A estrela ao centro
Um grupo de pássaros desejava encontrar o seu rei; então pediram a um pequeno pássaro sábio de longa crista que lhes ajudasse em sua busca. Ele lhes disse que o rei que estão procurando se chama Simurgh e que vive escondido na montanha de Qaf. A jornada até a sua casa, porém, é uma aventura muito difícil e perigosa.
Mesmo assim, muitas centenas de pássaros aceitaram a tarefa, e iniciaram um longo voo através dos sete grandes vales que os separavam de seu destino: o vale da busca, seguido do vale amor, do vale da compreensão, do vale do desapego, do vale da unicidade, do vale do espanto e da perplexidade e, finalmente, do último deles, o vale do aniquilamento e da morte... Muitos foram se perdendo pelo caminho, de modo que somente 30 bravos pássaros conseguiram chegar em Qaf.
Este é um brevíssimo resumo de um dos textos clássicos do sufismo, de Attar de Nishapur, intitulado A linguagem dos pássaros (ou A conferência dos pássaros). Attar (o “perfumador”) viveu aproximadamente entre o fim do século XI e o início do XII, e foi um dos diversos grandiosos poetas que ajudaram a estabelecer as bases do sufismo, que nada mais é do que a vertente mística do Islã.
Embora todas as grandes religiões tenham o seu ramo místico, até hoje o termo “misticismo” é muito pouco compreendido, e usualmente associado ao termo “mistificação”, que é praticamente o seu oposto. Os místicos, de fato, são exatamente aqueles religiosos verdadeiros, buscadores da essência das coisas, e não de sua casca. Os místicos trabalham exatamente para desmistificar, descascar tais frutos sagrados, que nunca foram nem jamais serão descritos por palavras. As palavras, ora essa, são exatamente as cascas que sobraram...
No entanto, não foi através do perfume de Attar que fui atraído aos sufis, e sim pela poesia de um de seus admiradores, Jalal ud-Din Rumi, teólogo e poeta sufi que viveu na região da Anatólia (atual Turquia) no século XIII. Por mais estranho que possa parecer, este místico persa é atualmente um dos poetas mais lidos nos EUA e em muitos países de língua inglesa, e isso se deve menos a qualidade de seus tradutores (principalmente Coleman Barks) do que a qualidade inefável e atemporal de seus poemas:
Vem, vem, seja você quem for, não importa se você é um infiel, um idólatra, ou um adorador do fogo; vem, nossa irmandade não é um lugar de desespero; vem, mesmo tendo violado seu juramento cem vezes, vem assim mesmo.
Vem, lhe direi em segredo aonde leva esta dança. Vê como as partículas do ar e os grãos de areia do deserto giram desnorteados. Cada átomo, feliz ou miserável, gira apaixonado em torno do sol.
Ninguém fala para si mesmo em voz alta. Já que todos somos um, falemos deste outro modo: os pés e as mãos conhecem o desejo da alma. Fechemos então a boca e conversemos através da alma. Só a alma conhece o destino de tudo, passo a passo.
Vem, se lhe interessa, posso mostrar... [1]
Fui fisgado imediatamente pelo sentimento que tais cascas fizeram brotar em meu coração. Rumi sabia exatamente o que estava fazendo, ainda que inconscientemente, pois a maior parte de sua obra foi ditada enquanto ele mesmo dançava, rodopiando ao redor de algum ponto imaginário, enquanto seus seguidores se apressavam em anotar cada sílaba, cada palavra, e não perder nem uma gota daquele mel divino que escorria, sabe-se lá de onde.
Nem sempre havia sido assim. Antes de se tornar um poeta enlouquecido de amor, Rumi fora um grande teólogo ortodoxo do Islã, profundamente venerado por seu conhecimento das escrituras sagradas. Mas sua ortodoxia foi dissolvida no dia em que encontrou o sol de sua vida: Shams de Tabriz, um místico andarilho que instigou Jalal ud-Din a deixar as cascas de lado, e se concentrar na essência das coisas.
