A aurora de Malévola, parte final
Face a face
O período em que Aurora cresce em meio a floresta encantada, sendo cuidada, de forma oculta, por Malévola e seu corvo fiel, é na minha opinião o ponto alto do filme. Elas chegam a se encontrar quando Aurora ainda é criança, mas é na cena em que Malévola se revela, ainda que de forma relutante, para Aurora, que chegamos a um dos grandes momentos da história.
Malévola está escondida nas sombras dentre as árvores, enquanto Aurora está sob a luz que penetra mesmo naquele canto sombrio da floresta. Lembremos aqui que a própria floresta vai se tornando sombria na medida em que Malévola, sem suas asas e nutrindo o seu ódio pelo rei larápio, vai se tornando mais e mais reclusa. Ora, a única coisa que impede que Malévola se torne definitivamente a bruxa má, e deixe de ser uma fada, é a presença de Aurora, a quem ela chama de “peste” mas, ainda assim, nutre uma afeição crescente e verdadeira.
Neste encontro entre as duas, Malévola supõe que seria Aurora quem teria medo dela, mas é Aurora quem indaga se Malévola tinha receio em se revelar, e em seguida diz, “Eu sei quem é você, você é a sombra que sempre esteve por perto, cuidando de mim, você é a minha fada madrinha”. Para compreender a profundidade deste encontro, devemos lembrar do que dizia Joseph Campbell, grande estudioso de mitologia do século XX [1]:
Há uma velha história que ainda é válida. A história da busca. Da busca espiritual... Que serve para encontrar aquela coisa interior que você basicamente é. Todos os símbolos da mitologia se referem a você. Você enfrentou o seu monstro interior? Você renasceu? Você morreu para a sua natureza animal e voltou à vida como uma encarnação humana?
Ora, sob este ponto de vista podemos notar que Aurora assume um papel duplo na história. Enquanto numa camada mais superficial ela continua sendo a Bela Adormecida, numa camada mais profunda desta releitura do mito, ela é a própria Malévola; ou melhor, ela é a essência mais pura, a alma de fada de Malévola, enquanto que a bruxa má é a sombra ressentida, a carcaça do ego que se afundou no ódio ao mundo que a violentou.
E por que Malévola tinha ao mesmo tempo, tanto amor e tanta raiva de Aurora, tanto ódio e tanto medo? Para compreender, nada melhor do que ouvir as palavras do grande Alan Moore, ocultista e roteirista de quadrinhos britânico [2]:
Muitos dos magos como eu entendem que a tradição mágica ocidental é uma busca do Eu com "E" maiúsculo. Esse conhecimento vem da Grande Obra, do ouro que os alquimistas buscavam, a busca da Vontade, da Alma, a coisa que temos dentro que está por trás do intelecto, do corpo e dos sonhos. Nosso dínamo interior, se preferir assim. Agora, esta é, particularmente, a coisa mais importante que podemos obter: o conhecimento do verdadeiro Eu.
Assim, parece haver uma quantidade assustadora de pessoas que não apenas têm urgência por ignorar seu Eu, mas que também parecem ter a urgência por obliterarem-se a si próprias. Isto é horrível, mas ao menos vocês podem entender o desejo de simplesmente desaparecer, com essa consciência, porque é muita responsabilidade realmente possuir tal coisa como uma alma, algo tão precioso. O que acontece se a quebra? O que acontece se a perde? Não seria melhor anestesiá-la, acalmá-la, destruí-la, para não viver com a dor de lutar por ela e tentar mantê-la pura?
Creio que isto explica muito bem todo o medo que Malévola tinha de encarar sua alma, sua aurora, face a face. Mas este é o tortuoso caminho que todos nós temos de percorrer, sejamos fadas, duendes ou seres humanos, pois que é somente ao nos reconciliarmos com nossa essência mais íntima que poderemos enfim transformar o mundo – primeiro dentro de nós, e em seguida, também lá fora.
Voltando a história...
A história do filme prossegue, e Aurora está prestes a completar 16 anos e sucumbir a terrível maldição, quando encontra um cavaleiro que passava pela floresta encantada, perdido e procurando o caminho para o castelo do rei larápio.
Aurora, que nunca havia saído da floresta, mesmo assim aponta o caminho correto, e os dois combinam de um dia se reencontrar... É preciso lembrar que este jovem cavaleiro é o único ser humano (não faérico) além de Aurora a perambular pela terra das fadas. Como ele poderia estar lá, se não fosse por se tratar de uma alma pura, como a própria Aurora?
