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7.7.12

Parker

» Conto pessoal, da série “Cotidianos”, com breves reflexões acerca dos eventos do dia a dia...


Acabei de ver o novo filme de Peter Parker.

Para quem não sabe, Peter Parker é o Homem-Aranha. Mas o que todo mundo está comentando é sobre o reinício da série de filmes no cinema: “Como assim, não é o Homem-Aranha 4? É outro ator? Vão contar a história toda outra vez? Para que?”.

Tudo bem, talvez tenham relançado a “nova franquia” cedo demais; Em essência, no entanto, estão apenas seguindo a mitologia do Homem-Aranha: as histórias mitológicas estão sendo recontadas há milênios, e Parker é apenas mais um herói, mais um mito...

Nas noites estreladas de outrora, em torno das fogueiras, nas tavernas vikings, nas baladas medievais, os mitos não eram vistos por espectadores passivos através de uma projeção de cinema, mas ainda tanto melhor: eram imaginados, vivenciados e, por vezes, incorporados.

A melhor cena do filme pode ter passado desapercebida – não é central a história do filme em si, mas sim uma referência ao mito de Parker, o jovem herói com grandes responsabilidades... Nela, um garotinho precisa fugir de um carro suspenso pela teia do Aranha, mas sem poder contar com sua ajuda, já que o herói está a sustentar o carro no ar, evitando que caia de uma ponte. Parker retira a máscara e joga para o garoto: “Vá, ponha a máscara; Ela te transforma num herói, com ela não precisará ter medo”. No fim, claro, o garoto consegue alcançar o Aranha, é salvo, e Parker recoloca a máscara. Metalinguagem?

O cético não crê em deuses e antigos mitos: “É tudo mentira!”. Mas o cético pode ser um grande fã do Homem-Aranha: “Sei que não existe, mas eu amo o Peter Parker... As vezes me sinto como se fosse um herói como ele”. Ironia da ironia – por vezes é o cético quem melhor vivencia o mito, quem faz dele uma verdadeira religião sem dogmas... Como os homens de outrora.

Para não sair das histórias em quadrinhos, foi Alan Moore quem alertou [1]: “A maioria das pessoas tem pavor da responsabilidade de cuidar da própria alma”... Grandes poderes, grandes responsabilidades!

Todos temos o maior dos poderes: a vontade. O Homem-Aranha é rápido, ágil, escala paredes e têm um sentido que lhe alerta do perigo – mas foi Peter Parker quem teve a vontade de ser um herói.

Outro grande herói, bem mais antigo, nos disse algo bem parecido com isso: “Sois heróis! Dia virá que farão tudo que tenho feito, e ainda muito mais!”

Em nossa mente, em nossa alma, um lagarto monstruoso está na espreita, esgueirando-se pelo esgoto de nossa metrópole de pensamentos...

Mas não é o Homem-Aranha quem virá nos socorrer – nós somos o herói, nós somos Parker... “O que está esperando aí? Trate de saltar pela janela, para dentro de si mesmo, e caçar o seu lagarto!”

***

[1] Em The Mindscape of Alan Moore.

Crédito da imagem: Divulgação (O Espetacular Homem-Aranha, 2012)

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5.7.12

Anti-reflexo

» Conto pessoal, inaugurando a série “Cotidianos”, com breves reflexões acerca dos eventos do dia a dia...


Uma em cada quatro crianças não enxerga bem.

É isso que acabei de ler na seção “Você sabia?” do site da empresa que criou as minhas lentes anti-reflexo. Depois piora, segundo o mesmo site: cerca de 2,4 bilhões de pessoas no mundo não enxergam bem. Isso é um tanto quanto vago, no entanto: o que seria enxergar bem, afinal?

Se estavam se referindo a miopia, ou “enxergar mau de longe”, acertaram em cheio: eu fui parte das crianças que não enxergavam bem. Descobri isso quando comecei a sentar mais pelas últimas fileiras da sala de aula; Acho que quando comecei a ser mais levado, descobri que não enxergava bem o quadro negro... Mas não foi punição do Papai Noel, foi?

Você sabia que quando uma criança com cerca de 2 graus de miopia passa a usar óculos pela primeira vez, o topo dos prédios de Copacabana passa a ser a visão mais interessante do mundo? “Nossa, olha aquela pessoa olhando daquela janela lá em cima, e eu consigo vê-la direitinho daqui da janela do ônibus!”.

Geralmente não nos lembramos mais de quando aprendemos a enxergar as coisas pela primeira vez, mas quando você volta a aprender a enxergar as coisas distantes, lá pelos 6 anos de idade, esta pode ser uma memória e tanto... É como o caçador-coletor que encontrou o final da floresta, e admirou as árvores distantes na planície.

Que é o mundo todo, senão o que percebemos dele?

Muito tempo após, já adulto, eu comprei minha primeira TV de alta definição, dessas que usam cabo HDMI. Então pluguei meu videogame de alta definição nela, e me preparei para o espetáculo: nada demais. A primeira coisa que aprendi é que não adianta termos uma TV de alta definição, nem um videogame de alta definição, se não temos um cabo que suporte tanta definição junta, conectando tudo isso numa mesma experiência.

Conectei o cabo, a loja que me vendeu disse que era caro porque tinha “partes de ouro”... Bem, eu admito que dei pause no game de futebol e fiquei uns 5 minutos apenas apreciando a alta definição do gramado – e nem era um gramado real, mas virtual. Importante é que o cabo funcionou, já estava achando que aquela alta definição toda era um conto do vigário...

Mas nossa história ainda não terminou. Eu tinha óculos com lentes anti-reflexo e etc., achava que com eles havia deixado de fazer parte daqueles bilhões todos que não enxergam lá muito bem. Mas ocorre que, olhando para a tela da minha TV de alta definição, um dia percebi que a lente direita estava muito arranhada... Eu nem estava enxergando tudo com tanta definição assim!

