A educação de Casanova, parte 7
Texto recomendado para maiores de 16 anos.
7.
Ainda ficamos por lá algumas horas, até que todas estivessem saciadas e dessem a noite por encerrada – para o alívio dos ursos dançarinos, que já mal conseguiam se manter rígidos... E todas foram embora, menos uma, envolta num vestido vermelho, azul e roxo, esvoaçante, que parecia ser formado por mil e um véus.
Então, ela se levantou e caminhou em nossa direção. Ela sabia de nossa presença todo o tempo! Eu deveria parecer surpreso, mas alguma coisa nela me era estranhamente familiar... Não sei se era o perfume do oeste, ou o seu olhar árabe, que parecia conter inúmeros oásis e seus desertos, mas algo em minha alma me confidenciou que se tratava da distinta amante de meu amigo.
“Sua mulher?” – eu perguntei a Asik.
“Eu a amo, mas ela não é minha.”
Sim, com isso meu amigo quis dizer que não havia o conceito de propriedade no amor que eles partilhavam. Eu já havia tido lições demais, e pelo menos isto eu aprendi, pelo menos isto!
Mesmo assim, havia ainda tantas dúvidas, tantas curiosidades acerca dela e da relação dos dois. Mas, ante tamanha beleza bronzeada pelo sol do oriente, eu não tive outra reação que não emudecer, e esperar que ela se apresentasse.
“Meu nome é Duniazade, mas pode me chamar de Dunia” – disse, estendendo a mão para que a beijasse, e nela havia dúzias de pequenas mandalas tatuadas, que mais pareciam algum código para antigos rituais de amor...
“Quando lhe vi, me pareceu familiar... Você já esteve em Veneza?”
“Nunca, mas me convide e um dia irei. O que lhe pareceu familiar não fui eu, Giacomo, mas o reflexo de Asik em mim.”
“Como assim?”
“Nós nos amamos profundamente, de modo que já não há, entre nossos corações, uma distância tão grande. Assim, de certa forma, é como se entre eu e ele, não houvesse nem um “eu”, nem um “ele”.”
“Me perdoe, mas como pode ser isso? Você estava aqui hoje e noutra noite eu e Asik estávamos em Beyazit, num caba...” – eu interrompi subitamente o que iria dizer, embora na verdade não houvesse razão para tal, foi tão somente um velho hábito compartilhado pelos homens, que ainda não havia ido embora...
“Num cabaré, Giacomo. E ela soube de tudo o que ocorreu por lá, pois temos muita curiosidade sobre as experiências um do outro, e sobre as amizades que cultivamos. Tudo o que tange os caminhos dos corações humanos nos interessa, cada pequeno olhar amoroso não nos passa desapercebido. O que alimenta nossas almas é este desejo de um pelo outro, e de todos por todos, é a esperança de um novo amanhã, de que o parto de um novo mundo finalmente se concretize...” – completou Asik.
“Mas vocês não sentem desejos? Não traem?”
“Meu amigo,” – prosseguiu – “sentimos muitos desejos, e cada vez mais intensos. Mas muitos dos desejos de outrora, superficiais, bestiais, já foram domesticados. Nós jamais trairíamos um ao outro por conta de uma noite de sexo, se é a sua dúvida. Mesmo esse termo que usam, “traição”, denota alguma espécie de “promessa” ou “contrato nupcial”, e já lhe esclareci que não acreditamos neste tipo de coisa. Em todos esses séculos, já tivemos experiências com outros seres, isto é bem verdade, mas perto de nosso amor, elas são como pequenos córregos fluindo para o oceano. No fim, tudo deságua na Alma do mundo, e nós somos parte desta corredeira, nós afluímos junto como o amor de todos, mas é em nossa união, em nosso entrelaçamento, que vislumbramos ao grande plano da Vida, e não trocaríamos tal experiência por nada nesse mundo!”
“E como é esse plano, o que os deuses lhes dizem quando estão conectados neste amor?”
Foi neste momento que Dunia se aproximou e sussurrou parte da resposta em meus ouvidos. E foram poucas palavras, mas que não podem ser transmitidas, já que palavras são tão somente cascas de sentimentos, e palavras de amor são como fagulhas da eternidade, que brilham intensas como explosões solares, mas que só podem ser compreendidas por quem sente parte desse calor.
Meus amigos, afinal, viveram por muitas eras, e já haviam caminhado por muitos desertos e muitas ruínas de civilizações, assim como por muitas novas plantações, e promessas de eras vindouras. Continuar ao seu lado seria como ser carregado no colo por algum anjo, e já era tempo de eu recomeçar a caminhar com minhas próprias pernas.
E, se eles já estavam tão adiantados no caminho, em nenhum momento os invejei, pois sabia que haviam passado pelos mesmos espinhais e deixado seu rastro de sangue em muitos espinhos. Asik havia me reeducado na Grande Arte da Putaria – ou Grande Arte do Amor, pois nomes são apenas nomes –, e agora era a minha vez de me aventurar novamente, de peito aberto, neste grande campo onde a Vida encena e reencena sua dança ancestral.
“Adeus, meus amigos, e até breve... Mas, vocês têm alguma sugestão para onde poderei ir a seguir?”
“Rume para o sul, Giacomo, para além do Amazonas. Soube que há uma grande festa por lá” – respondeu Dunia.
***
Esta foi a sétima parte de A educação de Casanova, por raph em 2014.
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5 comentários:
Caramba Raph!
muito bom, me concebeu muitas reflexões rsrs
Um tanto difícil de imaginar uma pessoa se deixar livre desse jeito, livre de suas paixões e ciúmes egoístas.
Mas a proposta é muito inspiradora.
x)
Sim, difícil de imaginar e dificílimo de escrever, por isso que há intervalos longos entre algumas partes desta série, que eu nem sei bem porque estou escrevendo, para falar a verdade :)
Abs
raph
Raph, você se inspirou em alguma obra ou personagem célebre da literatura para fazer essa série?
Abs!
Oi Saltador. Sim, me baseei principalmente nas memórias do próprio Casanova (ele foi o responsável por um dos relatos mais fiéis da sua época, e escrevia muito bem), mas a essência da série é a sexualidade humana, e o Amor que brota dela. Tb há influências do feminismo, do erotismo e do misticismo em geral :)
Abs!
raph
Massa! Valeu!
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