Neste momento fica subentendido que seria este jovem aquele quem daria o “beijo de amor verdadeiro” para livrar Aurora da maldição, mas esta releitura do mito transcorrerá de forma bem mais interessante...
A fuga de Aurora
Por um descuido das “tias fadas”, Aurora acaba sabendo que, na realidade, era filha do rei larápio. Nesta altura, o desejo dela era morar “para sempre” na floresta encantada, então ela vai encontrar mais uma vez com Malévola, quando acaba descobrindo que ela era quem havia proferido a terrível maldição que selaria o seu destino. Aurora e Malévola brigam e a jovem foge para as terras do rei larápio, buscando se apresentar como sua filha.
É preciso lembrar que antes desta briga Malévola chega a tentar desfazer a sua maldição. Porém, como ela “não poderia ser desfeita por nenhum poder na terra, além do beijo de amor verdadeiro”, ela acaba falhando.
Ao encontrar sua filha, o rei larápio, já paranoico e extremamente insensível, apenas manda que a deixem trancada nalguma torre do castelo. Ele planeja atacar a floresta encantada com todo o seu exército.
Enquanto isso, o jovem cavaleiro acaba retornando a terra de Malévola, em busca de Aurora. Ao se aperceber disso, o corvo de Malévola a convence a tentar levar o rapaz até o castelo, para desfazer a maldição com o seu aguardado beijo. Prontamente, Malévola faz o rapaz dormir com um feitiço e começa a jornada até o castelo do rei.
O misterioso amor verdadeiro
Pouco antes de adentrarem o castelo, Malévola sente que a maldição profetizada havia se consumado: Aurora havia encontrado “todos os teares do reino” escondidos nos calabouços do castelo e, quase que hipnotizada pela maldição, espeta seu dedo num fuso e cai em seu sono infindável. Esta cena demonstra a inevitabilidade do seu destino, o que é muito comum em se tratando de contos de fadas.
Então chegamos a outra cena grandiosa do filme. Malévola consegue adentrar sorrateira, com o corvo e o jovem cavaleiro em seu sono enfeitiçado, aos aposentos onde se encontra a Bela Adormecida em seu sono sepulcral. A seguir, Malévola e o corvo se escondem num canto e ela desfaz o feitiço, permitindo que o jovem acordasse bem em frente ao leito de Aurora.
No entanto o jovem, muito sabiamente, pergunta se “não seria errado beijar uma jovem em seu sono”... Mas uma das "tias fadas", que "velavam" a Bela Adormecida, diz algo como, “Vai, pode beijar!”, e o cavaleiro arrisca o seu beijo de amor verdadeiro. E não ocorre absolutamente nada!
Malévola aparece e faz o rapaz dormir novamente, então lamenta profundamente que a sua própria maldição não possa ser desfeita, visto que, como ela imaginava, “não existe o amor verdadeiro”. Ela dá então um beijo na testa da Bela Adormecida e, quando já se preparava para ir embora, Aurora desperta e diz, “Oi, fada madrinha”.
Quão misterioso é, afinal, o amor verdadeiro! Não algo que pode surgir do nada, de um encontro casual entre dois jovens, por mais puros que sejam; não algo que surja a primeira vista, mas algo que pulsa e pulsa, em nosso interior mais íntimo, nos recônditos da eternidade!
Reencontrar o amor verdadeiro faz com que Malévola se reconcilie com sua alma e com seu passado, e deixe definitivamente de ser a bruxa má, para voltar a ser a fada. Agora, não mais uma fada inocente e inexperiente, mas uma fada que viu o quão grosseiro pode ser o mundo fora de sua floresta encantada, e que ainda assim consegue manter a conexão com a sua essência eterna.
O retorno das asas
Na sequencia da história, enquanto tentavam fugir do castelo sem serem vistas, Malévola é pega numa armadilha com uma rede de ferro (o contato com o ferro fere gravemente as fadas – a alquimia explica), e então precisa combater o rei larápio e os seus guardas.
A batalha ia muito mal para Malévola (mesmo com seu corvo transformado num assombroso dragão), mas é então que Aurora, em sua fuga da batalha, acaba encontrando as asas trancafiadas de Malévola. Ela derruba a caixa de vidro onde elas estavam, e elas saem voando em direção a Malévola, unindo-se novamente ao seu corpo.
A essa altura já deve ter ficado clara a simbologia de toda a cena: as asas retornam quando Malévola consegue se reconciliar com sua essência, e transformar o seu ódio novamente em amor pelo mundo. Mas ainda faltava o rei larápio...
