constituíram o Novo Testamento, assim como Atos dos Apóstolos, supostamente escritos por Lucas, 14 epístolas de Paulo, uma atribuída a Tiago, duas a Pedro, três a João e uma a Judas Tadeu. Por fim, há o Apocalipse, atribuído a João [2].
As epístolas de Paulo foram formando aos poucos o catolicismo. São os documentos escritos mais antigos do cristianismo, datando cerca de quinze anos após a crucificação [3]. Elas trazem uma devoção apaixonada pela figura de Jesus Cristo e indicam a morte e a ressurreição como ponto focal da fé. Jesus foi transformado em figura divina quando seus ensinamentos se expandiram no mundo dos gentios, helenizados, do Império, pessoas que estavam acostumadas a acreditar em deuses com origens miraculosas. Assim se deu a necessidade de um nascimento de uma virgem. O nascimento virginal não faz parte das tradições judaicas.
Acredita-se que o primeiro evangelho a ser escrito foi o de Marcos, por um seguidor de Pedro, que falava em aramaico a partir de sua memória dos fatos e das palavras de Jesus, e este seguidor o interpretava em grego, a língua que a maioria dos povos entendia naquela época. Ele teria sido escrito por volta do ano 70 d.C., logo depois da Guerra dos Judeus, qundo, após um cerco de três anos, as tropas romanas invadiram Jerusalém e destruíram o Templo [...] Na época de Marcos, a ressurreição não era importante, nem a ascensão, tanto é que ele termina o seu evangelho com a tumba vazia.
No evangelho de Mateus, possivelmente escrito na Antioquia, por volta de 90 d.C., detectamos os resultados da influência grega. Mateus era um judeu culto que decidiu que o evangelho de Marcos estava desatualizado. O judaísmo e o cristianismo, nessa época, começaram a rivalizar, e Mateus mostrou um Jesus que era o cumprimento das profecias sobre o Messias, ao mesmo tempo em que usava linguagem antijudaica.
[...] O Evangelho de João parece ter sido escrito pelo próprio. Ele difere dos outros três, pois traz um ensinamento esotérico e com características gnósticas [4], logo na frase inicial: “no início era o Verbo” (ou Logos) [...] Supõe-se que Mateus e Lucas tivessem o evangelho de Marcos como referência para escrever os seus textos. Com o tempo, os estudiosos deduziram que eles usaram uma outra fonte, que os estudiosos alemães do século XIX chamaram de Q, de Quelle, ou fonte em alemão.
Fragmentos desse evangelho nunca foram encontrados, mas os estudiosos o encontraram entretecido dentro dos evangelhos de Mateus e de Lucas. É o resultado de um trabalho de detetive feito por historiadores e teólogos ao longo de 150 anos. Portanto, o evangelho Q é um documento hipotético. Chamam-no também de “A hipótese Q”. Se este evangelho realmente existiu, consiste em “ditos de Jesus”, portanto em sua mensagem e não em sua história [5]. Não é um evangelho narrativo [...] O evangelho Q pressupõe uma comunidade para a qual não importavam a vida, a morte e a ressurreição de Jesus, portanto, não enfatiza a “crença” em que Jesus “morreu pelos nossos pecados e ressurgiu dos mortos”. Para esta comunidade importavam os ensinamentos de Jesus.
[...] Os ditos em Q falam de um caminho ensinado por Jesus, um caminho profundamente subversivo à consciência cultural dominante da época, e talvez de todas as épocas. Era uma forma do cristianismo primitivo, Galileu, que enfatizava principalmente “O Caminho”, usando a frase citada em Atos, como o nome primitivo do movimento cristão, bem diferente das formas tradicionais e modernas do cristianismo.
Qual é a imagem de Jesus que emerge em Q? Enumeramos seis elementos:
- Jesus era um mestre de sabedoria com uma mente metafórica, um mestre de sabedoria não convencional, expressa em aforismos memoráveis.
- Jesus era um crítico cultural radical. A crítica é dirigida contra a riqueza e as elites governantes religiosas, políticas e econômicas. Jesus do Q ameaça Jerusalém com o julgamento divino.
