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8.4.16

Anjos Fósseis, por Alan Moore (parte 2)

« continuando da parte 1

Por Alan Moore. Tradução de Daniel Lopes, revisão de Rafael Arrais.

Outra clara distinção entre os magos dos séculos XVI e XIX encontra-se em sua relação com a narrativa de suas épocas. Os irmãos da recém-criada Golden Dawn teriam se inspirado muito mais por puro romance em torno da magia que por qualquer outro aspecto, com S. L. McGregor Mathers seduzido pelo desejo de fazer da sua vida uma fantasia como Zanoni de Bulwer Lytton. Convenceu Moina a se referir a ele como "Zan", alegam. Woodford e Wescott, por outro lado, ansiosos por fazerem parte de uma ordem que tinha ainda mais parafernália que a Maçonaria Rosacruciana, de alguma forma fizeram contato com os fabulosos (literalmente) graus da Geltische Dammerung, que significa algo como “hora dourada do chá”. Traziam em mãos seus diplomas de Nárnia, tirados direto do outro lado do guarda roupa. Ou lá estava Alex Crowley, tentando forçosamente convencer sua turminha a chama-lo por Alastor, de Shelley, como algum autonomeado Goth de Nottingham chamado Dave insistindo que seu nome de vampiro era Armand. Ou, pouco tempo depois, havia todo o tipo de bruxaria de culto antiquíssimo, todo tipo de coven de linhagem de sangue despertando como os filhos do dragão onde quer que os escritos de Gerald Gardner estivessem disponíveis. Os ocultistas do século XIX todos pareciam querer ser o tio do Aladdin em uma eterna pantomima. Viver o sonho.

John Dee, do contrário, foi talvez mais premeditadamente consciente que qualquer outra pessoa de sua época. Mais focado e com mais propósito. Ele não precisou procurar por antecedentes nas ficções e mitologias disponíveis, porque John Dee não estava de maneira alguma para brincadeira. Ele inspirou as grandes ficções mágicas de seu tempo, e não o contrário. O Próspero de Shakespeare. Fausto de Marlowe. O jocoso Alquimista de Ben Johnson. A magia de Dee era uma força viva e progressiva, integral em seu tempo, em vez de um espécime extinto e empalhado, sem relevância em histórias e contos de fadas. Tinha em mãos um novo e excitante capítulo, escrito inteiramente em tempo presente, com a aventura mágica em andamento. Por comparação, os ocultistas que o seguiram no decorrer de uns três séculos tiveram no máximo um elaborado apêndice, ou talvez uma bibliografia. Uma liga conservadora, murmurando em sincronia os ritos de um homem morto. Versões covers. Karaokê da feitiçaria. A magia, uma vez dada por vencida ou usurpada de sua função social perdeu sua razão de ser, o astro da noite viu-se em meio ao teatro vazio, de cortinas misteriosas. Cestos empoeirados de vestidos velhos, inescrutáveis adereços para peças canceladas. Na falta de um papel, cresceu incerta de suas motivações, a magia pareceu não ter recursos a não ser bancar o bom cãozinho e seguir o script, resguardando cada último gesto e suspiro, com sua performance esvaziada por hora congelou-se, embrulhou-se; habilmente se reempacotando para a posteridade inglesa.

Quão lamentável então, que tenha sido este momento na história da magia, com conteúdo e função perdidos por trás de um ritual sobrecarregado de pormenores embutidos, que muito fala e pouco faz, precisamente aquele que as últimas ordens decidiram por cristalizar. Sem uma meta ou missão pré-definidas, nenhum conforto vendável, os ocultistas do século XIX parecem ter dado demasiada atenção a um pomposo papel de presente. Possivelmente inaptos a conceber qualquer grupo que não fosse estruturado de maneira hierárquica como nas lojas das quais estavam habituados, Mathers e Wescott obedientemente importaram todos os bens de família maçônicos quando foram mobilhar a sua recém nascida ordem. Todos os trajes, graus e utensílios. A mentalidade de uma ordem secreta elitizada. Crowley, é claro, pegou toda essa bagagem pesada e ostentosa quando puxou seu barco para fundar a O.T.O., e todas as outras ordens desde então, mesmo em suas pretensas empreitadas iconoclastas como a I.O.T., parecem ter adotado o mesmo padrão do auge da era vitoriana. Armadilhas suficientemente sensacionalistas, intrincadas o bastante para chamar a atenção para o que os críticos maldosos poderiam perceber como um vácuo de quaisquer resultados práticos, qualquer efeito sobre a condição humana.

A décima quarta (e talvez última?) edição da estimada Revista Kaos, de Joel Biroco, trazia uma reprodução de uma pintura, um surpreendente, afetuoso e assustador trabalho nas belas pinceladas de Marjorie Cameron, ruiva assustadora, companheira de lar de Dennis Hopper e Dean Stockwell, reputada dama escarlate, queridinha telemita. Entretanto, quase tão intrigante quanto o trabalho em si é o título: Anjo Fóssil, com suas contraditórias conjurações de algo maravilhoso, inefável e transitório combinadas com isso que é por definição morto, inerte e petrificado. Haverá aí uma metáfora conveniente, tão sóbria quanto instrutiva? Não poderiam todas as ordens magísticas, com suas doutrinas e dogmas, serem interpretadas como os restos imóveis calcificados de algo antes intangível e cheio de graça, vivo e mutável? Como energias, como inspirações e ideias que dançavam de mente em mente, evoluindo pelo menos até que a primeira fração de calcário de ritual e repetição as tenham congelado em seu percurso, paralisando-as no meio do caminho para alguma realização,  algum gesto incompleto? Iluminações de trilobitas. Anjos fósseis.

