Caminhando em noite fria
Há alguns anos, quando ainda era jovem e solteiro, costumava passar as férias da faculdade no interior de Minas, numa cidadezinha sempre fria e maravilhosa, colonizada por europeus fugitivos das guerras, e na qual minha família tem um hotel fazenda. Renatinho [1] era um dos funcionários com maior salário por lá, já que era inteligente e sabia lidar bem com os hóspedes. Não era exatamente um amigo íntimo, mas já o conhecia há alguns anos. Numa dessas tantas noites gélidas do inverno do sul de Minas, estávamos eu e ele, e outros amigos, numa balada [2] na rua principal da cidade, há uns 2 ou 3 Km do hotel...
Como era comum na minha juventude um tanto quanto tímida, acabou a noite e eu não havia arrumado nenhuma garota, então aceitei o convite do Renatinho para que voltássemos os dois andando até o hotel, já que o restante do pessoal que estava com a gente ou já havia ido embora, ou ainda ficaria muito mais tempo (os que “se deram bem”, pelo menos). Subimos então a longa rampa de estrada de terra que dava no hotel, com a noite tão escura que as estrelas mais pareciam anúncios siderais, e qualquer cavalo que passasse pelo caminho podia ser facilmente confundido com um demônio silencioso.
Em dado momento, Renatinho se aproximou e apoiou o braço esquerdo nos meus ombros, quase me abraçando, embora estivéssemos ainda caminhando... Pode ser algo vergonhoso para alguns, mas eu realmente nunca havia me dado conta, até aquele momento, de que meu amigo era homossexual. Naqueles segundos em que andamos quase abraçados, antes que qualquer um dissesse qualquer coisa, eu me dei conta de que, em todo o tempo que o conhecia, houveram inúmeras “pequenas dicas” de que ele era gay, mas eu não havia prestado atenção em nenhuma delas... Seria inocência? Duvido, pois naqueles segundos os pensamentos que me assaltaram a mente não eram nem um pouco inocentes: “Que droga, não acredito nisso; não peguei ninguém na festa, e agora ainda mais essa!”.
O que Renatinho propôs em seguida não ajudou muito a afastar tais pensamentos. Meu amigo havia proposto fazer sexo oral em mim, e ainda prometeu que não iria contar pra ninguém, que aquilo nunca mais precisava acontecer, etc. Eu disse apenas: “Renatinho, foi mal cara, mas não dá, meu negócio não é esse não...”
Mas continuamos caminhando, meio abraçados, em noite fria. Meu amigo não respondia nada, e eu continuava com alguns pensamentos distintos assaltando minha mente: “Será que ele achou que eu era gay? Será que todo mundo acha que eu sou gay? Mas que droga!”. Foi o que ocorreu em seguida que transformou essa história tragicômica em algo mais profundo, digno de ser relatado adiante – Subitamente, Renatinho começou a chorar compulsivamente...
Percebendo o choro, eu parei de caminhar e perguntei o que havia acontecido... Ele apenas se desvencilhou de mim e seguiu aos prantos, na minha frente.
“Ei, ei Renatinho, calma cara, não precisa ficar assim... Não estou com nojo de você nem nada disso.” – Eu pensei que era alguma coisa útil a se dizer, e estava sendo sincero, não era nojo o que eu havia sentido, em nenhum momento.
“Pois deveria... Todos tem nojo de mim... Eu estou condenado. Eu sei que sou doente, mas não consigo me curar...” – Dizia meu amigo em meio à noite estrelada. O assunto havia ficado mais sério, mas, por sorte, o aspecto religioso do problema era a minha especialidade...
“Doente? Como assim doente... Vem cá, Renatinho, para um pouco de correr aí na frente e me diz: desde quando você gosta de homens?”
“Desde sempre! Desde que nasci... O demônio me amaldiçoou...”
“Que amaldiçoou o que... Você não sabe que tem animais que são homossexuais[3]? Se você já nasceu assim, é porque Deus te fez assim mesmo, do jeito que você é. Qual o problema disso?”
“Qual o problema? O problema é que eu vou para o Inferno!”