Ao tentar fugir voando, o antigo amigo de Malévola consegue se engalfinhar em suas pernas com o auxílio de uma arma de corrente, e os dois acabam lutando no topo de uma das torres do castelo. Em dado momento, Malévola poderia o ter enforcado até a morte; mas ela desiste, e diz, “Acabou!”.
De fato, para ela havia acabado o ódio, ela finalmente o havia perdoado. Perdoar não significa relevar o ocorrido, nem exatamente esquecer, mas reconhecer que o ódio e o ressentimento são apenas represas para o amor, e o amor, o amor verdadeiro, uma vez encontrado, deseja romper todas as represas, deseja inundar o mundo todo... Não há ressentimento que resista a tamanho milagre!
Infelizmente não foi a conclusão a qual o rei larápio chegou... Tentando atingi-la por trás, ele acaba caindo da torre e morrendo.
Depois, no final do filme, ficamos sabendo que Aurora e o jovem cavaleiro iriam se casar, e que a floresta encantada voltara a ser como era antes, na infância de Malévola. E assim, todos viveram felizes para sempre.
Joseph Campbell também dizia que “o mito é algo que não existe, mas que existe sempre”. Os mitos são, afinal, os fatos da alma e da mente humana encenados no mundo externo. Por isso são atemporais, pois os assuntos da alma residem na eternidade, e embora não existam na realidade mundana, existem na realidade da imaginação. A única forma de viver feliz para sempre é viver neste caminho que leva a nossa essência mais íntima, a nossa aurora.
***
[1] Trecho de O Poder do Mito.
[2] Trecho de The Mindscape of Alan Moore.
Crédito da imagem: Malévola – O filme (Divulgação)
Marcadores: amor, artigos, artigos (211-220), cinema, contos de fadas, mitologia
6 comentários:
O filme ficou magnífico, assim como o texto. Não é todo dia que a Disney quebra o paradigma de herói e mocinho, apesar de já ter feito isso antes outras vezes, como em "A Bela e a Fera". Desta vez foi a complexidade emocional de "Maleficent" que me encantou. Malévola é uma vilã de um só ato de vilania consumada(a maldição), se não considerarmos sua vilania sobre si mesma: seu rancor. Creio que Malévola, no fim, é a figura mais humana da história, a mais dilacerada pela dualidade, como todos nós humanos somos, porque Aurora é inocente, não somente no sentido de não ser culpada, quanto no sentido de não saber, de não conhecer e de não ter vivido no plano terreno "como ele é". Aurora parece ser mais fada que a própria "Malévola" e "Malévola" parece mais um "meio de contato" que mantem a estabilidade entre dois mundos, apesar de tudo o que passou. Infelizmente, por um longo tempo, ela ficou mais "humana" no sentido degradado do termo do que deveria.
No fim, é Aurora (a pureza, a inocência) quem reina (único modo de manter a sede do poder sob controle)e atrai "Malévola" para sentimentos mais sublimes, "o amor verdadeiro" (engraçado que quando falamos em amor verdadeiro, nossa mente Hollywoodiana pensa em romance, o amor eros, e não em philos e ágape e isso foi muito bem explorado no filme), mas é Malévola (mais sábia depois de tudo o que passou) quem continua protegendo o reino e sendo seu alicerce. Isso é algo que achei bem intrigante... :)
Há duas coisas interessantes no filme, uma é que a vilã da versão anterior se torna a heroína na releitura, e a outra é o fato de a história ser contada do ponto de vista feminino, e não masculino. Os homens são secundários em toda a narrativa... Abs!
Malevola e uma fada boa, adoro ela ela e perfeita, pena qie aquele rei mal carater nao se conteve em matala e ele e qie acaba morrendo mesmo com ela ja tendo o perdoalo. Ele e idiota. Mas o bom foi que ela recuperou suas asas e voltou a ser boa.
Acabei de ver o fie e é uma maravilha. E uma forma mais criativa e diferente do famoso FELIZES PARA SEMPRE...
É a parte do texto que eu mais gostei... "Perdoar não significa relevar o ocorrido, nem exatamente esquecer, mas reconhecer que o ódio e o ressentimento são apenas represas para o amor, e o amor, o amor verdadeiro, uma vez encontrado, deseja romper todas as represas, deseja inundar o mundo todo... Não há ressentimento que resista a tamanho milagre!"
Sim, precisamos aprender a derrubar os muros, as represas e os casulos que montamos em torno do amor :)
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