Algo incipiente e etéreo, uma vez desperto brevemente, como uma pedra saltando pela superfície de nossa cultura, deixando sua leve e tênue marca no barro humano, uma impressão digital que moldamos em concreto com um aparente resquício de conteúdo capaz de nos fazer ajoelhar por décadas, séculos, milênios. Recite as tranquilizantes e familiares cantigas de ninar ou encantamentos palavra por palavra, e cuidadosamente reencene a velha e amada historinha e talvez algo aconteça, como já aconteceu antes. Se amarrarmos um carretel e papel alumínio em uma caixa de papelão fazendo a parecer vagamente um rádio talvez John Frumm apareça e traga helicópteros de volta? As ordens secretas, tendo feito um fetiche de todo tipo de cerimônia que surgiu ou se passou há meio século atrás, sentam como Miss Haversham e se perguntam se os insetos no bolo de casamento de alguma maneira confirmam o Livro da Lei.

Uma vez mais, nada disso tem a intenção de negar a contribuição que as várias ordens e seu trabalho fizeram ao campo da magia, mas meramente observar que essa contribuição admitidamente considerável, é amplamente, de natureza enclausurante em sua preservação do ritual e folclore do passado, ou mesmo que sua elegante síntese de ensinamentos discrepantes é sua principal (e talvez única) conquista. Diante de tais realizações, entretanto, o persistente legado da cultura ocultista do século XIX parece em sua maioria uma antítese à continuidade saudável, proliferação e viabilização da magia, que, como uma tecnologia, com certeza já ultrapassou o datado vaso ornamentado vitoriano e está precisando urgentemente de um transplante. Toda a mobília artificial Maçônica e alicerce implementados por Wescott e Mathers, bastando querer para ser capaz de imaginar outra estrutura válida, tornou-se, para a nossa época, uma limitação e impedimento para o fomento da magia. Resquícios enganosos, faixas cerimoniais apertadas que pressionam qualquer crescimento, restringem todo o pensamento, limitam os caminhos nos quais concebemos ou podemos conceber magia. Imitando os construtos do passado, pensando em termos não necessariamente aplicáveis hoje – que talvez de fato nunca tenham sido – parecem ter deixado o ocultismo moderno totalmente incapaz de visualizar qualquer método diferente no qual possa organizar-se. Inapto a imaginar qualquer progresso, qualquer evolução, qualquer futuro, o que é provavelmente a garantia para que não tenha mesmo nenhum.

Se com frequência a Golden Dawn é o modelo vigente, um exemplar radiante da perfeita ordem de sucesso, isso certamente se dá porque seu segmento incluía muitos escritores renomados de evidente habilidade e valor, que apenas por serem membros, prestigiaram-na com mais credibilidade do que ela jamais teria, graças a eles. O brilhante John Coulthart sugeriu que provavelmente a Golden Dawn era estimadamente reconhecida como uma sociedade literária, onde escrivãos de boa vontade procuraram por uma magia que poderiam encontrar evidência demonstrável, que já estavam vivas e em funcionamento em seu próprio trabalho, onde não tinham a visão ofuscada por quaisquer cerimônias, todo aquele fantástico kit. Um autor que mais claramente contribuiu com algo de valor legítimo para a magia por meio de sua própria ficção do que quaisquer trabalhos na ordem foi Arthur Machen. Ainda que admitindo seu deslumbramento em todo o mistério e maravilha na cerimônia da ordem secreta, Machen sentiu-se compelido a incluir quando escrevia sobre a Golden Dawn em sua autobiografia, Things Near and Far, que “para quem buscava qualquer coisa vital dentro da ordem secreta, qualquer coisa que valha algo para qualquer ser racional, não havia nada lá, ou menos que nada... A sociedade enquanto grupo era pura e tolamente preocupada com impotentes e imbecis Abracadabras. Não conheciam nada de nada e se preocupavam mais com um ritual impressionante e sonora terminologia.” Astutamente, Machen notou a aparente relação inversa entre o conteúdo genuíno e o barroco, a forma elaborada que caracterizavam as ordens dessa natureza, uma crítica tão relevante hoje quanto era em 1923.

O território da magia, largamente abandonado como sendo muito perigoso desde a época de Dee e Kelley, foi definido e reclamado (quando isso foi seguro de se fazer) pelos entusiastas ocultistas do século XIX, pela classe média suburbana, que transformaram o ressecado e negligenciado arbusto em uma série de jardins ornamentais maravilhosamente elaborados. Elementos decorativos, estátuas e pagodes bastante intrigantes, idealizados a partir de um produtivo passado pastoril. Deuses em estado terminal reclinados em seu leito de azaleias.

O problema é que jardineiros algumas vezes brigam. Disputas por fronteira. Vendetas e despejos de inquilinos, sob a luz da lua. Uma vez que estas invejáveis propriedades são ocupadas, são com frequência cagadas por novas famílias problemáticas, novas intrigas. Atêm-se às velhas placas de identificação, mantêm-se o mesmo endereço, mas deixam o lugar se acabar, permitindo que seu terreno caia em estado de calamidade. Lesmas deslizando-se, ervas daninhas crescendo entre vinte e duas pétalas de rosa. Nos anos 90 do século XIX, a paisagem do jardim da magia era porcamente mantida com preguiçosos e desleixados loteamentos subaproveitados e mal drenados, pintura descascando nas casas de verão egípcias cafonas, agora meros estábulos onde paranoicos vigilantes rurais ficam acordados a noite toda, mimando suas espingardas e esperando vândalos adolescentes. Não há produto sequer que mereça ser mencionado. As flores não têm perfume e não mais encantam. Você sabe, eram todos aqueles caprichados lamens e tábuas xadrez enoquianas aqui e ali, e agora vejam só. As desgrenhadas sebes com sua topiária Goética tão seca quanto palha, ripas de madeira apodrecidas naquele gazebo de estilo Rosacruziano. No que isso tudo pode resultar é com toda certeza um incêndio.