“E como você sabe?”
“É o que todo mundo diz... Que na Bíblia diz que todo gay vai arder no Inferno... Mas eu tentei mudar, tentei me curar, mas não consigo!”
Então já estávamos na entrada do hotel, o que foi bom, pois pudemos entrar e tomar um chá quente perto da lareira da recepção... E assim, com o coração mais aquecido, Renatinho pode se acalmar e prestar atenção em tudo que eu tinha para dizer sobre como a Bíblia não era infalível e, mesmo que fosse, sobre como não há uma referência clara ao fato de todo homossexual ir para o inferno (pelo menos, não mais do que para todo ladrão de galinhas, ou para todo aquele que possui um escravo da mesma região em que nasceu [4]). Também lhe indaguei se era justo da parte de Deus que deixasse um demônio a solta que poderia amaldiçoar as pessoas ainda no berço, e ele sabiamente disse que não, no que aproveitei para questionar se poderia mesmo existir um ser que fosse “rival” de Deus, o que ele não soube responder, mas talvez tenha se tornado um pouco mais cético em relação a real extensão dos “poderes” do tal demônio, se é que ele existe. Finalmente, ainda lhe disse que o mundo estava superpovoado, e que não era necessariamente um “pecado capital” não termos filhos e que, em todo caso, sempre seria possível ele e um futuro namorado adotarem uma criança órfã.
E você pode estar achando que eu estava me sentindo melhor por estar ajudando na “iluminação” do meu amigo, mas a verdade é que tudo o que disse servia tanto para ele quanto para mim. Eu havia aberto o coração e me colocado no lugar dele e, como numa magia empática, subitamente a inspiração para tudo aquilo que disse foi chegando, como que irradiada de alguma estrela da noite mineira – as estrelas, afinal, não haviam saído do lugar.
Dessa forma, a razão pela qual não relato aqui exatamente o que eu disse ao Renatinho é principalmente porque já não me lembro mais. Tudo o que lembro é de ter passado por uma experiência libertadora, espiritual, que parece ter modificado tanto a ele quanto a mim... Depois daquela noite fria, meu amigo nunca mais foi o mesmo: meses depois, já havia largado o emprego no hotel e assumido um cargo muito mais exigente, como gerente de um outro grande hotel da cidade. Anos depois, soube que se tornou jornalista, radialista, articulista, e que havia se mudado para São Paulo. Também soube que, desde aquela noite, ele nunca mais havia tentado ocultar dos outros que era gay. Renatinho se tornou ele mesmo: apenas do jeito que Deus o colocou no mundo.
Mas eu também havia saído daquela noite fria maior, com o coração mais quente, e quem sabe um pouco mais atento a luz das estrelas... Desde então, passei a prestar maior atenção a todos aqueles pensamentos estranhos que tentaram me afastar de meu amigo num primeiro momento, mas que em realidade nunca foram exatamente meus. Naquela noite eu soube, enfim, que não poderia jamais me aproximar de Deus enquanto me afastava dos homens, de qualquer um que fosse que houvesse me ofertado apenas amor – seja ele de qual tipo for –, e que não mereceria, nunca mais, a violência, a ignorância, a cegueira ante as estrelas, em troca.
raph’12
***
[1] Nome fictício.
[2] Na época ainda se usava “boate”.
[3] Se você não acredita nisso, talvez fosse uma boa oportunidade para aprender mais sobre os bonobos.
[4] Veja também os artigos – Levítico: pedras não faltarão e Querida Dra. Laura...
Crédito da foto: Kai Chiang/Golden Pixels LLC/Corbis (casal gay em um restaurante americano)
Marcadores: amor, contos, contos (51-60), empatia, espiritualidade, ignorância, preconceito, Rafael Arrais, sexo
9 comentários:
Incrível relato Rafa! A questão da homosexualidade é mais um dos mistérios desta espetacular experiência que vivenciamos neste mundo...
Na Grécia antiga nem era tão misterioso assim, apenas era parte da sexualidade humana como um todo. Em alguma parte do caminho, por alguma razão, resolvemos demonizá-la...
