Um elogio a reflexão
É sempre muito proveitoso ler boa filosofia, a despeito das inúmeras lendas acerca de sua complexidade e aparente inutilidade prática. Ademais, nunca é tarde para começar a pensar sobre si, a se aventurar nos reinos da própria alma, a se conhecer. Ou, como bem resumiu Epicuro:
Na juventude, não devemos hesitar em filosofar; na velhice, não devemos deixar de filosofar. Nunca é cedo nem tarde demais para cuidar da própria alma. Quem diz que não é ainda, ou já não é mais, tempo de filosofar, parece-se ao que diz que não é ainda, ou já não é mais, tempo de ser feliz.
Obviamente há que se ter em mente para que serve propriamente a filosofia. Em minha adolescência ela não foi ensinada no colégio, e portanto não servia para passar nas provas e tampouco no vestibular. Da mesma forma, o fato de alguém haver estudado filosofia não parece ser uma das prioridades das empresas na hora de analisar um currículo. Nesse sentido, é melhor aprender a programar, gerenciar ou até mesmo cozinhar. De fato, a filosofia não serve para passar em provas nem para se ter um bom salário.
No entanto, ela serve para se ter uma boa vida, uma vida com muito mais felicidades do que angústias, o que é fruto direto do contato e conhecimento de nossa própria alma. Não se deveria estudar filosofia somente para ter assuntos para conversar com este ou aquele intelectual de linguagem rebuscada, melhor seria evitar amizades deste tipo. A verdadeira filosofia não cria barreiras de linguagem entre as pessoas, todo verdadeiro filósofo é um apreciador da alma humana, pois é somente de lá que advém a sabedoria.
O Chefe Seattle, por exemplo, não sabia nada de física ou química, nem nunca leu nenhum clássico da literatura alemã ou russa. Mas todo filósofo saberá apreciar o seu quinhão de sabedoria, pois reconhecerá nela um pouco da água que flui da mesma fonte, na essência das almas, de todas as almas:
O Presidente em Washington diz que deseja comprar a nossa terra. Mas como pode comprar ou vender o céu, a terra? Essa ideia é estranha para nós. Cada parte dessa terra é sagrada para o meu povo. Cada agulha de pinheiro brilhante. Cada grão de areia da praia, cada névoa na floresta escura. Cada característica é sagrada na memória e na experiência do meu povo.
Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores são nossas irmãs. O urso, o veado, a grande águia são nossos irmãos. Cada reflexo na água cristalina dos lagos fala de acontecimentos e lembranças da vida do meu povo. Sabemos que a terra não pertence ao homem. O homem pertence à terra. Todas as coisas são interligadas, como o sangue que nos une. O homem não tece a teia da vida – ele é apenas um fio dela. O que fizer à teia, fará a si mesmo.
E foi necessário bem mais de um século para que o restante da humanidade se desse conta destas verdades. Ora, Epicuro e o Chefe Seattle nunca ouviram falar um do outro, mas certamente dariam excelentes amigos, pois ambos conheciam suas próprias almas de uma forma bem mais profunda do que a maioria de nós. A sabedoria, nesse sentido, é um dos nossos maiores tesouros, bem mais valiosa do que terras, petróleo, ou um cargo na diretoria de uma multinacional.
Amar a sabedoria, ser um filósofo, nesse sentido, é antes se preocupar em ser do que em ter. Antes se preocupar com as coisas naturais do que com as coisas superficiais. Mas no que exatamente a mera leitura dos clássicos poderá nos auxiliar? Em quase nada, se nos mantivermos apenas na leitura dos manuais de natação, sempre nos resguardando do mergulho. Por que deixar para amanhã a aventura que pode se iniciar neste momento?
Uma das máximas do estoicismo, por exemplo, é uma frase supreendentemente simples: “Preocupe-se apenas com aquilo que pode mudar”. Mas qual a utilidade em se ler e decorar tal máxima, quem sabe para passar nalguma prova estranha, ou talvez para recitá-la em meio a uma reunião de negócios, querendo passar a ideia de que é um intelectual?
Pois é, de nada adianta haver lido Epicteto ou Sêneca se você nunca exercitou esse amor a sabedoria, esse olhar para si, enfim, a reflexão. Somente pela reflexão em cima de tais palavras é que poderemos nos desligar um pouco das crises nos noticiários, e tratar de resolver as crises de nossa própria existência. Somente pela reflexão em cima de tais palavras é que podemos, quem sabe, sair de casa para dirigir nosso carro numa metrópole engarrafada tendo em mente que o trânsito estará lá, como sempre esteve, e não é xingando o motorista ao lado ou algum deus da fortuna que iremos chegar mais rapidamente ao nosso destino.
O nosso destino, afinal, sempre foi nossa própria alma. Viaje até a Índia, visite um vulcão na Islândia ou um cassino em Las Vegas, e não terá dado sequer um passo para além de sua alma, de sua essência. Há todo um mundo por lá – de fato, o único mundo que há.
E somos bombardeados constantemente por informações, anúncios, equações de lucros e perdas, número de mortos e feridos, placares de partidas e resultados de provas, e nada disso existe por si só, ou tem significado por si só: somos nós, em nós mesmos, quem interpretamos o mundo. Por que, então, se abster de mergulhar, por que viver a margem de nossa própria alma?
Seja na filosofia, na ciência, na religião ou até mesmo na poesia, a primeira coisa que o mergulhador aprende é que os manuais só nos servem para dar a coragem do primeiro mergulho, dos primeiros cem metros na trilha da floresta íntima, pois que o restante da aventura caberá somente a nós.
Neste caminho, entretanto, não temos somente a ajuda do relato daqueles que caminharam há séculos ou milênios atrás por essas mesmas trilhas, temos também a possibilidade de sermos auxiliados pelos que caminham ao mesmo tempo que nós. E a única coisa que eles lhe pedirão é que ajudem também aos que vêm atrás.
E é assim, é somente assim, de mãos dadas nesta jornada, que poderemos um dia alcançar a eternidade. Esta região onde residem todas as utopias e todas as promessas de um novo amanhã, de onde cintila a luz que não gera nem é gerada, e que existe e sempre existiu para ser refletida – um pensamento de cada vez.
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Crédito da imagem: Google Image Search (Epicuro)
Marcadores: artigos, artigos (221-230), Chefe Seattle, Epicuro, estoicismo, filosofia, índios
3 comentários:
A carta do chefe Seattle é bonita, mas parece que ninguém sabe ao certo o que ele escreveu. A versão difundida atualmente parece ter sido re-escrita. E modificada nesse processo.
Bem, o trecho utilizado foi retirado da versão resumida por Joseph Campbell em "O Poder do Mito".
A versão completa da carta pode ser lida aqui:
http://ignisnri.blogspot.com.br/2007/12/carta-do-cacique-seattle.html
Abs
raph
Campbell pode ter usado as fontes que tinha, afinal é um texto muito poético.
Mas no fundo é tão perfeito que desperta desconfiança, ainda mais quando se sabe que o Chefe Seattle não falava inglês e toda e qualquer versão do seu discurso foi traduzido. Dizem que nas palavras de um bom intérprete tudo soa poético e maravilhoso, enquanto que que outro intérprete pode produzia outro texto completamente diferente.
Uma pesquisa por 'chief seattle speech' no google traz várias páginas interessantes.
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