Fui novamente numa ótica depois de muitos anos. Minha miopia havia estagnado em 5 graus, então apenas encomendei óculos novos. Mas não eram quaisquer lentes de óculos:

Para quem busca um produto premium. A melhor performance em lente anti-reflexo do mercado oferece uma visão nítida por muito mais tempo do que qualquer outra lente. Maya Forte [1] oferece as melhores performances para combater os 5 inimigos da visão, pois foi desenvolvido através de uma combinação de tecnologias de ponta resultando nos benefícios...

A seguir, o site da empresa lista os benefícios. Espinosa, sem dúvida, seria um homem muito rico hoje em dia – isto é, se tivesse vocação empreendedora. Mas, voltando ao assunto que importa: coloquei minhas novas lentes premium e liguei minha TV de alta definição. “Uau!”. Agora sim, estava lembrando os prédios de Copacabana.

O anti-relexo não serve para expulsar a luz, e sim para filtrar a luz que realmente importa: aquela que estamos contemplando. É esta que chegará aos olhos da mente e do espírito, não importa o grau da miopia, e tampouco a qualidade dos óculos. Não importa nem mesmo se podemos enxergar. Há muitas formas de ser ver o mundo, assim como há muitas formas de passear por aqui sem nada perceber, com olhos que nada veem e nada sentem. Eu sou, portanto, eternamente agradecido ao que vi, aos 6 anos, quando saí com meu pai do oculista.

O mundo todo estava apenas um pouco além de alguns graus de miopia. Para quem não enxerga bem, há lentes anti-reflexo. Para quem já enxerga bem, e nada reflete, o caminho será um tanto mais árduo...

***

[1] Marca de fantasia.

Crédito da foto: Tetra Images/Corbis

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2.7.12

Onde vivem os deuses

Deus não se demonstra
Não está aqui ou ali
Não disse isto ou aquilo
Deus é uma experiência
Um pensamento antes da linguagem
Pois que não é uma palavra
Nem um conceito, nem uma ideia, nem uma filosofia...
Deus não é nada que possamos defender com palavras, com cascas de sentimento...
Deus é o puro sentimento
Deus não é o puro sentimento
Deus apenas é

“Ele passou por aqui” – diz-nos a testemunha
Passou pela alma, tal qual leve brisa a escorar pelo ombro...
“Onde foi agora?”
Para todo lugar
Para nenhum lugar

O agnóstico tem razão ao dizer que não podemos compreender a Deus, nem a existência de Deus...
Assim como os poetas não podem compreender a poesia, o amor...
O amor é como um pássaro fugidio
A sombra de uma nuvem – um leve acinzentado pairando pela paisagem
O animal fantástico, a Fênix!
Há muitos poetas-caçadores que tentaram captura-la, mas nenhum deles jamais trouxe a prova...
Nenhuma pena da Fênix para contar a história
Apenas a experiência
O deslumbre e o espanto
De observar a mais bela das aves a voar...
Mas, e onde estaria agora, para onde teria voado?

A ave do amor voou para além do horizonte da linguagem
A fronteira entre a sua terra e a terra do pensamento
Parece-nos intransponível...

Somente os poetas-loucos souberam construir essa tal ponte
Entre a razão e o amor
Em seus pensamentos há uma luz que brilha ainda antes que possam dizer:
“Estou pensando”
E então dizem o que não podem dizer:
“Estou pensando no amor”
“Estou pensando em Deus”

Há essa ponte entre duas terras:
A terra onde tudo está separado em pequenas caixas, como segredos hermeticamente fechados;
E a terra onde tudo jaz junto, unido, conectado...

O amor é a ponte
O amor é uma fonte
Deus está a aguardar na outra margem
Deus não está a aguardar na outra margem
Deus é uma experiência


raph’12

***

» Parte da série "Mito da criação"

Crédito da foto: Peter Adams/JAI/Corbis (Angkor Wat, Camboja)

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11.6.12

Caminhando em noite fria

Há alguns anos, quando ainda era jovem e solteiro, costumava passar as férias da faculdade no interior de Minas, numa cidadezinha sempre fria e maravilhosa, colonizada por europeus fugitivos das guerras, e na qual minha família tem um hotel fazenda. Renatinho [1] era um dos funcionários com maior salário por lá, já que era inteligente e sabia lidar bem com os hóspedes. Não era exatamente um amigo íntimo, mas já o conhecia há alguns anos. Numa dessas tantas noites gélidas do inverno do sul de Minas, estávamos eu e ele, e outros amigos, numa balada [2] na rua principal da cidade, há uns 2 ou 3 Km do hotel...

Como era comum na minha juventude um tanto quanto tímida, acabou a noite e eu não havia arrumado nenhuma garota, então aceitei o convite do Renatinho para que voltássemos os dois andando até o hotel, já que o restante do pessoal que estava com a gente ou já havia ido embora, ou ainda ficaria muito mais tempo (os que “se deram bem”, pelo menos). Subimos então a longa rampa de estrada de terra que dava no hotel, com a noite tão escura que as estrelas mais pareciam anúncios siderais, e qualquer cavalo que passasse pelo caminho podia ser facilmente confundido com um demônio silencioso.

Em dado momento, Renatinho se aproximou e apoiou o braço esquerdo nos meus ombros, quase me abraçando, embora estivéssemos ainda caminhando... Pode ser algo vergonhoso para alguns, mas eu realmente nunca havia me dado conta, até aquele momento, de que meu amigo era homossexual. Naqueles segundos em que andamos quase abraçados, antes que qualquer um dissesse qualquer coisa, eu me dei conta de que, em todo o tempo que o conhecia, houveram inúmeras “pequenas dicas” de que ele era gay, mas eu não havia prestado atenção em nenhuma delas... Seria inocência? Duvido, pois naqueles segundos os pensamentos que me assaltaram a mente não eram nem um pouco inocentes: “Que droga, não acredito nisso; não peguei ninguém na festa, e agora ainda mais essa!”.