Não, francamente. Terra arrasada. Tem-se aos montes pra indicar. Imagine a cara que tinha quando a moda dos robes e estandartes pegou. Perder a vida e o sustento era inevitável, é claro, algum dano colateral no setor de negócios, mas com certeza seria legitimamente belo. As vigas do templo desmoronando em chamas faiscantes. “Esqueça-me! Salve os manuscritos cifrados!” Entre as incontáveis Missas Gnósticas, juramentos, evocações e banimentos, havia qualquer coisa que os distraíssem de um alerta de incêndio? Ninguém tinha certeza de como eles evacuariam a câmara interna, nem saberiam quantos ainda estariam lá dentro. Finalmente surgem contos de bravuras voluntariosas de cortar o coração. “Ele voltou pra resgatar o desenho do LAM, e não conseguimos pará-lo.” Em seguida, um momento de silencio, para refletir. Enterra-se o morto, apontam-se os sucessores. Rompe-se o selo de Hymenaeus Gamma. Um olhar triste sobre nossos acres enegrecidos. Leve isso um dia de cada vez, doce Jesus. Infle nossas narinas, nos mantenha unidos. De alguma maneira iremos suportar.

E agora? Terra arrasada, é claro, é rica em nitratos e provê uma base para agricultura de corte e queimada. No pó carbonizado, o broto verde da recuperação. A vida floresce indiscriminadamente, agitando-se em solo negro. Poderíamos ceder essa majestosa relva de volta para a natureza. Por que não? Pense nisso como ecologia astral, o reclame de um cinturão verde psíquico sob o pavimento rachado do ocultismo vitoriano, como um encorajamento para o crescimento de uma biodiversidade metafísica. Considerada como um princípio organizador para a operação mágica, a complexa e autogeradora estrutura fractal de uma selva pareceria tão viável em cada pequena porção quanto qualquer imposição ilegítima de uma ordem de piso de loja xadrez; pareceria, de fato, consideravelmente mais natural e vital. Afinal, o tráfego de ideias que é a essência e a seiva da magia é mais efetivo hoje em dia em arbustos-telégrafos de um tipo ou outro, em vez de segredos ritualísticos solenemente alcançados após anos de tentativas, CSEs [certificados de educação secundária] de Hogwarts. Não será essa floresta tropical o modo de interação, na verdade, a configuração padrão do ocultismo ocidental para os dias de hoje? Por que não sair e admitir isso, demolir todos esses clubes que não servem nem como ornamento, abraçar a lógica dos cipós? Dinamitar as barragens, liberar a enchente, deixar a nova vida florescer nos ameaçados e moribundos habitats de outrora.

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Crédito da foto: Google Image Search/Lex Records (Alan Moore)

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31.3.16

Anjos Fósseis, por Alan Moore (parte 1)

Introdução
A lenda dos quadrinhos, Alan Moore, é o autor de diversos títulos memoráveis, tais quais Watchmen, A Liga Extraordinária, V de Vingança e Do Inferno. Desde o seu aniversário de 40 anos, Moore se autoproclamou um mago. Mas é preciso cuidado para compreender a sua visão da magia, que ele uma vez definiu como “uma ciência da linguagem, do uso de símbolos para induzir alterações na consciência”. Alan vê uma conexão íntima entre a magia e a criatividade artística, o que foi explorado de forma magistral na sua série Promethea.

Recentemente publicamos no blog uma tradução da sua entrevista, A arte da magia, concedida a revista britânica Pagan Dawn. Conforme se tratou da série de posts com mais visualizações nos últimos tempos, resolvemos traduzir também o seu monumental Fossil Angels [Anjos Fósseis].

Fossil Angels é uma espécie de “ensaio-manifesto” que trata basicamente do estado da magia e espiritualidade no mundo atual, onde Alan traz críticas ácidas e contundentes a todos os demais magos e místicos, juntamente com conselhos preciosos e um otimismo implícito em relação a um possível futuro mais pleno de espiritualidade, tudo permeado com a mais fina ironia, numa linguagem por vezes rude e brutal, por vezes impregnada do bom humor britânico.

O ensaio foi escrito em 2002 para a edição #15 da revista KAOS, que de fato jamais chegou a ser lançada. Após quase uma década, foi finalmente divulgado online em 2010, por admiradores de Moore (claro, com o seu devido consentimento).

Trata-se de um ensaio longo, que será publicado aqui no blog em diversas partes. Conforme tivemos algumas pessoas auxiliando na tradução, vamos postar os créditos específicos sempre ao início de cada parte.

E agora, com vocês, Mr. Alan Moore, o Grande Mago...


Anjos Fósseis, parte 1
Por Alan Moore. Tradução de Daniel Lopes, revisão de Rafael Arrais.

Consideremos o mundo da magia. Uma dispersão de ordens ocultas que, quando não estão tentando refutar a ascendência uma da outra, estão criogenicamente suspensas em suas rotinas ritualísticas, seu jogo de ditames de Aiwaz, ou algo perdido em um spam canalizado de uma expansão de Dungeons & Dragons, mapeando um novo universo infalsificável e então completamente sem valor até que demonstrassem que tem tanto a ver quanto uma unha pintada de esmalte preto na garra de um dragão antigo. Transmissões autoconscientes de entidades afligidas por síndrome de Tourette, de horrores glossolálicos de Hammer [companhia cinematográfica britânica]. Alguidares oraculares [scrying bowls] de alguma forma recebendo trailers do canal Sci-Fi. Muito longe dos caciques ocultos, e por esta razão, muito longe dos índios ocultos.

