Anjos Fósseis, por Alan Moore (parte 2)
Por Alan Moore. Tradução de Daniel Lopes, revisão de Rafael Arrais.
Outra clara distinção entre os magos dos séculos XVI e XIX encontra-se em sua relação com a narrativa de suas épocas. Os irmãos da recém-criada Golden Dawn teriam se inspirado muito mais por puro romance em torno da magia que por qualquer outro aspecto, com S. L. McGregor Mathers seduzido pelo desejo de fazer da sua vida uma fantasia como Zanoni de Bulwer Lytton. Convenceu Moina a se referir a ele como "Zan", alegam. Woodford e Wescott, por outro lado, ansiosos por fazerem parte de uma ordem que tinha ainda mais parafernália que a Maçonaria Rosacruciana, de alguma forma fizeram contato com os fabulosos (literalmente) graus da Geltische Dammerung, que significa algo como “hora dourada do chá”. Traziam em mãos seus diplomas de Nárnia, tirados direto do outro lado do guarda roupa. Ou lá estava Alex Crowley, tentando forçosamente convencer sua turminha a chama-lo por Alastor, de Shelley, como algum autonomeado Goth de Nottingham chamado Dave insistindo que seu nome de vampiro era Armand. Ou, pouco tempo depois, havia todo o tipo de bruxaria de culto antiquíssimo, todo tipo de coven de linhagem de sangue despertando como os filhos do dragão onde quer que os escritos de Gerald Gardner estivessem disponíveis. Os ocultistas do século XIX todos pareciam querer ser o tio do Aladdin em uma eterna pantomima. Viver o sonho.
John Dee, do contrário, foi talvez mais premeditadamente consciente que qualquer outra pessoa de sua época. Mais focado e com mais propósito. Ele não precisou procurar por antecedentes nas ficções e mitologias disponíveis, porque John Dee não estava de maneira alguma para brincadeira. Ele inspirou as grandes ficções mágicas de seu tempo, e não o contrário. O Próspero de Shakespeare. Fausto de Marlowe. O jocoso Alquimista de Ben Johnson. A magia de Dee era uma força viva e progressiva, integral em seu tempo, em vez de um espécime extinto e empalhado, sem relevância em histórias e contos de fadas. Tinha em mãos um novo e excitante capítulo, escrito inteiramente em tempo presente, com a aventura mágica em andamento. Por comparação, os ocultistas que o seguiram no decorrer de uns três séculos tiveram no máximo um elaborado apêndice, ou talvez uma bibliografia. Uma liga conservadora, murmurando em sincronia os ritos de um homem morto. Versões covers. Karaokê da feitiçaria. A magia, uma vez dada por vencida ou usurpada de sua função social perdeu sua razão de ser, o astro da noite viu-se em meio ao teatro vazio, de cortinas misteriosas. Cestos empoeirados de vestidos velhos, inescrutáveis adereços para peças canceladas. Na falta de um papel, cresceu incerta de suas motivações, a magia pareceu não ter recursos a não ser bancar o bom cãozinho e seguir o script, resguardando cada último gesto e suspiro, com sua performance esvaziada por hora congelou-se, embrulhou-se; habilmente se reempacotando para a posteridade inglesa.
Quão lamentável então, que tenha sido este momento na história da magia, com conteúdo e função perdidos por trás de um ritual sobrecarregado de pormenores embutidos, que muito fala e pouco faz, precisamente aquele que as últimas ordens decidiram por cristalizar. Sem uma meta ou missão pré-definidas, nenhum conforto vendável, os ocultistas do século XIX parecem ter dado demasiada atenção a um pomposo papel de presente. Possivelmente inaptos a conceber qualquer grupo que não fosse estruturado de maneira hierárquica como nas lojas das quais estavam habituados, Mathers e Wescott obedientemente importaram todos os bens de família maçônicos quando foram mobilhar a sua recém nascida ordem. Todos os trajes, graus e utensílios. A mentalidade de uma ordem secreta elitizada. Crowley, é claro, pegou toda essa bagagem pesada e ostentosa quando puxou seu barco para fundar a O.T.O., e todas as outras ordens desde então, mesmo em suas pretensas empreitadas iconoclastas como a I.O.T., parecem ter adotado o mesmo padrão do auge da era vitoriana. Armadilhas suficientemente sensacionalistas, intrincadas o bastante para chamar a atenção para o que os críticos maldosos poderiam perceber como um vácuo de quaisquer resultados práticos, qualquer efeito sobre a condição humana.