O que Renatinho propôs em seguida não ajudou muito a afastar tais pensamentos. Meu amigo havia proposto fazer sexo oral em mim, e ainda prometeu que não iria contar pra ninguém, que aquilo nunca mais precisava acontecer, etc. Eu disse apenas: “Renatinho, foi mal cara, mas não dá, meu negócio não é esse não...”

Mas continuamos caminhando, meio abraçados, em noite fria. Meu amigo não respondia nada, e eu continuava com alguns pensamentos distintos assaltando minha mente: “Será que ele achou que eu era gay? Será que todo mundo acha que eu sou gay? Mas que droga!”. Foi o que ocorreu em seguida que transformou essa história tragicômica em algo mais profundo, digno de ser relatado adiante – Subitamente, Renatinho começou a chorar compulsivamente...

Percebendo o choro, eu parei de caminhar e perguntei o que havia acontecido... Ele apenas se desvencilhou de mim e seguiu aos prantos, na minha frente.

“Ei, ei Renatinho, calma cara, não precisa ficar assim... Não estou com nojo de você nem nada disso.” – Eu pensei que era alguma coisa útil a se dizer, e estava sendo sincero, não era nojo o que eu havia sentido, em nenhum momento.

“Pois deveria... Todos tem nojo de mim... Eu estou condenado. Eu sei que sou doente, mas não consigo me curar...” – Dizia meu amigo em meio à noite estrelada. O assunto havia ficado mais sério, mas, por sorte, o aspecto religioso do problema era a minha especialidade...

“Doente? Como assim doente... Vem cá, Renatinho, para um pouco de correr aí na frente e me diz: desde quando você gosta de homens?”

“Desde sempre! Desde que nasci... O demônio me amaldiçoou...”

“Que amaldiçoou o que... Você não sabe que tem animais que são homossexuais[3]? Se você já nasceu assim, é porque Deus te fez assim mesmo, do jeito que você é. Qual o problema disso?”

“Qual o problema? O problema é que eu vou para o Inferno!”

“E como você sabe?”

“É o que todo mundo diz... Que na Bíblia diz que todo gay vai arder no Inferno... Mas eu tentei mudar, tentei me curar, mas não consigo!”

Então já estávamos na entrada do hotel, o que foi bom, pois pudemos entrar e tomar um chá quente perto da lareira da recepção... E assim, com o coração mais aquecido, Renatinho pode se acalmar e prestar atenção em tudo que eu tinha para dizer sobre como a Bíblia não era infalível e, mesmo que fosse, sobre como não há uma referência clara ao fato de todo homossexual ir para o inferno (pelo menos, não mais do que para todo ladrão de galinhas, ou para todo aquele que possui um escravo da mesma região em que nasceu [4]). Também lhe indaguei se era justo da parte de Deus que deixasse um demônio a solta que poderia amaldiçoar as pessoas ainda no berço, e ele sabiamente disse que não, no que aproveitei para questionar se poderia mesmo existir um ser que fosse “rival” de Deus, o que ele não soube responder, mas talvez tenha se tornado um pouco mais cético em relação a real extensão dos “poderes” do tal demônio, se é que ele existe. Finalmente, ainda lhe disse que o mundo estava superpovoado, e que não era necessariamente um “pecado capital” não termos filhos e que, em todo caso, sempre seria possível ele e um futuro namorado adotarem uma criança órfã.

E você pode estar achando que eu estava me sentindo melhor por estar ajudando na “iluminação” do meu amigo, mas a verdade é que tudo o que disse servia tanto para ele quanto para mim. Eu havia aberto o coração e me colocado no lugar dele e, como numa magia empática, subitamente a inspiração para tudo aquilo que disse foi chegando, como que irradiada de alguma estrela da noite mineira – as estrelas, afinal, não haviam saído do lugar.

Dessa forma, a razão pela qual não relato aqui exatamente o que eu disse ao Renatinho é principalmente porque já não me lembro mais. Tudo o que lembro é de ter passado por uma experiência libertadora, espiritual, que parece ter modificado tanto a ele quanto a mim... Depois daquela noite fria, meu amigo nunca mais foi o mesmo: meses depois, já havia largado o emprego no hotel e assumido um cargo muito mais exigente, como gerente de um outro grande hotel da cidade. Anos depois, soube que se tornou jornalista, radialista, articulista, e que havia se mudado para São Paulo. Também soube que, desde aquela noite, ele nunca mais havia tentado ocultar dos outros que era gay. Renatinho se tornou ele mesmo: apenas do jeito que Deus o colocou no mundo.

Mas eu também havia saído daquela noite fria maior, com o coração mais quente, e quem sabe um pouco mais atento a luz das estrelas... Desde então, passei a prestar maior atenção a todos aqueles pensamentos estranhos que tentaram me afastar de meu amigo num primeiro momento, mas que em realidade nunca foram exatamente meus. Naquela noite eu soube, enfim, que não poderia jamais me aproximar de Deus enquanto me afastava dos homens, de qualquer um que fosse que houvesse me ofertado apenas amor – seja ele de qual tipo for –, e que não mereceria, nunca mais, a violência, a ignorância, a cegueira ante as estrelas, em troca.


raph’12

***

[1] Nome fictício.

[2] Na época ainda se usava “boate”.

[3] Se você não acredita nisso, talvez fosse uma boa oportunidade para aprender mais sobre os bonobos.

[4] Veja também os artigos – Levítico: pedras não faltarão e Querida Dra. Laura...

Crédito da foto: Kai Chiang/Golden Pixels LLC/Corbis (casal gay em um restaurante americano)

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25.5.12

Eros vendado

Dizem que foi sua prometida quem desesperou-se ao ver-se privada de sua beleza, mas os mitos não contaram esta outra história acerca de Eros:

O deus estava arrependido da brutalidade com que tratou Psiquê quando esta, pensando que o amado fosse um monstro, retirou suas vendas enquanto dormia, e pôde enfim admirar toda a sua beleza... Assim, desde então, Eros andava enlouquecido em meio ao Elísio, coberto de vergonha...