Além disso, passando pelos portões rangentes das ilustres sociedades, dilapidados tolos de 50 anos que deram início aos planos para um palácio celestial, mas inevitavelmente terminaram com o Bates Motel, enquanto lá fora se estende a multidão. Os embusteiros da psique. O rugido incoerente de nossa hermética torcida em casa, os anouraques Akashicos, os metidos a Wiccans e o Templo UV dos quarenta psíquicos-qualquer-coisa fazendo fila para a última franquia do reino das fadas, reino dos irrecuperáveis hobbituados. Vila Potter.

Como exatamente isso confirma o Aeon de Horus, Aeon de qualquer coisa se não de mais consumismo, de política de gangsters, do materialismo levado ao limite da mente? Isso que parece ser um lugar comum quase universal de aceitação de ideais conservadores é na verdade sinal de uma desgovernada Thelema? O Cthulhu está voltando em algum momento próximo ou são as maldições bárbaras da escuridão lá fora onde os iluministas tentam achar seus traseiros com uma lanterna? O ocultismo ocidental contemporâneo conseguiu realizar algo mensurável fora da sessão mediúnica [séance parlour]? A magia tem algum outro uso definido para a espécie humana além de oferecer a oportunidade de se fantasiar? Putas Tântricas e vigários da noite temática de Thelema. Pentagramas em seus olhos. “Esta noite, Matthew, eu serei o Logos do Aeon”. A magia demonstrou algum propósito, justificando sua existência de modo como a arte ou a ciência ou a agricultura justificaram as suas? Em resumo, alguém tem alguma pista do que estamos fazendo, e precisamente por que estamos fazendo?

Certamente, a Magia nem sempre foi divorciada de maneira tão aparente de toda função humana imediata. Sua origem paleolítica no xamanismo com certeza representou, naquele momento, a única forma de mediação com um universo vasto e hostil sobre o qual até então exercíamos muito pouco entendimento ou controle. Em tais circunstancias é fácil conceber magia como representando inicialmente uma realidade de parada única numa loja de conveniência pela estrada. Uma visão de mundo em que todas as outras vertentes da nossa existência – caça, procriação, lidar com os elementos ou pinturas nas paredes das cavernas – foram agrupadas. A ciência de tudo, sua relevância para as preocupações comuns dos mamíferos, tanto óbvias quanto inegáveis.

Essa função de uma “filosofia natural” com tudo incluso, obtida ao longo da ascensão da civilização clássica, ainda pode ser vista, embora de maneira mais latente, até o século XVI, quando as ciências mundana e oculta não eram tão dissociáveis como são hoje. Seria surpreendente, por exemplo, se John Dee não cedesse seu conhecimento de astrologia matizando sua inestimável contribuição para a arte da navegação ou vice-versa. Não até que a Idade da Razão gradualmente pervertesse nossa crença e contato com os deuses que proveram nossos predecessores e nosso inexperiente senso de racionalidade identificasse o sobrenatural como um mero órgão vestigial no corpo humano, obsoleto e possivelmente doente, que deve ser rapidamente extraído.

A ciência, crescida à parte da magia, dotada da magia, cria impulsiva, sua forma mais prática e portanto materialmente proveitosa de aplicação, muito cedo decidiu que o ritual e a alfaia simbólica de sua cultura parental alquímica era redundante, um estorvo e um constrangimento. Inflado em seu novo jaleco branco, com esferográficas ostentadas como medalhas em seu peito, a ciência envergonhou-se de seus companheiros (história, geografia, por exemplo) flagrados fazendo compras com a mãe, com todo o seu resmungo e cantoria. Seu terceiro mamilo. Melhor esconder sua loucura em algum lugar seguro, alguma Fraggle Rock [gíria inglesa para uma ala psiquiátrica em que os encarcerados tomam altas dosagens de medicamentos fortes] para velhos e perturbados paradigmas.

A cisão que isso causou na família de ideias humana parece irrevogável, com duas partes do que antes era um organismo separado pelo reducionismo, uma "ciência de tudo" inclusiva se tornou duas visões separadas, cada uma aparentemente em acirrada e viciosa oposição em relação à outra. A ciência, no processo deste amargo divórcio, pode-se dizer que perdeu contato com seu componente ético, com base moral necessária para prevenir a reprodução de monstros. A magia, por outro lado, perdeu todo o seu propósito e utilidade demonstrável, como muitos pais quando os filhos crescem e vão embora. Como preencher o vazio? A resposta é, seja falando da magia ou do mundano, lastimando por pais e mães com ninhos vazios, com toda probabilidade, “com ritual e nostalgia”.

O ressurgimento da magia do século XIX, com sua natureza retrospectiva e essencialmente romântica, parecia estar abençoado com esses dois fatores em abundância. Embora seja difícil não notar as contribuições feitas para a magia enquanto campo de conhecimento, tais como, Eliphas Levi ou os vários magos da Golden Dawn, é tão difícil quanto deixar de argumentar que essas contribuições foram esmagadoramente sucintas, na medida em que aspiravam criar uma síntese da tradição já existente, em formalizar as mais variadas sabedorias dos antigos.

Não é desmerecer essa considerável realização se observarmos que esta magia, durante décadas, carecia de propósito imediato, o que levou a pressa pioneira que caracterizou, por exemplo, o trabalho de Dee e Kelly. No desenvolvimento de seu sistema Enoquiano, a magia tardia da renascença poderia ser tipificada como experimental e de urgência criativa, voltada para o futuro. Em comparação, os ocultistas do século XIX parecem ter quase deslocado a magia para um passado reverenciado, tornando-a uma trilha de exibição de museu, um acervo, com eles mesmos como curadores.

