Yeshuah, parte 3
Texto de Júlia Bárány Yaari prefaciando a HQ "Yeshuah” de Laudo Ferreira (Ed. Devir) – As notas ao final são minhas.
O Evangelho Q é muito semelhante ao Evangelho de Tomé, um dos documentos encontrados em Nag Hammadi, que também é um evangelho de ensinamento e não uma narrativa da vida, morte e ressurreição de Jesus. É um texto gnóstico, apócrifo, ou amálgama extraído dos outros Evangelhos, ou o protoevangelho, das palavras autênticas de Jesus [1]. Transmite uma gnose não dualista. Neste Evangelho, Jesus é um Ser, que procura nos despertar para a consciência dele, para a Realidade Absoluta.
Os quatro evangelhos foram sendo considerados com o passar do tempo como documentos incontestes sobre a vida e a obra Jesus, mas milhares de pesquisas teológicas e históricas chegaram a conclusões contraditórias, umas comprovando que os evangelhos são textos teológicos e outras comprovando que têm validade histórica. Discute-se desde a possibilidade de Jesus ser um mito, sem nunca ter de fato existido em corpo físico, até ter sobrevivido à cruz e se casado, tido filhos e morrido em idade avançada na Índia [2].
[...] Nag Hammadi é uma pequena localidade no Alto Egito, onde, em 1945, um camponês árabe encontrou um grande pote de cerâmica, contendo 13 livros em papiro encadernados em couro. No total, foram descobertos cinquenta e dois textos [3]. Para a surpresa do pesquisador [4], a primeira linha traduzida foi: “Essas são as palavras secretas que Jesus, o Vivo, proferiu, e que seu gêmeo, Judas Tomé, anotou”, que faz parte do Evangelho de Tomé, uma coleção de 114 ditames.
Os manuscritos, conhecidos como Evangelhos Apócrifos (Apocryphon = livro secreto [5]) trazem ensinamentos diferentes dos apresentados nos evangelhos canônicos, com características gnósticas e de tradições orientais, como, por exemplo, o trecho atribuído a Jesus, o Vivo: “Se manifestarem aquilo que têm em si, isso que manifestarem os salvará. Se não manifestarem o que têm em si, isso que não manifestaram os destruirá.” O legado de Nag Hammadi, portanto, além dos evangelhos secretos, contém poemas, descrições semifilosóficas da origem do universo, mitos, mágica, e instruções para a prática mística [6].
A gnose pode ser definida como uma experiência religiosa baseada numa sabedoria revelada. É um conhecimento total, intelectual e contemplativo que leva a pessoa à união com o objeto contemplado. Significa conhecer-se, o que, num nível mais profundo, é simultâneo a conhecer Deus. O gnosticismo foi banido pelo império romano de Constantino, na campanha contra as heresias, porque nele, a inspiração individual supera as instituições humanas e Jesus não é um deus e sim o último de uma linhagem de profetas [7].
Os papiros encontrados em Nag Hammadi tinham cerca de 1.500 anos, e eram traduções para o copta de manuscritos mais antigos escritos em grego, a língua do Novo Testamento, alguns dos quais foram encontrados 50 anos antes, em outros locais, como, por exemplo, fragmentos do Evangelho de Tomé.
Um comentarista bíblico que surpreende por sua coragem é Padre Méier, padre e professor da Universidade Católica, nos EUA, que publicou uma trilogia sobre o Jesus histórico. Sob a autoridade do Vaticano, o Padre Méier discute a evidência de que o Jesus histórico foi ilegítimo, que era casado, e vários outros tópicos que escandalizariam uma paróquia [8]. Ele concorda com todos os estudiosos eminentes que os evangelhos foram produto de mãos humanas, passaram por reescrita, e que, portanto, a imagem que nos apresentam hoje não é histórica. Méier concorda com seus colegas de que a figura histórica só pode ser obtida se as camadas de teologia forem tiradas, desconstruindo os evangelhos. Sendo um bom historiador crítico, ele descarta a verdade histórica dos elementos sobrenaturais: andas sobre as águas, transformar água em vinho, e consegue evitar confrontos com Roma, recusando-se a tirar conclusões em casos sensíveis como a ressurreição de Lázaro, dizendo ser possível que Lázaro estivesse mortalmente doente e foi curado por Jesus, fato que com o tempo se transformou em ressurreição dos mortos [9].
Na continuação, Júlia encerra seu brilhante prefácio com uma tentativa de definir este “novo” Jesus que emerge dos textos apócrifos.
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[1] Obviamente esta será sempre a grande questão: como saber o que Jesus disse se nada deixou escrito e se aqueles que escreveram sobre ele muito provavelmente tiveram grandes interferências em sua obra? Infelizmente Jesus não viveu na Grécia antiga, e não dispôs de algum discípulo, tal qual Platão fez com Sócrates, para organizar seus pensamentos em textos que estariam a salvo de edições. O máximo que podemos fazer, portanto, é tentar avaliar dentre os ensinamentos atribuídos a ele – quais são realmente profundos, e quais são superficiais.
[2] Se morreu na Índia já não sei, mas que provavelmente andou por lá no “intervalo” de sua juventude – que, aliás, não é descrito em nenhum dos quatro evangelhos –, é uma teoria que guardo na mente com carinho.
[3] Na verdade foram achados por dois irmãos. Infelizmente, antes de terem a brilhante ideia de venderem os textos para algum museu, eles utilizaram alguns papiros para manter uma pequena fogueira acesa. Provavelmente foi o jantar mais caro da história. Outras versões indicam que eles os queimaram por acharem que continham “maldições”...
[4] Eles eventualmente chegaram às mãos de um pesquisador copta.
[5] Embora seja muito mais comum vermos a crença, fortalecida pelos eclesiásticos católicos e protestantes, de que “apócrifo” significa simplesmente “errado” ou “falso, não autêntico”.
[6] Também foram encontrados trechos extensos de “A República” (de Platão) em meio aos papiros, modificados com conceitos gnósticos (o que reduz a esperança de que mesmo textos profundos como o Evangelho de Tomé sejam “intocados”).
[7] Na verdade segundo o cristianismo oficial Jesus é o próprio Deus encarnado, feito homem, ou ao mesmo tempo homem e Deus, ou algo complexo desse tipo... Que somos deuses, o próprio Jesus diz: “vós sois deuses, farão tudo o que faço e muito mais”.
[8] Há inúmeras outras pesquisas do tipo no Vaticano, e afirmo isso no bom sentido: apesar de tudo, ainda existem religiosos de verdade em meio à ornamentação inútil.
[9] Em todo caso, para nós espiritualistas é a profundidade espiritual de seus ensinamentos o que conta, e não os milagres realizados – se é que foram mesmo.
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Crédito da foto: James Marsh
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