Como estava vendado, e se recusava a ver toda a beleza a sua volta, tornou-se amargo, temeroso do contato íntimo com qualquer um que lhe cruzasse o caminho: “vão retirar minha venda, vão ver minha beleza, mas somente Psiquê é digna de me ver!” – pensava consigo mesmo, angustiado.

Zeus, que tudo via e sabia, encarregou seu mensageiro, Hermes, de tentar convencer Eros a retornar a razão...

Então, cortando os céus feito um corcel alado, o mensageiro seguia o rastro de sangue que Eros deixara pelos caminhos do Elísio... Pobres animais, homens e semideuses, todos alvejados pelas flechas venenosas do Eros Vendado. As mesmas que antes traziam o amor, agora traziam a agonia.

Retirando a flecha negra do peito de um velho mercador de frutas que agonizava na estrada, Hermes lhe indagou acerca de seu encontro com Eros:

“Tudo o que fiz foi lhe oferecer uma de minhas maçãs, eu juro! Mais parecia um mendigo andarilho, pobre e esfomeado... Não sabia se tratar de um deus, por isso achei que fosse apreciar uma de minhas maçãs... Ofereci-lhe o alimento de coração, não pretendia ganhar nada em troca. Mas o deus estava louco, e zombou de minha caridade, alvejando-me em seguida... Nossa, como doem essas flechas negras...”

Restaurado, o mercador apontou a direção na qual o deus enlouquecido seguiu, e, tão rápido quanto um pensamento, Hermes estava lá, frente a frente com o Eros Vendado:

“Irmão, nosso pai deseja lhe ver...”

“E eu... Eu desejo ver meu pai... Mas como saberei se você é mesmo meu irmão? Como saberei se não é mais um truque da Beleza para que eu jamais veja minha amada novamente? Saia daqui!” – bradou o deus descontrolado, mas ainda muito preciso com seu arco que, sabe-se lá como, estava perfeitamente posicionado na direção de Hermes, ainda que Eros nada pudesse enxergar.

“Irmão, se você não me vê agora, como poderia ver sua amada, ainda que ela estivesse ao meu lado?” – respondeu Hermes ainda muito calmo, embora uma flecha negra e peçonhenta estivesse endereçada a sua fronte.

“Quem é você para falar dela? Maldito!” – atirou a flecha com tamanha precisão que, não fosse pelo elmo alado de seu irmão, o alvo teria sido atingido.

Hermes agachou-se e retirou a flecha do elmo que caíra ao solo. Então, com agilidade divina, o deus mensageiro rolou pelo chão e, antes que seu irmão pudesse atirar outra flecha, cravou-a bem no peito esquerdo, através do coração.

Ali morrera o Eros Vendado. Mas, como os deuses não permanecem mortos por muito tempo, Hermes tratou de levá-lo até a fonte d’água mais próxima e, o tendo lavado e desvendado, deixou-o ali na margem, bem morto, e esgueirou-se para detrás de um arbusto...

Quando finalmente ressuscitou, Eros parecia desnorteado, mas não louco... Na verdade, era como se tivesse acordado de um longo sono de loucura, e aparentemente recuperado sua sanidade novamente. A primeira coisa que fez foi lavar o rosto no espelho d’água. Foi quando Hermes se reapresentou, ele precisava ter certeza:

“Veja seu rosto no espelho, irmão, e diga-me: qual é o mais belo dos deuses?

Eros procedeu conforme instruído e, virando-se para Hermes, com a face feita ainda mais bela, com pingos d’água a escorrer em torno dos largos olhos, refletindo ao sol, disse-lhe:

“Ninguém... E todos... Todos os deuses são belos; e mais bela ainda é a humanidade, por tê-los imaginado...”

Então, Hermes sorriu: a missão estava cumprida, o Amor havia retornado a sanidade.


raph’12

***

Lá onde nasce o verdadeiro amor
morre o "eu", esse tenebroso déspota.
Tu o deixas expirar no negro da noite
e livre respiras à luz da manhã.

(Jalal ud-Din Rumi)

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Parte da série Esta outra história

Crédito da foto: BürgerJ (escultura Eros Bendato, de Igor Mitoraj)

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11.5.12

Este momento

O momento, o que é o momento?

Algo que foi e já não é, algo que ainda virá, ou...
Algo que ocorre, simplesmente flui:
Aqui
Agora
E já não é mais

O santo boêmio de Hipona foi quem primeiro confessou:
Há a expectativa presente das coisas futuras
Há a lembrança presente das coisas passadas
Mas, onde está o presente, o momento?
Será que existe?

Talvez o momento só exista para aqueles que desistiram de se inquietar com o tempo, todo o tempo
E aceitaram que somos apenas a testemunha do fluxo deste rio
Que nos engloba a todos
E flui para algum oceano inconcebível...

Sabemos que existem, pois, tais momentos:
O momento do vir à vida
O momento da despedida
E este momento
Este precioso momento
Que, por sua própria definição, é um presente
O presente que ocorre entre estes dois pontos
A ponte entre a morte e a vida...

O que está a fazer com o seu?


Para se ler acompanhado por Moments (de Will Hoffman):


raph’12

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Crédito da foto: Laurence Acland/First Light/Corbis

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25.4.12

Imaginando dragões

Conto pessoal, da série “Festa estranha”, com depoimentos de Rafael Arrais acerca de suas experiências espiritualistas. Baseado (ou não) em fatos reais. Os nomes usados são fictícios (exceto para pessoas públicas).

Outro dia estava vendo na TV a cabo um programa sobre novas empresas no ramo da tecnologia e inovação, e conheci a Quirky, que é basicamente uma comunidade online de gente criativa, com ideias para novos produtos. Você envia uma ideia por 10 dólares e, duas vezes por mês, as ideias mais votadas pela comunidade passam a ser desenvolvidas pela Quirky, até que virem produtos reais, físicos, e 30% das vendas vão para o criador.