Tão intensa foi a amizade entre Rumi e Shams que o seu próprio filho, um de seus seguidores mais devotos, um dia escreveu desesperado:
Noite e dia, em êxtase ele dançava, na terra girava como giram os céus. Rumo às estrelas lançava seus gritos e não havia quem não os escutasse. Aos músicos provia ouro e prata, e tudo o mais de seu entregava. Nem por um instante ficava sem música e sem transe, nem por um momento descansava.
Houve protestos, no mundo inteiro ressoava o tumulto. A todos surpreendia que o grande sacerdote do Islã, tornado senhor dos dois universos, vivesse agora delirando como um louco, dentro e fora de casa. Por sua causa, da religião e da fé o povo se afastara; e ele, enlouquecido de amor. Os que antes recitavam a palavra de Deus agora cantavam versos e partiam com os músicos.
Na verdade o ápice do “delírio” de Rumi veio mesmo quando foi obrigado a se afastar de seu amigo. A história não foi tão bonita: Shams muito provavelmente foi assassinado pelos próprios seguidores de Rumi [2], enciumados de sua atenção quase que exclusiva ao seu amigo e amado, e aturdidos com o seu crescente afastamento da ortodoxia de outrora.
Não deu certo: após ser privado de sua grande amizade, Rumi se dissolveu completamente no amor, e passou o resto de seus dias dançando, rodopiando e recitando palavras divinas. Em tudo o que “escreveu”, assinou não com seu próprio nome, mas com o nome daqueles que amava, fosse Shams, fosse alguns dos seus discípulos, fosse o açougueiro da cidade...
Além das ideias de certo e errado, há um campo. Eu lhe encontrarei lá.
Quando a alma se deita naquela grama, o mundo está preenchido demais para que falemos dele. Ideias, linguagem, e mesmo a frase “cada um” não fazem mais nenhum sentido.
Você já sofreu em excesso por sua ignorância, já carregou seus trapos para um lado e para outro, agora fica aqui...
Na verdade, somos uma só alma, você e eu. Nos mostramos e nos escondemos você em mim, eu em você...
Eis aqui o sentido profundo da minha relação contigo: é que não existe, entre você e eu, nem eu, nem você.
Rumi assinava seus poemas com nomes alheios pois havia finalmente chegado, como os 30 pássaros de Attar, ao final da jornada do ser, a casa do rei, na montanha de Qaf:
Ao entrar, os pássaros olharam tudo assustados. Não conseguiam entender o que se passava, pois no lugar de ver a Simurgh, o rei, tudo o que eles conseguiram ver foi... 30 pássaros refletidos num grande salão cheio de espelhos, e vazio!
Finalmente compreendem que, contemplando a si mesmos, têm encontrado ao rei, e que em sua busca do rei, têm encontrado a si mesmos. Os que atravessam os sete vales se purificam, e os que conseguem chegar ao palácio real, encontram ao rei que se revela em seus corações.
Esta é a essência do sufismo, a essência do misticismo, e que não pode ser totalmente apreendida por palavras, por fábulas, nem sequer por poemas. Talvez tenha sido a dança, o sama, o grande tesouro que Rumi tenha deixado para nós, através da ordem Mevlevi, mesmo que hoje ela seja cada vez mais uma dança artística do que propriamente religiosa...
Fato é que isso tudo não importa, o que importa é a estrela ao centro, o ponto imaginário em torno do qual dançam os sufis, num ritmo eterno. E seja “Allah”, “Deus” ou “Alma do Mundo” o seu nome, tampouco importa, é somente um nome. O que importa é a experiência, o que importa é o próximo passo desta dança.
E ela não termina nunca!
***
[1] Os poemas e citações do texto podem ser encontrados em minhas traduções do poeta na obra Rumi – A dança da alma.
[2] O que não é algo assim tão raro na história do sufismo. Outro grande poeta sufi, Mansour al-Hallaj, também foi perseguido, preso por mais de uma década, torturado e morto, por se atrever a se “afastar da ortodoxia” de sua época (final do séc. IX, início do X).
Crédito da imagem: Babel Santorini/Divulgação
Marcadores: artigos, artigos (221-230), Attar, espiritualidade, islamismo, misticismo, Rumi, sufismo
0 comentários:
Postar um comentário
Toda reflexão é bem-vinda:
Voltar a Home