A sublime canção
Você pensa em mim toda hora
Me come, me cospe, me deixa
Talvez você não entenda
Mas hoje eu vou lhe mostrar:
Eu sou a luz das estrelas
Eu sou a cor do luar
Eu sou as coisas da vida
Eu sou o medo de amar
Eu sou o medo do fraco
A força da imaginação
O blefe do jogador
Eu sou, eu fui, eu vou...
Gita! Gita! Gita!
Ao se deparar com tais versos, a maior parte dos brasileiros vai associá-los a famosa composição de Paulo Coelho e Raul Seixas, Gita. Mas talvez seja uma grande minoria que terá conhecimento da fonte original de boa parte das palavras usadas na música: O Bhagavad Gita, a sublime canção, um dos textos mais sagrados de toda a humanidade.
Embora mais famoso no Oriente (particularmente na Índia, sua terra de origem), o Bhagavad Gita eventualmente foi traduzido do sânscrito para o inglês e, dessa forma, pôde ser apreciado também por grandes mentes ocidentais, que não lhe pouparam elogios e até mesmo uma certa reverência:
Comparado com o Gita, o nosso mundo moderno e toda a sua literatura se parecem insignificantes e triviais (Henry David Thoreau)
O Bhagavad Gita é a coisa mais profunda e mais sublime de que dispõe o mundo dos homens (Wilhelm von Humboldt)
Foi o primeiro dos livros, como se todo um império nos falasse; nada pequeno ou sem significância, mas grandioso, vasto e consistente, a voz de uma inteligência muito antiga (Ralph Waldo Emerson)
Este livro é um dos resumos mais claros e compreensivos da filosofia perene que já nos foram revelados; o seu valor persiste até hoje não somente em benefício da Índia, mas de toda a humanidade (Aldous Huxley)
O Bhagavad Gita (A canção [gita] do Senhor [Bhagavan; a forma humana da divindade]) é um episódio da imensa e milenar epopeia hindu, o Mahabharata (Grande [maha] Índia [bharata]), que contém 250 mil versos, descrevendo a grande guerra entre os Kurus e os Pândavas, que tinha por objetivo a conquista de Hastinapura, um dos centros mais importantes da antiga civilização ariana.
Numa interpretação literal, o livro traz um diálogo existencial entre Arjuna, um dos cinco príncipes dos Pândavas, e o cocheiro de sua carruagem de guerra, seu grande amigo Krishna, em meio ao horror de uma batalha entre dois povos que possuíam muitos laços familiares. Porém, como bem dizia Joseph Campbell, grande estudioso de mitologia do século XX:
Há uma velha história que ainda é válida. A história da busca. Da busca espiritual... Que serve para encontrar aquela coisa interior que você basicamente é. Todos os símbolos da mitologia se referem a você. Você renasceu? Você morreu para a sua natureza animal e voltou à vida como uma encarnação humana? Na sua mais profunda identidade, você é Deus. Você é um com o ser transcendental. (trecho de O Poder do Mito)
Ora, numa interpretação mais profunda do Gita, fica claro que o amigo do príncipe Arjuna é muito, muito mais do que um mero cocheiro. Nalgumas tradições hindus, Krishna é considerado o avatar (encarnação terrena de uma divindade) do deus Vishnu; e noutras tradições ele é considerado a encarnação do próprio Deus Supremo. Em todo caso, o que nos importa em uma interpretação esotérica da obra é que enquanto Arjuna pode ser associado ao ser ainda nos primeiros estágios de sua busca espiritual, Krishna é a representação do final do caminho: a dissolução do ego e a sua união com o logos divino, o Eu Superior, o Cristo.
A batalha retratada no início da canção deve ser compreendida como o embate interno, da alma com ela mesma, em busca de sua própria reformulação moral, em suma, sua evolução no caminho para conhecer a si mesma, um pensamento, um ensinamento de cada vez. Não é sem razão que Arjuna se vê incapaz de participar da guerra entre o seu grupo, os Pândavas, e o grupo adversário, os Kurus. Eis que ambos nada mais são do que a representação de nossos próprios pensamentos: é uma batalha psicológica, uma batalha que todos nós travamos em nosso interior desde o momento em que tomamos consciência de nossa existência – quer compreendamos, quer não...
Os autores do Bhagavad Gita colocam a narração de toda a história na voz de Sanjaya, o fiel servidor do rei cego dos Kurus, Dhritarashtra. Já os Pândavas são seguidores da rainha Kunti, mãe de Arjuna. Ora, Dhritarashtra, o rei cego de nascença, representa a vida material, ancorada nas forças inferiores do ego; já Kunti representa a pureza da alma, e a vontade de reconexão com a divindade, enfim, nosso lado espiritual.
Arjuna, ao perceber que ambos os exércitos fazem parte de si mesmo, que em essência todos são seus parentes, seus irmãos, desperta naquele momento de uma longa existência no mundo das ilusões, o mundo material transitório, e passa a considerar também a existência do mundo da essência, o mundo eterno, de onde vem seu amigo Krishna.
Não se trata, dessa forma, de uma batalha que precise ter um exército vencedor e um derrotado, mas de uma batalha pela reconciliação das forças interiores, para que tanto os Kurus quanto os Pândavas reconheçam, relembrem, que no fim das contas são todos filhos de um mesmo ser. E o que Krishna ensina ao príncipe Arjuna no restante desta sublime canção é precisamente que este ser é você!
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Bibliografia
O Poder do Mito, Joseph Campbell (Ed. Palas Athena)
História das crenças e das ideias religiosas, Mircea Eliade (Ed. Zahar)
Bhagavad-Gita, A Mensagem do Mestre, introdução e tradução por Francisco Lorenz (Ed. Pensamento)
Crédito da imagem: Google Image Search (Arjuna e Krishna em sua carruagem)
Marcadores: artigos, artigos (221-230), Bhagavad Gita, espiritualidade, hinduísmo, mitologia
1 comentários:
Hehe, legal. Eu acho que o sujeito do "Eu nasci há 10 mil anos atrás" lembra muito o Krishna também, esta ideia de um ser que existe em todos nós, uma forma do Cosmos conhecer a si mesmo. A diferença é que esta outra música acaba tendo mais espaço para brincadeiras, o que era um traço bem característico do Raul.
Abs!
raph
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