Mas o que me chamou a atenção foi o depoimento do sujeito que criou o Click and Cook [1]. Há certa altura ele disse mais ou menos assim: “Sim o dinheiro é legal, mas o que mais me emociona é o fato desse produto, que agora está aqui na minha frente, e que posso pegar com a mão, ter saído da minha cabeça”... Nós realmente temos essa estranha dificuldade em notar que tudo o que há por aí, construído pelos homo sapiens – arranha-céus, trens bala, semáforos, espátulas, etc. –, saiu nalgum dia da cabeça de um, ou vários, de nós. Ainda assim, é sempre emocionante ver quando alguém percebe isso: “pensei alguma coisa, e agora é real!” Há que se perguntar: e quando, afinal, um pensamento não foi real?

Por exemplo, na era da informática, muitas e muitas coisas foram criadas, mas não passam de bits trafegando por hard disks. Na verdade, toda a internet é algo que não se pega com a mão: mas existe, e foi criado por nós. Alguns homens criam coisas “físicas”, hardwares; Outros criam coisas “virtuais”, softwares. Um programa de computador, por exemplo, é uma série de comandos e algoritmos que lidam com a interação do usuário para lhe trazer novos comandos e algoritmos de acordo com o que ele deseja: apenas um clique no botão de “buscar” do Google, e quantos e quantos anos de inovação e criatividade não se escondem por detrás do processo que retorna milhões de resultados [2], quantos e quantos pensamentos que saíram nalgum dia da cabeça dos homo sapiens.

Mas você deve estar se perguntando o que isso tudo tem de estranho. A princípio nada de aparente, mas eu achei por bem lhe trazer essa pequena introdução para falar sobre dragões imaginários, que é o que farei a partir de agora...

Como já havia dito nesta série, minha primeira festa estranha ocorreu provavelmente enquanto rolava poliedros regulares sobre uma mesa e decidia o resultado do que meu herói havia realizado no jogo de RPG [3]. Aquela altura os mitos e toda a simbologia diluída não me diziam nada de muito profundo, embora certamente fosse divertido jogar e, de todos os personagens a disposição, eu sempre tenha me interessado um pouco mais pelo Mago. Assim foi que, nalgum jogo da adolescência que já não me lembro mais, criei um novo mago que, por acaso, tinha um familiar, uma espécie de animal de estimação mágico que o auxiliava de vez em quando.

Eu nem gostava de ter de controlar mais de um personagem além do meu próprio (o Mago), mas estava na regra, e além do mais era algo que os magos ganhavam de graça, sem gastar pontos de personagem ou de experiência no jogo. Então rolei os dados e consultei a tabela do livro de regras e – minha nossa! – caiu na linha do faerie dragon, o que é mais ou menos um dragão fada pequenino, do tamanho de um lagarto de estimação (daqueles que sobem no nosso ombro), mas com belíssimas asas de fadas. Eu resolvi que seria melhor assumir aquele familiar com convicção, e tentar torná-lo algo mais assustador – assim sofreria menos gozações dos amigos que jogavam comigo.

Foi chamado de Amigo de Mago, e logo nas primeiras aventuras (jogos narrados pelo mestre do jogo, onde eu era um dos personagens com o meu mago) se mostrou bem mais útil do que havia imaginado a princípio, principalmente enquanto meu mago era alguém ainda inexperiente, e sem muitas possibilidades de torrar inimigos com bolas de fogo. Pode-se dizer que o Amigo de Mago era, no mínimo, uma distração muito útil para desviar a atenção dos inimigos. Acabei gostando e, ao longo de todos os magos que interpretei na minha vida de jogador de RPG, sempre que as regras permitiam eu trazia aquele dragão fada de volta a vida...

Mas os anos se passaram, eu me casei e mudei de cidade, e os jogos de RPG tradicionais ficaram cada vez mais raros, e minha vida no RPG foi se tornando cada vez mais eletrônica, e menos pessoal. Meus magos e seus dragões de estimação foram se tornando, cada vez mais, apenas memórias alegres da adolescência e dos meus vinte e poucos anos.

Foi então que comecei a desenvolver minha mediunidade em um centro espírita ecumênico [4] da cidade onde hoje resido, e aproveitei a oportunidade para colocar em prática (mental) alguns exercícios descritos de forma bastante didática por Franz Bardon em seu Magia Pratica. Quando estamos “preparando o ambiente (mental)” para que possamos entrar em contato com espíritos, costumeiramente tentamos “limpar a mente” de pensamentos ruins, estressantes, e imaginamos cenários naturais, como planícies ensolaradas de grama verdejante, algumas árvores e flores, uma cachoeira ao longe que deságua num rio que passa próximo, pássaros planando com a brisa no céu, etc. [5]

Isso tudo é imaginado em meditação, com os olhos fechados e a luz do ambiente bastante fraca. Muitas vezes, com a prática, tais imagens já surgem sem muito esforço, como se a mente já estivesse acostumada a tal programação... Na medida em que fui prosseguindo em meu desenvolvimento, pude notar que, efetivamente, a minha planície era cada vez mais verde e ensolarada, cada vez mais “real”. O que isso significa, na prática, é que estava ficando cada vez mais simples para mim entrar em estados de consciência compatíveis com aqueles adequados para a boa prática da mediunidade. Até que um dia, me deparei com um ambiente “carregado” de alguma influência negativa – era como se alguns espíritos desgostosos estivessem querendo invadir (mentalmente) o meu jardim, e me desconcentrar. Foi precisamente nesse momento que ele apareceu, o Amigo de Mago!

Como um pensamento, uma programação mental antiga e quase esquecida, mas que nunca deixou de ser querida para mim, o pequeno dragão fada, com suas asas cintilantes a refletir o brilho do sol, passou por mim como um zangão e, rodopiando a minha volta, afastou aqueles espíritos desgostosos, ou pensamentos ruins, como num “passe de mágica”. E, depois, ele se foi, voou para longe, como se jamais tivesse estado ali...