Abs
raph
Acho que um dos grandes problemas da homossexualidade hoje, é que todo homem acha que se um homossexual se aproxima é pq quer sexo. Pode acontecer de haver atração, mas parece que homossexual não pode ter amigos homens! Isso é ridículo! Muitas vezes vc se aproxima de alguém pq acha a pessoa interessante (no sentido pessoal, sem nada além de uma amizade em mente) e parece q vc está tentando seduzir uma virgem... Claro, algumas vezes pode acontecer das pessoas misturarem os sentimentos, como no seu relato, mas isso não é regra, é só deixar as coisas claras, para a pessoa não se confundir, pq para quem está acostumado a pedradas, atenção confunde. Enfim, tema difícil. Enquanto não vermos uma alma humana apenas como uma alma humana, dotada de particularidades, estaremos fadados aos rótulos estúpidos, usados pela maioria...
Acabei falando d+ sobre um assunto e esqueci de dizer: belo exemplo de humanidade o seu. Tudo o que precisamos é de pessoas humanizadas, no bom sentido do termo.
Pois é... Eu falei ali da magia empática né, e foi assim que eu compreendi que na verdade ele tinha tentado por muito tempo me indicar que tinha atração por mim (como disse, a gente era amigo), mas eu realmente não havia percebido, de tanto medo que ele tinha de estar sendo "grosseiro". Acho que quando eu aceitei voltar só com ele, talvez por estar de noite e ele ter bebido algumas, acabou tomando coragem...
Mas, como eu disse, foi uma experiência que me tornou mais humano, sem dúvida. E acho que quanto mais humano eu fico, mais as estrelas se aproximam de mim :)
Abs!
raph
Na minha família, sempre houve bastante convívio com homosexuais; por algum motivo sempre haviam laços de amizades. Cresci rodeado de gays e depois, quando fiquei adulto, encontrei vários por aí nas baladas noturnas. Mas nunca nenhum insinuou algum interesse sexual em mim. Isso me surpreende e me ensina que a vida deles não é uma promiscuidade desenfreada, como muitos podem pensar.
Pois é, é exatamente por isso, pela maioria dos gays não ser promíscuo como o esterótipo pinta, é que parte do próprio movimento de orgulho gay critica a parada gay quando esta mais parece uma micareta. É claro que pode-se dizer: "mas os héteros tem direito a micareta, e nós não?". O problema é que a parada gay era para ser antes um ato político, uma manifestação, e não uma festa simplesmente... (mas é claro que nem todos os eventos da parada gay são "estilo micareta").
Abs
raph
Nossa Raph, bacana mesmo este texto!
Também não entendo porque o homossexual foi demonizado, como você comentou na grécia, roma antiga e até os animais já tiveram isto como natural. Como acredito em reencarnação, acho que de fato não devemos de forma alguma hostilizá_los, afinal nas várias vidas que tivemos podemos ter sido também, podemos ter filhos com esta orientação, não é algo que deve ser condenado.
Após o advento do cristianismo a prática foi condenada no império romano, a sociedade como sempre hipócrita e puritana, mas acredito que no fundo o alvo fosse a promiscuidade, as bacanais e orgias que pululavam ...o que difere muito do amor é amor e não importa como acontece.
Quase rolou uma lagrima aqui com o desabafo do seu amigo, porque a dor moral é a pior que existe, e foi infelizmente provocada por interpretação equivocada da religião, preconceito, enfim, julgamentos que não deveriam partir de seres humanos.
Bjo
Oi Yara :)
Sim foi nesse dia (nesta noite) que eu decidi passar a prestar mais atenção aos pensamentos "que vem de fora", pois percebi que o grande prejudicado pelo preconceito era eu mesmo, que talvez por conta de algumas ideias que nunca foram realmente minhas, tenha deixado de conviver (ou ser mais íntimo) com pessoas que poderiam agregar muito a minha vida. Preconceito é ignorância, e fiquei muito feliz de ter compreendido isso a partir desta conversa...
Bjs!
raph
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