Tinham todas as vestes e adereços, que cheiravam a reencenações históricas em grupo, uma sociedade serafínica do nó selado, com uma marcha ligeiramente menos boba. O preocupante consenso de valores de direita e o número de baixas às sacudidas e tropeços, por outro lado, provavelmente eram idênticos. Os ritos das elevadas ordens magísticas e as bebedeiras homicidas das bandas tributo de Cromwell são também similares na medida em que ambas comovem se justapostas ao cruel e implacável mecanismo da realidade industrial. Belas varinhas pintadas, obsessivas e genuínas ponteiras, levantadas contra o lúgubre progresso das chaminés. O quanto disso não pode ser mais acuradamente descrito como fantasias compensatórias da era da máquina? RPGs que só servem para evidenciar o fato brutal que essas atividades não têm mais relevância humana na contemporaneidade. Uma melancólica recriação dos momentos eróticos há muito passados de um impotente.

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Crédito da foto: Kazam Media/REX Shutterstock (Alan Moore)

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29.2.16

A arte da magia, uma entrevista com Alan Moore (parte final)

« continuando da parte 2

Trechos da entrevista de Alan Moore para a revista Pagan Dawn, orginalmente em inglês, com tradução de Rafael Arrais.

Sam: Você esteve trabalhando no Moon and Serpent Bumper Book of Magic com Steve Moore. Este trabalho mira apresentar o conhecimento esotérico de uma forma totalmente prática e compreensível. Seria correto dizer que esta obra seria um passo além de onde você parou com Promethea, e qual o estágio do seu desenvolvimento?

Alan: Seria mais preciso dizer que Promethea foi um instrutivo primeiro passo, um Moon and Serpent não-oficial que nos ajudou a moldar nossas ideias para este grimório mais sério e elaborado que nós sempre falamos em produzir um dia.

O ensaio final está concluído, mas ainda há algumas seções do texto que preciso retrabalhar e finalizar, e no momento ainda estamos em busca dos artistas apropriados para cada uma das suas seções. Penso que será lançado, no mínimo, em meados de 2016.

Sam: Quais foram as fontes que mais o ajudaram em sua própria jornada mágica?

Alan: Tudo o que li foi de alguma forma útil para mim, mesmo os dementes que aparecem de vez em quando, que nos dão uma instrução muito útil sobre como não pensar.

Pelo lado positivo, tenho de dizer que a obra de Robert Anton Wilson foi altamente iluminadora, que William Blake e Austin Osman Spare me trouxeram algumas bases inestimáveis e que, acima de tudo, a maior influência sobre minha teoria e prática mágicas foi, seguramente, Steve Moore.

Sam: Em Fossil Angels você alertou sobre a necessidade de uma série de mudanças de comportamento em relação à prática da magia. Você acredita que alguma coisa mudou desde que o seu ensaio foi publicado?

Alan: Usualmente tais ideias levam anos ou décadas para se tornarem visíveis. Eu tenho certeza de que houve mudanças aqui e ali, mas não esperaria ver ainda uma grande reação.

Eu penso que ainda há mais trabalho a ser feito sobre a definição ou redefinição da identidade pública da magia antes de podermos ver um número significante de pessoas tomaram este caminho de forma mais séria.

Sam: Por acaso você se sente relacionado com a tradição bárdica do druidismo e sua conexão com o Awen [inspiração poética]?

Alan: Certamente. A tradição bárdica da magia, onde as sátiras eram justificadamente mais temidas do que maldições, e os compositores eram respeitados como magistas poderosos, e não como músicos sobrevivendo às margens da indústria do entretenimento, é uma tradição que faria muito bem aos ocultistas e escritores que por ventura se interessem em se familiarizar. Você pode matar ou curar com a palavra. Arregace suas mangas e corra atrás deste conhecimento.

Sam: Você vê a magia cerimonial como algo acessível e sem grande complexidade para todos, sejam druidas, pagãos, cristãos, budistas, hindus, ou o que for?

Alan: Bem, se as pessoas estão imersas no que Robert Anton Wilson se referiu como "um túnel de realidade", e a sua mentalidade religiosa dita que a magia é inexistente, má ou herege, então se relacionar com ela dificilmente será algo acessível ou simples. Eu creio que é melhor abordar a magia com uma mentalidade genuinamente aberta e nenhum "apego aos resultados". Se a sua mente não está voluntariamente receptiva em sua porta de entrada, então é mais provável que ela seja arrombada pela experiência mágica em si mesma, com consequências possivelmente desastrosas.

Preconceitos religiosos ou racionalistas, creio eu, contribuem para o que William Blake chamou de "algemas forjadas pela mente", e progredir mais neste assunto poderia se provar antiético.

Sam: Você é um reconhecido defensor de Northampton [cidade natal de Moore]. Seria parte disso uma conexão que você sente com a terra dos seus ancestrais?

Alan: Eu me sinto conectado com os processos históricos, geográficos, sociopolíticos e genéticos que resultaram nisto que eu sou. Da mesma forma, ao permanecer muito tempo num mesmo lugar você adquire uma compreensão mais profunda do seu significado e, por extensão, do significado que aguarda por ser descoberto em qualquer outro lugar do planeta.

E, claro, como destacou Spike Milligan, todos têm de estar em algum lugar.

Sam: Conte-nos mais sobre as performances musicais e teatrais das quais participou junto ao Moon and Serpent Grand Egyptian Theatre of Marvels. Tendo passado a maior parte de sua carreira nos teclados e máquinas de escrever, qual a importância desse tipo de performance ao vivo para você?

Alan: Na época das apresentações, eu sentia que era aquilo que nós fomos instruídos a fazer. Eu sempre gostei de performances, claro, dentro de certos limites. É uma experiência muito diferente de trabalhar nos teclados, como você disse.

No entanto, ultimamente eu tenho recusado muitas aparições ao vivo e apresentações. É que simplesmente não sinto que é o tipo de coisa em que devo me focar no momento.

Sam: Finalmente, você tem algum conselho para magos e artistas inexperientes que estejam nos lendo?

Alan: Sim. Lembre-se de que quando eu digo que a magia e a arte são equivalentes, você não deve deduzir que estou dizendo que a magia é somente arte; que estou de alguma forma tentando reduzir a magia ao associa-la com algo que todos creem ser algo comum e factível.