Era exatamente como nos antigos jogos de RPG: quando era necessário sua ajuda, o Amigo de Mago aparecia. Mas, na maior parte do tempo, ele ficava em segundo plano nas histórias... Foi então que me toquei: aquilo era real, pois todo pensamento é real. Afinal, como postulam alguns físicos modernos, tudo é informação, até mesmo um pensamento.

O pequeno dragão fada nada mais era do que uma programação mental antiga que, surpreendentemente, havia “ficado lá”, no terreno fértil da imaginação e, até mesmo devido a isso, ressurgiu em toda a sua glória exatamente quando este terreno estava novamente a ser remexido, em minha meditação com a construção de elaboradas imagens mentais.

Seria o Amigo de Mago um ser sentiente? Infelizmente, acredito que não. Por minha própria experiência com tal pensamento, se trata mais de uma programação mental que foi alimentada ao longo do tempo (mesmo sem que eu tivesse a plena consciência disso) para realizar tarefas (mentais) específicas, mas não seria como o meu gato que, apesar de não poder falar comigo, tem seu próprio ânimo felino.

Seria isso tudo “apenas coisa da minha cabeça”? Sem dúvida. Mas, se me permite dizer: eu sei muito bem a diferença entre a realidade e a fantasia, ou entre a realidade física, hardware, e a realidade psicológica, imaginativa, software. Porém, do mesmo modo, eu também desconfio que muitos pensamentos heroicos da imaginação humana já desbravaram a aventura mítica que separa essas duas dimensões da realidade, e há muitas e muitas ideias que hoje estão bem aqui, neste mundo que reflete a luz, e que percebemos com os olhos. Sejam sistemas de espátulas ou miniaturas de dragões fada, eles venceram, eles se materializaram bem diante de nós.

***

[1] Um engenhoso sistema de espátulas onde você pode trocar de espátula rapidamente, mantendo o mesmo cabo. Bem talvez fique mais simples de entender vendo no site.

[2] A busca por “pensamento”, por exemplo, traz mais de 33 milhões de resultados em menos de meio segundo (na banda larga).

[3] Role Playing Game, ou Jogo de Interpretação de Personagens. Este que se joga com dados e fichas de papel e um mestre do jogo, coisa do século passado... (brincadeira, ainda se joga assim neste século também).

[4] Quero dizer: um centro espírita que não é estritamente “kardecista”, e também tem práticas de umbanda sagrada, assim como de doutrinas espiritualistas orientais. Alguns médiuns chegam a incorporar com perda total ou parcial da consciência, mas não é o meu caso.

[5] Claro que, a nível de magia, essas imagens mentais também evocam os 4 elementos e também por isso são importantes – embora provavelmente boa parte dos espíritas não se dê conta disso.

***

Crédito das imagens: [topo] Samwise; [ao longo] Google Images (draco lizard – prova que a imaginação da Natureza ainda é muito superior a nossa)

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15.4.12

A inefável definição

Porque sabemos que o ser decidiu ser,
Igualmente, sabemos que o não ser não há,
Ou jamais foi, ou será.
Que haja algo, e não nada:
Eis o primeiro e único milagre;
E que torna todos os outros, tão somente
Algo perfeitamente natural.

E, sendo o Uno, ao mesmo tempo
E necessariamente: parte e todo de si,
Eis que o Uno é uno somente em si mesmo,
No repouso perfeito que não admite movimento.
Pois que todo movimento é alguma divisão,
Alguma irradiação do Uno em partes de si,
Quando o Uno se torna o inverso de si mesmo:
O Universo.

Porque sabemos que existem partes,
Igualmente, sabemos que há movimento.
Por outro lado, porque sabemos que existem essências
– As ideias elas mesmas de si mesmas –
Sabemos que em meio ao movimento, existe o repouso,
E é exatamente neste breve repouso
Que capturamos as partes em movimento
E as admiramos brevemente em toda sua glória;
E finalmente, dizemos:
Eis uma genuína parte do Infinito, em repouso.

Porém, como tudo está para nós em movimento,
Até mesmo o espaço e o tempo, entrelaçados,
A bailar com os ventos do Infinito,
Quando vemos algo repousar, e dizemos:
Eis algo!
Tal algo já não é mais o que fora,
Nem jamais o será outra vez...
E tal paradoxo dos paradoxos, filho do primeiro,
Só pode ser mesmo reconciliado com este precioso
Momento em nossa mente:
O momento em que fotografamos o Uno,
Em toda sua inefável definição...

Nós: os fotógrafos do Infinito.


raph’12

***

» Parte da série "Mito da criação"

Bibliografia recomendada: O Caibalion (3 iniciados, ed. Cultrix/Pensamento); Ética (Espinosa; ed. Autêntica); Da Natureza e sua permanência (Parmênides, Edições Loyola, também transcrito neste blog); Parmênides (Platão; Edições Loyola); O universo elegante (Brian Greene; ed. Cia. das Letras).

Crédito da foto: Stock4B/Corbis

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12.4.12

Obituário

Era noite nos arredores do jardim da cidade, e o neófilo, curioso como sempre, sentiu-se atraído por aquele grupo de pessoas em volta de uma fogueira. O clima era úmido. Gotículas d’água pairavam como diminutos duendes pelo ar, cavalgando aleatoriamente as brisas, juntamente com pequeninos pedaços de madeira ainda chamuscada pelo fogo, que mais pareciam fantasmagóricas estrelas, ou vagalumes... Assim que chegou mais próximo, perguntou ao primeiro que o observou:

“Que é essa reunião na calada da noite?”

“Um velório.”

“Velório? Mas não vejo ninguém de preto, nenhum pranto, nenhum caixão...”

“Exato, é um velório sem cores de roupa pré-estabelecidas, sem caixão, e onde a tristeza se mistura com a felicidade e, dessa forma, não há pranto, apenas um doloroso lamento.”

“E vocês estão felizes pelo morto?”

