A educação de Casanova, parte 3
Texto recomendado para maiores de 16 anos.
3.
Era uma noite nem tão fria nem tão quente, em meio ao cheiro de destilados e perfumes nem tão caros nem tão baratos, sob uma iluminação levemente obscura, levemente rubra, e eu conseguia ouvir claramente a tudo o que Asik me dizia, ainda em meio ao som ambiente de conversas irrelevantes e músicas de décadas atrás. Asik falava diretamente da Alma, por isso jamais passaria desapercebido para aqueles que, como eu, já haviam estado lá:
“'O que Deus uniu, o homem não separe'... Dizem isto em seus altares dourados, mas no entanto vivem separados e desconectados uns dos outros, e mantém seus juramentos mais como uma forma de contrato nupcial; um contrato de aparências sociais! Giacomo, me perdoe, mas eu nunca acreditei em nada disso”.
“No entanto continua casado todos esses anos”.
“Mas de onde tirou essa ideia? Eu nunca fiz nenhum juramento a Deus, ele nunca exigiu isso de mim. Nunca houve cerimônia alguma dentro de qualquer igreja, somente fora; e uma longa e bela cerimônia que vem sendo encenada por nós dois a cada momento de nossas vidas. Giacomo, eu me casei com o Agora, eu me casei com o Amor de um pelo outro, reencenado eternamente a cada momento. Eu não sou e nem acredito em 'ser casado', mas eu acredito em estar amando, eu acredito em viver no Amor, eu acredito no vir a ser eterno”.
“Como pode ser isto Asik, se ela não está aqui neste momento? O que ela diria de estarmos os dois numa casa como esta, num prostíbulo obscuro em meio a Beyazit?”.
“Não sei o que ela diria, pois não tenho como entrar dentro dela para pensar como ela. Tenho apenas como ser Um com ela, e sentir o mesmo que ela sente, e o mesmo que toda a Natureza sente por todos nós; mas não tenho como pensar como ela, nem como modificar ou controlar ou censurar o que ela pensa, pois que ela é, como eu, como nós, uma livre pensadora.
E que importa eu haver marcado esta nossa conversa no restaurante mais nobre do bairro mais nobre de toda Istambul? O fato de não haver dançarinas seminuas em cima das mesas não significa que eu não possa estar pensando nelas. E eis uma coisa impossível de se saber, Giacomo: o que diabos outra pessoa está imaginando neste ou em qualquer outro momento; ou seja, o que está vendo com a mente, além do que haveria de ver somente com os olhos”.
“Belo, belíssimo como sempre meu amigo. Não sei onde aprendeu a encantar suas palavras com tamanha luz, mas elas talvez sejam belas na teoria, e nem tanto na prática. Afinal, há de convir que é bem mais provável que pense em certas coisas eróticas e indecentes quando belas formas femininas rebolam para cá e para lá há não mais do que alguns metros dos seus olhos sempre atentos”.
“Pois então vou lhe contar meu segredo, Giacomo. O ‘encantamento’ de minhas palavras e de meus pensamentos veio exatamente da indecência, do erotismo, da Grande Putaria! Eu pratico a Arte da Putaria, meu amigo, mas com erotismo, nunca com vulgaridade; com indecência concreta e original, jamais com decência dissimulada. Afinal, como bem sabe, eu tenho sido um assíduo observador apaixonado da Natureza, e se não fosse já pelos coelhos em sua procriação silenciosa ou pelos grunhidos dos lobos selvagens a acasalar na mata noturna, teria sido pela divina safadeza dos bonobos, estes macaquinhos adoráveis que nos ensinam tanto sobre nós mesmos, e sobre o sexo, e sobre a infatigável ânsia da Vida por ela mesma, por ainda mais e mais e mais e mais... Vida!”.
