Raízes aéreas
"Sete horas da noite, sentada na sala de reuniões após um dia alaranjado de sol latente e poeira vermelha constante, tenho a sensação de terem se passado 24 horas desde o momento em que levantei. Como todos os dias, acordei hoje às 06:00h da manhã, tomei um vigoroso banho de pingos e canecos ao mesmo tempo em que observei o movimento da porta, que não tem fechadura. Estou sempre atenta a qualquer sinal de alguém ter necessidades maiores que as minhas, já que compartilhamos dois banheiros numa casa de 15 pessoas. Passados meus cinco minutos de privacidade diária, dirijo-me ao café servido em mesas improvisadas com protetores de insetos para evitar maiores acidentes alimentares (sempre temos algum companheiro de trabalho afastado por um ou dois dias por motivos de vida privada), o que nos faz perceber que não somos realmente tão resistentes quando acreditamos."
Mas se existe alguém resistente neste mundo, é Debora Noal, brasileira, psicóloga, "agente" dos Médicos Sem Fronteiras, e autora do texto acima, parte de um longo relato onde narra seus primeiros dias numa missão humanitária no Haiti. Não muito tempo antes desta que foi sua primeira missão para o MSF, Debora tinha uma cobertura em Aracaju, e um emprego público na área médica...
Na célebre entrevista para a Época, quando a repórter lhe pergunta como foi abandonar o conforto e as raízes em seu país natal (ela na verdade é gaúcha), ela nos dá uma resposta surpreendente:
"Pedi demissão, acabei o mestrado [...] Porque era uma missão de urgência. Entreguei o apartamento, deixei os móveis no meio do corredor porque não tinha condições de distribuir tudo rápido. O que não é possível carregar comigo é porque não é meu. E acho que, se você se apega a alguma coisa que é material, isso quer dizer que você está plantando sua raiz por uma estrutura material. Eu quero ter raiz, mas raízes aéreas, que eu possa levar para onde eu quiser."
E foi assim que Debora plantou raízes no Haiti, no Quirguistão, no Congo... Aliás, foi exatamente no Coração da África, onde trabalhava para aliviar a dor de mulheres que sofreram estupros coletivos, que perderam maridos e filhos, e a própria vontade de viver, que Debora provou sua resistência... Não somente ante a dor alheia, mas ante o próprio medo, em cada hora que esteve no Congo, de ser ela mesma a próxima vítima dos estupros. Como pode esta aparentemente frágil mulher ter encontrado tanta força, tanta resistência para seguir nessas missões do MSF? Talvez ela mesma possa lhe dizer, com o brilho que ainda resta em seu olhar. Um brilho peculiar, que parece nos dizer que, apesar de conhecer a dor, conhece também algo muito, muito maior... O amor:
Programa Provocações, da TV Cultura, com Debora Noal (bloco 1)
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"Lembrei de um grande amigo que [...] escreveu que Deus um dia existiu mas que ele já foi embora. Fiquei realmente muito tempo refletindo sobre esta frase, desejando... Até que cheguei no Papai Noel, pensei no quanto tempo eu acreditei nele (e ainda acredito), com o diferencial que hoje espero o Papai Noel aparecer dentro de mim e dentro dos outros, acho que sempre podemos encontrar Papai Noel. Por vezes ele chega suado, com cheiro de gente, sem barba, cabelo despentado e roupa suja, mas ele chega com presente, presente de gente, presente de vida, de vida presente."
Debora Noal (relato de seu primeiro Natal no Haiti)
***
Médicos sem Fronteiras, ou Médecins sans Frontières (MSF), é uma organização internacional não-governamental sem fins lucrativos que oferece ajuda médica e humanitária durante situações de emergência, em casos como conflitos armados, catástrofes naturais, epidemias, fome e exclusão social. É a maior organização não governamental de ajuda humanitária do mundo, na área da saúde.
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Crédito da imagem: reportagem da Época (Debora e as congolesas)
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5 comentários:
"eu estava morrendo de fome, e era de tarde já, e não tinha nada para comer na casa. Lembro que eu perguntei: “Não tem nada aí para comer? Estou com muita fome”. E a moça disse: “Teve um ataque ontem, lá no mercado, e não sobrou nada. Não tem nada”. E você se dá conta do valor do dinheiro – um pedaço de papel que é significado puro. E, naquele dia, por exemplo, ele não significava nada. Eu não podia comprar nada com o meu dinheiro. Estava lá, com o dinheiro dentro do bolso e não tinha um grão de arroz para comprar porque não havia paz naquele lugar. E aí você começa a se dar conta de qual é o valor das coisas materiais. Você não come o seu dinheiro. Você não come o seu salário. Há outras coisas ali que têm uma importância e um significado muito maior e que não são coisas físicas. As coisas materiais te dão uma sensação de paz, mas é apenas uma sensação de paz, não é a paz. Não é a saúde, não é a riqueza. É uma sensação de tudo isso. Que pode ser destruída muito rapidamente." (Debora Noal)
Obrigado por pescar mais essa pérola do pensamento dela, Hiro :)
A entrevista que ela deu para a Época é lindíssima. Quando a li no fim de 2011, eu chorei de tristeza pela miséria e massacres retratados na entrevista.
Chorei também porque, tendo escolhido um curso na faculdade que me inclinaria a trabalhar com ajuda humanitária e direitos humanos (o curso é Relações Internacionais) e tendo também me decepcionado profundamente com esse curso já de cara, no primeiro período(isso porque a ênfase do meu curso é estudos estratégicos e resumindo: guerra e destruição), eu estava passando um péssimo fim de ano...
Então, quando eu estava passeando pelos colunistas da Época e me deparei com essa entrevista, eu chorei também porque realimentei meu sonho e por ter me identificado com uma pessoa que não tem medo de dar suas vidas pelas vidas de outros.
Não sei nem o que tô escrevendo, sei que fiquei muito feliz em ver esse post sobre a Débora.
:D
Pois é acho que muitos de nós choraram com o depoimento da Debora para a Época, eu também fui um deles.
Há aquela estranha sensação de alegria mesclada com tristeza... Acho que a maior tristeza é notarmos que, de certa forma, enquanto as políticas internacionais em relação a África não mudam, e as guerras tribais continuam, todo o trabalho do MSF é quase como "enxugar gelo"...
Mas, por outro lado, há imensa alegria em saber que existem pessoas como a Debora, que mesmo diante da barbárie e, talvez, na inevitabilidade da continuação da barbárie, continuam a trabalhar, continuam a amar.
O que eu posso dizer é que, certamente, um dia o gelo seca. Há dois mil anos íamos ao Coliseu ver feras devorarem homens, e aplaudíamos. Hoje vamos ao San Siro ver futebol... Pode demorar, mas caminhamos a frente.
Bjs
raph
Debora continua em seu treinamento intensivo para arcanjo... http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/11/missao-ebola-me-reinventei-marretadas.html
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