“Claro, como já lhe disse: felizes e tristes, ao mesmo tempo...”

“Quem era, se me permite indagar?”

“Ninguém em especial, pelo menos para os desconhecidos. Para os amigos, no entanto, era um filho do Sol e das estrelas. Uma luz que se precipitou no mundo, tal qual estrela cadente, e pôde aquecer aos corações daqueles que a enxergaram de longe, e se dirigiram até ela.”

“Era algum santo, portanto?”

“Muito pelo contrário. Na verdade, um dia ele me disse – ‘Meu amigo, a maior armadilha que se ergue para esse caminho que escolhemos é nalgum dia crermos que somos alguma espécie de santo, e pior: nalgum dia algum louco acreditar nisso!’”

“E qual era esse tal caminho de vocês?”

Era não: foi, é, e sempre será. O caminho do autoconhecimento.”

“Interessante. Então vocês todos aqui são sábios?”

Sábio é aquele que conhece sua própria essência... Acho que ainda estamos no caminho, e não me parece ser tão curto, nem tão simples. Mas, pé ante pé, espero um dia chegar nalgum lugar um pouco mais distante de onde iniciei quando nasci para o mundo...”

“E como se caminha neste tal caminho?”

“Ah, existem muitas formas, meu caro... Podemos escalar as estátuas dos gigantes de outrora e, escorados em seus largos ombros, fazer com que a larga pedra uma vez mais caminhe à frente. Podemos sair pelo mundo, sem destino estabelecido, mas sabendo que ao fim de cada dia seremos obrigados a ter conhecido pelo menos um único novo amigo. Podemos montar um telescópio e com ele observar a luz mais antiga ao nosso alcance na imensidão da noite, mas contanto que o usemos para catalogar também as constelações de nossa própria alma. Podemos também aprender a escalar algumas montanhas ao nosso alcance, não somente para admirar a vista, mas principalmente para observar as carroças que seguem pelo vale do horizonte, e memorizar os sulcos que suas antigas rodas criam pela estrada... Enfim, são muitas formas de caminhar, mas no fundo há um só caminho.”

“Mas, e o morto, ele conseguiu chegar a algum lugar importante do caminho?”

“Bem, isso eu não sei, pois somente o ser pode realmente saber. Mas um dia soube através dele que ele tinha chegado a um descomunal precipício que demarcava a fronteira de dois grandes países, e que desde então vinha construindo uma ponte – um tanto quanto precária, já que ele nunca foi exatamente um engenheiro no assunto – de cordas desgastadas e tábuas de madeira velha, com a qual pretendia atravessar para o outro lado...”

“Nossa, que arriscado... Mas, e quais eram tais países separados por fenda tão imensa?”

“Ah, disso eu sei muito bem: um é o País da Morte, onde tudo é estritamente reduzido a pequenos pedaços do saber, tudo racional, programado, frio e robótico; já o outro, onde ele procurava chegar ao atravessar a ponte, é o País do Amor, onde tudo é conectado por belos fios de uma imensa teia de luz, tudo sensação, desprogramado, quente e vivo.”

“E ele queria atravessar do país frio para o quente, da morte para a vida?”

“Não sei ao certo. Era isso que pensava a princípio, mas um dia, já perto do dia de sua partida derradeira, ele me disse que havia finalmente fincado a outra extremidade da ponte no País do Amor, e pôde visitar brevemente alguns de seus vilarejos...”

“E o que ele lhe disse que viu por lá?”

“Não viu nada. Disse que não havia nada o que se ver, apenas o que sentir... E disse ainda mais: que assim que pensou os mesmos pensamentos dos seres que lá viviam, percebeu que não era propriamente uma ponte que ele esteve todo aquele tempo a construir... Não uma ponte, mas um fio de ligação entre os dois países.”

“Ora, mas então ele queria aproximar um país do outro?”

“Sim, parece estranho não? Mas é que no fundo, acho que ele descobriu: não é que existam dois países separados, mas é que alguns de nós pensam num país, e outros pensam noutro. E, dessa forma, ambos os países são habitados... Provavelmente o País da Morte esteja já lotado de gente, e a intenção dele era atrair mais gente para o País do Amor. Era como se ele fosse um turista que voltou de uma ilha paradisíaca e agora a estava anunciando para os outros.”

“Mas, e o que ele ganhava com isso?”

“Ele? Acho que nada... Ganhava o mundo todo. Ele costumava dizer assim: ‘O meu trabalho é melhorar a vizinhança. Se a vizinhança melhora, talvez um dia nem precisemos buscar ao Céu em algum outro lugar, que ele já estará instaurado no próprio mundo”.

“Que bonito. Mas que pena ele ter morrido, gostaria de conversar com ele sobre o assunto...”

“Aí é que está, por isso estamos todos aqui. Ainda podemos conversar com ele.”

“Mas como?”

“Ora, eu não disse que ele era um filho do Sol e das estrelas?”

“Disse. Mas disse também que ele não era um santo, nem ninguém em especial...”

“Exato. Mas eis que, agora também sabemos: todos nós somos filhos das estrelas. De fato, somos formados por pedaços de matéria forjados no núcleo das estrelas, no núcleo do Sol. O que meu amigo fez foi, então, engolir o próprio Sol... Foi assim que ele explodiu em milhões de pedaços de luz, que até hoje pairam pelo ar, como pequenas estrelas ou vagalumes. Assim, ele me disse: ‘Se nada mais der certo, pelo menos a luminosidade do que fui ficará ainda guardada no coração e na mente dos meus amigos, daqueles que tive a felicidade de compartilhar o amor. E, dessa forma, eu também serei imortal, eu também serei mais um da raça dos deuses’”.


raph’12’A.’.A.’.

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Crédito da foto: Ron Nickel/Design Pics/Corbis

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16.3.12

Nada a temer, nada a duvidar

Yorgana era médium firme, experiente, daquelas que parece já ter ido ao inferno e retornado para contar história, sempre com um sorriso, ou um meio sorriso, pela face nem mais tão jovial. Tomé estava ali, apreensivo, para observar e aprender...