O que estou dizendo, em realidade, é que toda arte é e sempre foi tão somente magia, que todas as extraordinárias recompensas que dizem que podemos conquistar através da magia também podem ser alcançadas pela arte, e todos os horrores, pesadelos e perigos comumente associados à prática da magia também ameaçam o artista ou o escritor.

Aborde o seu trabalho com tanta reverência, compaixão, inteligência e precaução quanto você teria ao encontrar com um suposto anjo, deus ou demônio. A arte pode lhe matar ou lhe levar a loucura tanto quanto a invocação dos 72 Espíritos Infernais da Goétia de Salomão, e se você duvida disso, considere todos os artistas, poetas e atores que se suicidaram ou arruinaram suas vidas – aposto que a lista não será curta.

A arte e a magia são provavelmente as realizações mais preciosas da humanidade, elas são o nosso contato mais íntimo com a eternidade. Leve-as a sério; leve a sério a si mesmo, e lembre-se de que a sua arte e a sua magia são tão grandiosas, tão plenas de poder, tão perigosas e belas quanto você pode imaginá-las em seu ser.

Não as busque na esperança de obter dinheiro, poder, fama e status, ou como uma modinha, mas pelo que elas são em si mesmas. É este o significado da devoção, e se for praticada da forma certa, ela pode lhe transformar, assim como o mundo em que vive.

Oh, e encontre algum deus ou equivalente, ou melhor, deixe que um deus lhe encontre. Eu sugeriria um deus com algum cabelo estiloso, mas isso pode ser somente meu gosto pessoal. Boa sorte.

***

Comentário final
Devido a se tratar de uma entrevista já demasiado longa para ser publicada na íntegra aqui no blog, eu optei por ignorar algumas perguntas que, no fim das contas, são quase um “lugar comum” nas raríssimas entrevistas de Moore. Para quem tiver curiosidade, tais perguntas tratavam de Glycon (o controverso deus serpente da Antiguidade, o “deus escolhido” por Moore), das adaptações de suas obras para o cinema (em suma, ele continua achando tudo horrível e não quer tomar parte), de Grant Morrison (solenemente ignorado na resposta: “não creio que seja nem um escritor nem um mago”) e Austin Osman Spare (que Moore tem em grande crédito: “um mago quase perfeito”).

Crédito da foto: momentofmoore.com (Alan Moore)

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25.2.16

A arte da magia, uma entrevista com Alan Moore (parte 2)

« continuando da parte 1

Trechos da entrevista de Alan Moore para a revista Pagan Dawn, orginalmente em inglês, com tradução de Rafael Arrais.

Sam: Você vê um elo íntimo entre a magia, a imaginação e a criatividade, uma ideia que foi desenvolvida em Promethea. Conte-nos mais sobre essa conexão.

Alan: Como já foi dito, a minha posição é a de que a arte, a linguagem, a consciência e a magia são todos aspectos do mesmo fenômeno. Com a arte e a magia vistas como quase totalmente intercomunicáveis e conectadas, o reino da imaginação se torna crucial para ambas as práticas.

O reino cabalístico lunar da imaginação é chamado Yesod, que é um termo hebraico que significa "Fundação". Isso sugere que a imaginação é a única fundação sobre a qual nossas funções mentais elevadas estão edificadas e, da mesma forma, por onde podem ser acessadas. A magia, segundo a nossa formulação, parece estar intimamente envolvida com a criatividade e a criação, em quaisquer contextos onde tais termos possam ser usados.

Sam: Promethea já foi descrito como "um passeio cabalístico", e traz uma empolgante visão geral das ciências ocultas. Ele abre a porta para este reino, e parece convidar as pessoas a aprenderem mais sobre ele. Foi esta a sua intenção?

Alan: A minha intenção original com Promethea, um título em que não perco muito tempo pensando hoje em dia, pois não me pertence, foi criar um modelo de história em quadrinho de super-heróis mais imaginativo e elaborado, usando as antigas heroínas do era da ficção pulp [pulp fiction] como meu ponto de partida.

Em uma ou duas edições, eu comecei a perceber como uma personagem desse tipo poderia evoluir para expressar de forma lúcida muitas das ideias que estavam há algum tempo no centro da minha mente e de todo o meu processo criativo.

Sam: Nos capítulos finais da série episódios inteiros foram usados para explorar cada esfera [sephirah] da Árvore da Vida. É verdade que você os escreveu enquanto se encontrava num estado de consciência alterada por rituais e meditações?

Alan: Eu comecei a explorar as esferas inferiores algum tempo antes de iniciar meu trabalho com Promethea. Minhas investigações se valiam tanto de rituais inventados quanto de drogas psicodélicas.

Após certo ponto em meu "passeio cabalístico", eu senti a necessidade de experienciar as esferas mais elevadas, de forma a representá-las de forma autêntica para o leitor. Uma delas, Hokhmah, foi alcançada através dos métodos já mencionados, enquanto para as demais eu decidi testar se a meditação intensa focada na escrita criativa seria suficiente para adentrar tais reinos elevados da consciência e do ser.

Me valendo do critério, "se você não pode imaginar a experiência então provavelmente ainda não alcançou a esfera", eu descobri que realmente poderia investigar todas as esferas superiores, para minha enorme satisfação.

A exceção foi Kether, neste caso eu comi um grande pedaço de haxixe, escrevi as três primeiras páginas da edição e depois praticamente desmaiei.

Sam: Os quadrinhos de Promethea se conectam com o conhecimento esotérico em múltiplas camadas. Para além das palavras e das imagens em si, por exemplo, os episódios que tratam das esferas da Árvore da Vida usam esquemas de cor apropriados para cada um dos reinos visitados. Isso lembra muito o Tarot Ritual da Golden Dawn, que usa as cores das esferas nos elementos simbólicos e no pano de fundo de forma a transmitir bastante informação logo que a carta é observada. O nível de detalhe em Promethea chega a atordoar – tudo isso foi planejado desde o início, ou foi crescendo conforme o título foi sendo escrito?