“Eu acredito em você. Suas palavras, como sempre, são como poções mágicas que dilaceram lentamente o meu tédio e minha apatia, como pequenas ondas a dissolver o calcário escuro que se forma na casca que encobre nossas almas. Mas o fato de acreditar em você não significa que eu seja como você, que consegue passar tantos e tantos anos amarrado a uma única mulher... Como isso é possível, como pode não querer se libertar disto de vez em quando?”.
“Giacomo, meu caro, onde tem aprendido essa linguagem vulgar? Terá sido nessa nova Europa que, apesar de já grávida de outra Europa, ainda guarda os preconceitos e as ideias fossilizadas da antiga?
Quem lhe disse que estou amarrado a alguém? Ainda que cordas estivessem me atando a qualquer mulher que fosse, em minha mente eu estaria ainda livre para pensar e imaginar qualquer outra mulher, real ou imaginária, natural ou lendária... O que uma mísera corda pode fazer contra a imaginação de quem pensa por si mesmo?
Mas eu não estou nem nunca estive amarrado, e esta é precisamente a razão de ainda estar casado no Amor, apesar de nunca haver sido casado. Pois que cordas são tão prejudiciais quanto duas árvores que foram plantadas uma próxima demais da outra, e cujas raízes emaranhadas disputam os mesmos nutrientes do solo. Ora, nós temos uma imensidão a nossa volta, e espaço mais do que suficiente para que todas as raízes encontrem os seus próprios nutrientes sem ter de roubar os nutrientes das demais árvores. Somente assim, algo afastadas umas das outras, as árvores conseguem crescer firmes e sadias, e estender seus inúmeros galhos em direção aos Céus, e beber sua Luz direto da Fonte”.
E assim, sendo transformado pelo fogo de Asik, meu coração acelerava uma vez mais, e o meu tédio ia indo embora... Subitamente, me interessava novamente pelos seios fartos daquela uma, e pelas nádegas suculentas e rebolativas daquela outra.
Porém, estranho de se pensar – eu estava me excitando novamente somente por partes de mulheres, e não por mulheres inteiras. Subitamente, me questionava se não havia, por longos e longos anos, buscado o Amor apenas nestas partes femininas ‘esquartejadas’ pelos olhos: uma imensa bunda, os seios torneados da moda, as coxas de uma amazona ou o quadril inimaginável de uma modelo digital.
Afinal, antigamente eu me excitava com o fato das mulheres esconderem seus corpos em longas saias vitorianas, exatamente por que assim imaginava como elas poderiam ser; mas então percebi que fui ludibriado e tive minha imaginação assaltada por belíssimas formas femininas a estampar os anúncios das novelas e dos outdoors deste mundo moderno. Me ocorreu então que eu não me excitava mais com esta ‘mulher frankenstein’ formada por várias partes desconexas de outras mulheres.
Havia me afastado não somente da Alma, mas do Corpo. Eu não estava entediado com as mulheres, afinal de contas, estava mesmo é entediado com minha própria imaginação viciada e empobrecida. Subitamente, mesmo eu podia começar a compreender como meu amigo Asik conseguia se manter ‘casado no Amor’, pois que cada dia lhe trazia um novo espírito e novíssimos pensamentos e fantasias, ainda que a mulher pudesse ser a mesma, e ainda que ele fosse o mesmo, no fundo estavam sempre se modificando, no fundo pensavam por si mesmos e imaginavam o que bem queriam imaginar, muito além dos outdoors e dos comerciais.
Foi assim que comecei a vencer meu tédio e a me reconectar a Grande Arte da Putaria.
***
Esta foi a terceira parte de A educação de Casanova, por raph em 2013.
Comece a ler do início | Veja a quarta parte
Marcadores: A educação de Casanova, casamento, contos, contos (91-100)
2 comentários:
Ha, não esperava por um final assim. Viva!
Petri
Ainda não acabou não, vamos ter mais partes, sabe-se lá até onde... A imagem da mesquita tem alguma coisa a ver com a série e eu ainda não sei direito o que exatamente, haha. Abs--raph
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