Após a oração inicial, as luzes foram apagadas e as pessoas entraram em meditação, tanto na mesa grande quanto nas cadeiras em torno. Tudo o que se ouvia, a princípio, era o barulho dos dois ventiladores velhos e desgastados, que já aliviavam o calor daquele centro espírita há uma boa década ou mais. Tomé ansiava pelo que estava por vir, e logo alguns começaram a gemer e se contorcer e reclamar. Como sempre, Yorgana estava lá para oferecer conforto aqueles que foram convidados, de tão longe, aquele recinto de luz:

“Está tudo bem minha filha, quer me dizer alguma coisa?” – Dirigiu-se, sussurrante, a senhora que meditava na cadeira a sua frente.

De início não houve resposta, e exatamente por isso que alguma coisa parecia estar a ocorrer... Logo, aquela senhora pacata e serena tinha ido embora, alguém irrequieto e angustiado tomou o seu lugar:

“Ai! Ai! O que eu estou fazendo aqui? Que lugar é esse? Tá dolorido... Minha cabeça dói, tem insetos no meu corpo, tira isso, tira eles, me tira daqui!!”

Yorgana trouxe suas mãos para próximo da cabeça da senhora (ou quem quer que estivesse ali agora), e continuou serena, quase carinhosa:

“Calma... Calma! Vamos respirar mais devagar, assim, comigo, vamos...”

E o que se seguiu foi uma verdadeira luta para que a senhora conseguisse passar a respirar mais lentamente, no ritmo que a médium demonstrava, expirando e inspirando profundamente o ar seco do ambiente.

“Vamos, vamos... Assim comigo. Inspira, segura um pouco, expira... Calma que aqui são todos seus amigos...”

“Amigos? Não, eu não tenho amigos... Não aqui, principalmente aqui... Que lugar estranho é esse, porque me trouxeram? Porque, isso não tem nada a ver comigo... Eu não pertenço aqui, ninguém vai me aceitar aqui...”

“Isso já é contigo. Primeiro, você é quem precisa se aceitar... Você está aqui, é verdade, só por um tempo, e pode ficar tranquila que logo logo volta para onde veio... Você foi convidada... É, digamos assim, um certo privilégio, pois nem todos têm a oportunidade de vir a essa casa de cura.”

“Cura? Mas como você vai me curar de toda essa dor? E esses malditos insetos que não me largam! Me ajude então, se gosta de mim...”

“Só se você também abrir uma brecha para gostar de si... Vamos, esqueça o que te deixou nesse estado, há sempre tempo de recomeçar... Vamos, inspire comigo e imagine a cor azul, o ar sendo de um azul tão puro, que entra na sua cabeça e ajuda a limpar, e limpando vai levando a dor embora, e daí você expira essa dor, essa coisa ruim aí dentro, e isso tudo sai de você na cor vermelha... Deixa o azul entrar, deixa o vermelho sair... Deixa entrar, deixa sair... Isso... Isso, tá melhorando não tá?”

“Tá melhorando a dor, sim... Que coisa incrível, há tanto tempo que doía que eu nem sabia mais como era estar assim... Os insetos não picam mais meus braços, minhas pernas...”

“Isso, isso mesmo... Mas continua, continua imaginando as cores, continua inspirando, expirando... Eu poderia te ajudar só aqui, mas não sei quando vai poder voltar, e pode continuar fazendo isso onde quer que esteja, basta lembrar: deixa o azul entrar, deixa o vermelho sair... E se acalma, e se perdoa, e dê uma chance a si mesma de recomeçar.”

“Isso... Isso é maravilhoso! Mas eu não sei se vai funcionar onde eu moro... Lá é tudo tão gelado e úmido, o ar é ruim, o céu é escuro, não tem ar azul por lá...”

“Tem ar azul em tudo quanto é lugar... Vou te contar: o que você acha que é o ar que entra azul e sai com sua dor vermelha?”

“Algum ar que só existe aqui nessa casa de santos... Eu preciso ficar aqui, me deixa, me deixa ficar!!”

O atendimento estava acabando, e Yorgana tinha só alguns segundos:

“O ar azul, é Deus. Ou você imaginou que nalgum dia estranho poderia realmente estar fora Dele? Ele está em todo lugar, mais próximo que o seu pensamento mais querido, porém tão distante quanto a sua culpa mais profunda... Se perdoe, vá em paz, há sempre tempo de recomeçar. Adeus!”

***

Após a cantoria ao final da sessão, Tomé estava ainda enxugando as lágrimas. Ele havia sentido de perto, bem de perto, toda a dor e angústia, todo o caos mental naquela senhora, ou no que quer que a tenha visitado ali. Alguém que sofria imensamente, mas que foi consolada. Alguém que pareceu, depois de muito tempo, enxergar uma vez mais a luz ensolarada da esperança...

Ele tinha de perguntar a Yorgana:

“Nossa, como você atendeu bem, firme! Como você faz para ter as palavras certas nesse momento? Você não fica com medo do que pode aparecer? Você não... Duvida do que está ocorrendo?

“Eu nunca sei o que virá, e certamente fico apreensiva, e certamente tenho dúvidas acerca do ocorrido... Se foi realmente alguém que apareceu, se era uma memória antiga, algum distúrbio mental, alguma personalidade trancafiada que pôde finalmente vir a tona... Quem vai saber?”

“Mas, na hora você...”

“Na hora, não era eu. Era algo acima de mim, algo que me toma e que me faz ser alguém maior, alguém que tão somente deixa a luz do alto passar, o mais límpida possível... Na hora, não há nada a se temer, nem nada a se duvidar. Na hora, eu apenas amo, e o amor faz o resto. E, Tomé, não há como se temer o amor, não há como se duvidar dele.”

raph’12


Agora vou viajar, até breve...

***

Crédito da imagem: Fraternidade Espírita Monsenhor Horta

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