A décima quarta (e talvez última?) edição da estimada Revista Kaos, de Joel Biroco, trazia uma reprodução de uma pintura, um surpreendente, afetuoso e assustador trabalho nas belas pinceladas de Marjorie Cameron, ruiva assustadora, companheira de lar de Dennis Hopper e Dean Stockwell, reputada dama escarlate, queridinha telemita. Entretanto, quase tão intrigante quanto o trabalho em si é o título: Anjo Fóssil, com suas contraditórias conjurações de algo maravilhoso, inefável e transitório combinadas com isso que é por definição morto, inerte e petrificado. Haverá aí uma metáfora conveniente, tão sóbria quanto instrutiva? Não poderiam todas as ordens magísticas, com suas doutrinas e dogmas, serem interpretadas como os restos imóveis calcificados de algo antes intangível e cheio de graça, vivo e mutável? Como energias, como inspirações e ideias que dançavam de mente em mente, evoluindo pelo menos até que a primeira fração de calcário de ritual e repetição as tenham congelado em seu percurso, paralisando-as no meio do caminho para alguma realização, algum gesto incompleto? Iluminações de trilobitas. Anjos fósseis.
Algo incipiente e etéreo, uma vez desperto brevemente, como uma pedra saltando pela superfície de nossa cultura, deixando sua leve e tênue marca no barro humano, uma impressão digital que moldamos em concreto com um aparente resquício de conteúdo capaz de nos fazer ajoelhar por décadas, séculos, milênios. Recite as tranquilizantes e familiares cantigas de ninar ou encantamentos palavra por palavra, e cuidadosamente reencene a velha e amada historinha e talvez algo aconteça, como já aconteceu antes. Se amarrarmos um carretel e papel alumínio em uma caixa de papelão fazendo a parecer vagamente um rádio talvez John Frumm apareça e traga helicópteros de volta? As ordens secretas, tendo feito um fetiche de todo tipo de cerimônia que surgiu ou se passou há meio século atrás, sentam como Miss Haversham e se perguntam se os insetos no bolo de casamento de alguma maneira confirmam o Livro da Lei.
Uma vez mais, nada disso tem a intenção de negar a contribuição que as várias ordens e seu trabalho fizeram ao campo da magia, mas meramente observar que essa contribuição admitidamente considerável, é amplamente, de natureza enclausurante em sua preservação do ritual e folclore do passado, ou mesmo que sua elegante síntese de ensinamentos discrepantes é sua principal (e talvez única) conquista. Diante de tais realizações, entretanto, o persistente legado da cultura ocultista do século XIX parece em sua maioria uma antítese à continuidade saudável, proliferação e viabilização da magia, que, como uma tecnologia, com certeza já ultrapassou o datado vaso ornamentado vitoriano e está precisando urgentemente de um transplante. Toda a mobília artificial Maçônica e alicerce implementados por Wescott e Mathers, bastando querer para ser capaz de imaginar outra estrutura válida, tornou-se, para a nossa época, uma limitação e impedimento para o fomento da magia. Resquícios enganosos, faixas cerimoniais apertadas que pressionam qualquer crescimento, restringem todo o pensamento, limitam os caminhos nos quais concebemos ou podemos conceber magia. Imitando os construtos do passado, pensando em termos não necessariamente aplicáveis hoje – que talvez de fato nunca tenham sido – parecem ter deixado o ocultismo moderno totalmente incapaz de visualizar qualquer método diferente no qual possa organizar-se. Inapto a imaginar qualquer progresso, qualquer evolução, qualquer futuro, o que é provavelmente a garantia para que não tenha mesmo nenhum.
Se com frequência a Golden Dawn é o modelo vigente, um exemplar radiante da perfeita ordem de sucesso, isso certamente se dá porque seu segmento incluía muitos escritores renomados de evidente habilidade e valor, que apenas por serem membros, prestigiaram-na com mais credibilidade do que ela jamais teria, graças a eles. O brilhante John Coulthart sugeriu que provavelmente a Golden Dawn era estimadamente reconhecida como uma sociedade literária, onde escrivãos de boa vontade procuraram por uma magia que poderiam encontrar evidência demonstrável, que já estavam vivas e em funcionamento em seu próprio trabalho, onde não tinham a visão ofuscada por quaisquer cerimônias, todo aquele fantástico kit. Um autor que mais claramente contribuiu com algo de valor legítimo para a magia por meio de sua própria ficção do que quaisquer trabalhos na ordem foi Arthur Machen. Ainda que admitindo seu deslumbramento em todo o mistério e maravilha na cerimônia da ordem secreta, Machen sentiu-se compelido a incluir quando escrevia sobre a Golden Dawn em sua autobiografia, Things Near and Far, que “para quem buscava qualquer coisa vital dentro da ordem secreta, qualquer coisa que valha algo para qualquer ser racional, não havia nada lá, ou menos que nada... A sociedade enquanto grupo era pura e tolamente preocupada com impotentes e imbecis Abracadabras. Não conheciam nada de nada e se preocupavam mais com um ritual impressionante e sonora terminologia.” Astutamente, Machen notou a aparente relação inversa entre o conteúdo genuíno e o barroco, a forma elaborada que caracterizavam as ordens dessa natureza, uma crítica tão relevante hoje quanto era em 1923.