Alan: Conforme já foi dito, o ímpeto inicial se inclinava muito mais para uma narrativa mais tradicional, e o projeto pareceu evoluir intuitiva e organicamente conforme foi progredindo.

Sobre o assunto dos esquemas de cor cabalísticos, naquela altura eu já havia absorvido a lição de que enquanto os números, joias, plantas, animais, perfumes e divindades eram atributos das diversas esferas, as cores eram basicamente as esferas elas mesmas.

Apesar de na época não estarmos certos de que as várias escalas de cor seriam apropriadas em termos de publicação moderna de quadrinhos, nós decidimos tocar a ideia e, graças ao extraordinário trabalho de Jeremy Cox, formos recompensados com uma bela e envolvente demonstração do poder da atmosfera da decoração cabalística.

Sam: O desenhista, J. H. Williams III, disse que a criação do episódio sobre o Abismo cobrou o seu preço a todos os envolvidos no projeto. Houve outras experiências tão significativas durante o desenvolvimento de Promethea?

Alan: Bem, teve a minha experiência anterior a criação da edição sobre Hokhmah, que ocorreu junto à companhia de Steve Moore numa noite de sexta-feira, em 12 de Abril de 2002, quando estávamos tentando estabelecer se qualquer outra pessoa poderia ver a deusa lunar que ele havia passado cerca de um mês tentando materializar [imaginar], conforme descrevi na minha narrativa psicobiográfica, Unearthing.

O experimento foi não somente um aparente sucesso, como ocorreu no mesmo dia em que uma voz em minha cabeça (estranhamente, minha própria voz, embora dissociada da minha vontade) me disse que eu havia me tornado um mago [Magus], o que, ilusoriamente ou não, eu decidi levar a sério. Eu também recebi uma convicção muito firme de que a edição #32 de Promethea seria a última, e seria construída de alguma forma no formato de um pôster psicodélico.

Após Steve ter ido embora eu escrevi e digitei a edição sobre Hokhmah – foi a #22 ou algo assim – em menos de sete horas de um fluxo característico de energia criativa disforme e espontânea. Ainda não um exemplo de Moorcock em sua melhor forma, mas ainda assim alguma espécie de recorde pessoal.

Desde esse dia a minha vida e as minhas percepções têm sido notadamente diferentes.

Sam: Promethea é a última da longa lista de protagonistas femininas que você criou, desde Halo Jones em 2000AD. O que o atraiu a escrever sobre protagonistas mulheres?

Alan: Não acho que tenha escrito mais histórias com protagonistas femininas do que masculinos. Se parece haver uma preponderância de personagens femininos em minha obra, isso provavelmente nasceu da minha tentativa de abordar a desigualdade entre os gêneros que prevalece em nossa cultura.

Por outro lado, minha série baseada na obra de H. P. Lovecraft, Providence, mal tem quaisquer personagens femininos e, conforme se trata de um trabalho derivado da imaginação de um autor que é notoriamente avesso às mulheres, muitas das que aparecem com o tempo mostram serem monstros apavorantes.

Eu devo destacar que isso se dá por conta da percepção de mundo do Lovecraft, e não da minha.

Sam: No seu ensaio de 2002, Fossil Angels, você sugere que os rituais e a linguagem que circundam a magia conspiraram para manter a maioria das pessoas afastadas. Promethea por acaso foi uma tentativa de romper tais barreiras e despertar as massas para as tradições magísticas?

Alan: Todo o propósito do Moon and Serpent Grand Egyptian Theatre of Marvels (do qual Promethea é claramente uma parte não-oficial) desde o seu nascimento foi o de expressar as ideias da magia da forma mais bela e lúcida possível.

Em nosso Bumper Book of Magic nós vamos além e demandamos que os magos modernos se posicionem ao centro da sociedade, ao invés de se esconderem em suas margens, se engajando na ciência, na arte, na política, na filosofia e nas questões sociais, assim reconectando a magia com a população em geral, conforme ela foi inicialmente elaborada para servir e iluminar.

» encerra na parte 3

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Crédito da imagem: Montagem do Jovem Nerd (Alan Moore e capas do Promehtea ao fundo)

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24.2.16

A arte da magia, uma entrevista com Alan Moore (parte 1)

Trechos da entrevista de Alan Moore para a revista Pagan Dawn, originalmente em inglês, com tradução de Rafael Arrais.

A lenda dos quadrinhos, Alan Moore, é o autor de diversos títulos memoráveis, tais quais Watchmen, A Liga Extraordinária, V de Vingança e Do Inferno. Ele também é um praticante de magia cerimonial e cofundador do Moon and Serpent Grand Egyptian Theatre of Marvels [O Grande Teatro Egípcio de Maravilhas da Lua e da Serpente]. Alan vê uma conexão íntima entre a magia e a criatividade artística, o que foi explorado na sua série Promethea. Sam Proctor resolveu lhe perguntar mais sobre este assunto...

Sam: Você disse que o seu interesse pela magia foi despertado enquanto pesquisava sobre a história da Maçonaria para compor Do Inferno, e que você anunciou publicamente a sua intenção de se tornar um mago em seu aniversário de 40 anos. Diga-nos mais sobre o que o levou a dar uma guinada tão radical em sua vida.

Alan: Como era de ser esperado, inúmeros fatores entraram na equação para tal decisão. Um deles, que por acaso não teve nenhuma relação com a minha pesquisa sobre a Maçonaria, foi uma linha de diálogo que eu já havia dado ao personagem principal de Do Inferno, afirmando que o lugar em que os deuses indubitavelmente existiam era a mente humana, onde eles eram reais em toda a sua "grandeza e monstruosidade".