- Jesus era um ecstático religioso. Ele tinha visões, foi para o deserto em busca de visão, passava horas rezando, seus opositores o julgavam possuído por espíritos [6], e falava de Deus em metáforas íntimas.
- Jesus era um curador e exorcista.
- Jesus era a Sabedoria de Deus (Sofia de Deus) e o Filho de Deus (não num sentido ontológico), mas não é comprovado que era assim desde o início.
- Jesus falava de uma escatologia apocalíptica e uma escatologia sapiencial. A primeira enfatiza a espera pelo ato de Deus, e a segunda fala do término de um mundo de consciência e dominação cultural, provocada pela reação a um mestre iluminado. Essa enfatiza que Deus espera que nós ajamos.
O Jesus do Evangelho Perdido Q não é Cristo nem Messias e sim o último de uma longa fila de profetas judeus. Ele é um mestre carismático, um curador, um homem simples pleno do espírito de Deus. Também é um sábio, a personificação da Sabedoria, formado na tradição do Rei Salomão.
As sinagogas da Galiléia não eram templos e sim locais de encontro, salões públicos onde os judeus se reuniam para cantar, rezar, fofocar e debater as escrituras. Provavelmente Jesus falava nesses locais, usando linguagem popular, referindo-se à vida rural [7].
Na continuação, Júlia fala dos documentos encontrados em Nag Hammadi, particularmente do Evangelho de Tomé.
***
[1] Isso pode passar desapercebido, mas é de enorme importância: significa que provavelmente o Evangelho de Marcos não foi escrito pelo próprio Marcos, o mesmo valendo para os demais. Já a questão da autoria do Evangelho de João é ainda mais misteriosa, pois sequer sabemos quem é afinal o discípulo amado.
[2] O que é um dos maiores contra-sensos daqueles que “organizaram” a Bíblia – atribuíram a autoria de um dos textos espiritualistas mais profundos da história ao mesmo autor de um verdadeiro hino pagão. Até aí tudo bem, contanto que os cristãos pós-Constantino (imperador que oficializou o cristianismo no Império Romano, no séc. IV) não condenassem tão veementemente o paganismo!
[3] E talvez os únicos dos quais podemos ter uma boa garantia de que foram realmente escritos pelo autor relacionado a eles – Paulo de Tarso.
[4] Os chamados gnósticos em realidade entendiam a si próprios como cristãos, foram principalmente os cristãos pós-Constantino que os intitularam assim, numa forma de diferenciar os “verdadeiros cristãos” dos “cristãos falsos ou equivocados”... E não foi apenas isso que eles fizeram com eles: também os perseguiram, assassinaram e queimaram quase todos os seus escritos. Os chamados gnósticos acreditavam que poderiam adorar a Deus em qualquer lugar, sem necessidade de templos ou padres... Na época isso dava pena de morte ou banimento.
Afora isso, eu não tenho a mesma certeza que João foi mesmo o discípulo amado.
[5] Há alguns que postulam que a história de Jesus não teria ficado tão famosa não fosse pela sua crucificação e ressurreição. Bem, talvez o mundo fosse diferente... Da mesma forma que Krishna, Lao Tsé e Buda não precisaram morrer de forma dramática para que sua sabedoria iluminasse as mentes do Oriente, talvez o Ocidente fosse bem diferente – provavelmente menos violento nos embates religiosos – se Jesus fosse lembrado apenas como um mestre de sabedoria e não um deus encarnado que enfrentou o calvário.
[6] Ah! A ironia!
[7] Observando igrejas suntuosas e ornamentadas, ou mesmo templos onde apenas uns poucos discursam enquanto a maioria ouve calada (ou assiste pela TV, ainda pior), não podemos ter exemplo mais claro de como o cristianismo rumou praticamente no caminho oposto do de Jesus. Filósofos debatendo em um jardim estariam mais de acordo com seu caminho...
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Crédito da foto: Bettmann/Corbis (página de um Evangelho de João bastante antigo)
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