O território da magia, largamente abandonado como sendo muito perigoso desde a época de Dee e Kelley, foi definido e reclamado (quando isso foi seguro de se fazer) pelos entusiastas ocultistas do século XIX, pela classe média suburbana, que transformaram o ressecado e negligenciado arbusto em uma série de jardins ornamentais maravilhosamente elaborados. Elementos decorativos, estátuas e pagodes bastante intrigantes, idealizados a partir de um produtivo passado pastoril. Deuses em estado terminal reclinados em seu leito de azaleias.
O problema é que jardineiros algumas vezes brigam. Disputas por fronteira. Vendetas e despejos de inquilinos, sob a luz da lua. Uma vez que estas invejáveis propriedades são ocupadas, são com frequência cagadas por novas famílias problemáticas, novas intrigas. Atêm-se às velhas placas de identificação, mantêm-se o mesmo endereço, mas deixam o lugar se acabar, permitindo que seu terreno caia em estado de calamidade. Lesmas deslizando-se, ervas daninhas crescendo entre vinte e duas pétalas de rosa. Nos anos 90 do século XIX, a paisagem do jardim da magia era porcamente mantida com preguiçosos e desleixados loteamentos subaproveitados e mal drenados, pintura descascando nas casas de verão egípcias cafonas, agora meros estábulos onde paranoicos vigilantes rurais ficam acordados a noite toda, mimando suas espingardas e esperando vândalos adolescentes. Não há produto sequer que mereça ser mencionado. As flores não têm perfume e não mais encantam. Você sabe, eram todos aqueles caprichados lamens e tábuas xadrez enoquianas aqui e ali, e agora vejam só. As desgrenhadas sebes com sua topiária Goética tão seca quanto palha, ripas de madeira apodrecidas naquele gazebo de estilo Rosacruziano. No que isso tudo pode resultar é com toda certeza um incêndio.
Não, francamente. Terra arrasada. Tem-se aos montes pra indicar. Imagine a cara que tinha quando a moda dos robes e estandartes pegou. Perder a vida e o sustento era inevitável, é claro, algum dano colateral no setor de negócios, mas com certeza seria legitimamente belo. As vigas do templo desmoronando em chamas faiscantes. “Esqueça-me! Salve os manuscritos cifrados!” Entre as incontáveis Missas Gnósticas, juramentos, evocações e banimentos, havia qualquer coisa que os distraíssem de um alerta de incêndio? Ninguém tinha certeza de como eles evacuariam a câmara interna, nem saberiam quantos ainda estariam lá dentro. Finalmente surgem contos de bravuras voluntariosas de cortar o coração. “Ele voltou pra resgatar o desenho do LAM, e não conseguimos pará-lo.” Em seguida, um momento de silencio, para refletir. Enterra-se o morto, apontam-se os sucessores. Rompe-se o selo de Hymenaeus Gamma. Um olhar triste sobre nossos acres enegrecidos. Leve isso um dia de cada vez, doce Jesus. Infle nossas narinas, nos mantenha unidos. De alguma maneira iremos suportar.
E agora? Terra arrasada, é claro, é rica em nitratos e provê uma base para agricultura de corte e queimada. No pó carbonizado, o broto verde da recuperação. A vida floresce indiscriminadamente, agitando-se em solo negro. Poderíamos ceder essa majestosa relva de volta para a natureza. Por que não? Pense nisso como ecologia astral, o reclame de um cinturão verde psíquico sob o pavimento rachado do ocultismo vitoriano, como um encorajamento para o crescimento de uma biodiversidade metafísica. Considerada como um princípio organizador para a operação mágica, a complexa e autogeradora estrutura fractal de uma selva pareceria tão viável em cada pequena porção quanto qualquer imposição ilegítima de uma ordem de piso de loja xadrez; pareceria, de fato, consideravelmente mais natural e vital. Afinal, o tráfego de ideias que é a essência e a seiva da magia é mais efetivo hoje em dia em arbustos-telégrafos de um tipo ou outro, em vez de segredos ritualísticos solenemente alcançados após anos de tentativas, CSEs [certificados de educação secundária] de Hogwarts. Não será essa floresta tropical o modo de interação, na verdade, a configuração padrão do ocultismo ocidental para os dias de hoje? Por que não sair e admitir isso, demolir todos esses clubes que não servem nem como ornamento, abraçar a lógica dos cipós? Dinamitar as barragens, liberar a enchente, deixar a nova vida florescer nos ameaçados e moribundos habitats de outrora.
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Crédito da foto: Google Image Search/Lex Records (Alan Moore)
Marcadores: Alan Moore, autores selecionados, autores selecionados (171-180), crítica, espiritualidade, magia, ocultismo
2 comentários:
muito obrigado Daniel e Rafael, no aguardo ansioso da parte 3.
Agora entendi o porque de promethea acabar na carta mundo sendo os dias atuais.
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