Uma reflexão mais aprofundada das implicações desta linha de diálogo que surgiu casualmente na obra me deixou com aparentemente nenhuma forma de refutar tal afirmação, e assim fui obrigado a reajustar toda a minha racionalidade, que anteriormente vivia num ponto de vista muito estreito.

O território até então virgem e inexplorado da magia me pareceu ser a única área do conhecimento humano que poderia me oferecer alguma forma de tentar resolver tais ideias tão novas e intrigantes. Me autodeclarar um mago, com todo o risco de cair em ridículo e perder minha reputação, me pareceu um primeiro passo necessário para ingressar nesta nova identidade de visão radicalmente estendida, e até hoje mantenho a mesma opinião.

É claro que a coragem para dar este salto potencialmente desastroso nas trevas do intelecto foi grandemente facilitado pelo fato de eu estar num pub celebrando o meu aniversário, apreciando um bom jazz, e consideravelmente bêbado.

Sam: Você acredita que a magia pode nos oferecer uma forma de ver, compreender e nos relacionar com o mundo e com nós mesmos que a ciência e a psicologia não podem?

Alan: Em nosso livro por ser publicado, Moon & Serpent Bumper Book of Magic [autoria de Alan Moore e Steve Moore; eles não são parentes], nós consideramos que a consciência (interior), precedida pela linguagem, precedida pela representação (e a arte), eram todos fenômenos que surgiram mais ou menos no mesmo momento da história humana, e todos eles poderiam ser então percebidos como magia, um termo abrangente que abraçava todos os novos conceitos radicais nascidos do descobrimento do nosso mundo interior.

Isso nos permite dar uma definição para a magia como "um noivado com a consciência, uma busca dos significados dos seus fenômenos e possibilidades" [1]. Nós então prosseguimos para arguir que, originalmente, toda a cultura e todo pensamento humano se encontravam submergidos na visão mágica do mundo, e que com o advento das sociedades urbanas e a ascensão das profissões especializadas a magia foi lentamente dissociada das suas funções sociais.

Primeiramente as religiões organizadas a demoveram de sua profundidade espiritual, e então um crescente surgimento de autores, artesãos e artistas a demoveram de seu papel como fonte principal de visão imaginativa. Logo após, vizires e ministros tomaram o papel do xamã como principal conselheiro político da comunidade. Tudo isso deixou a magia com suas funções restantes, embora ainda vitais e frutíferas, de pesquisa alquímica, cura e investigação do mundo interior, até que a Renascença e o advento da Era da Razão delegaram os dois primeiros para os campos emergentes da ciência e da medicina, e finalmente, em torno de 1910, o terceiro foi capturado pela "nova ciência" de Freud e Jung, a psiquiatria.

Nós sugerimos que a totalidade da cultura na qual hoje residimos é nada menos que o cadáver desmembrado da magia (apesar dele ainda ter, de alguma forma, uma aparente capacidade de se comunicar), e que esse processo indubitavelmente necessário é exemplificado pelo princípio alquímico do solve, ou decomposição.

Nossa tese é a de que hoje se faz necessário o processo complementar de coagula, ou síntese, de forma a completarmos tal fórmula tão essencial. Para este fim, nós propomos que a arte e a magia devem ser intimamente reconectadas para o enorme benefício de ambas, conforme já foi dito em meu ensaio Fossil Angels, e o próximo passo deveria ser aprimorarmos o elo já existente entre as artes e as ciências, incluindo a psiquiatria, que eu já chamei um dia, sem nenhuma intenção de desrespeito, de "ocultismo num jaleco".

O passo final, mais importante e problemático, seria o de nutrir a conexão entre a ciência e a política, assegurando que as decisões políticas sejam feitas sob a luz do atual conhecimento científico, se valendo de todos os avanços científicos conquistados em, por exemplo, resoluções de conflitos armados, para o aprimoramento da humanidade como um todo.

Para finalmente responder a sua questão, um dos muitos benefícios que a magia oferece é uma visão de mundo plausível e, acredito eu, racional, onde tanto a ciência quanto a psicologia e todos os demais campos já mencionados podem coexistir conectados novamente a antiga ciência da existência, plena de significado, da qual eles um dia emergiram (Paracelso, praticamente o pai de quase todos os procedimentos modernos da medicina, também foi o primeiro a usar o termo "inconsciente", aproximadamente 400 anos antes da sua subsequente apropriação pela psicologia).

Com a magia, ao menos como nós a definimos, a principal vantagem em termos de relacionamento com o mundo é que ela nos oferece um ponto de vista coerente e sensivelmente integrado para nos relacionarmos com tudo a nossa volta. Da mesma forma, ao contrário de todos os campos e empreendimentos já mencionados, exceto a criatividade artística, a magia é inteiramente centrada nos princípios do êxtase e da transformação, coisas que cremos ser o alicerce das experiências humanas, e que se encontram totalmente deficientes na sociedade contemporânea.

Sam: Você disse um dia que ouviu falar que Einstein mantinha uma cópia de A Doutrina Secreta, de H. P. Blavatsky, aberta em sua escrivaninha. Ele trabalhou de forma bastante imaginativa e já afirmou que alcançou suas teorias primeiramente através da visualização (mental). Por acaso há uma barreira entre a ciência material e a oculta que precisa cair para o benefício da corrente principal da ciência [mainstream science]?

Alan: Einstein nós dá um bom exemplo. Ele afirmava que recebeu a inspiração para o seu trabalho com a relatividade durante uma espécie de sonho lúcido [daydream] onde ele imaginou a si mesmo correndo lado a lado com um faixo de luz. James Watson, que descobriu a molécula do DNA juntamente com Francis Crick, dizia que deduziu a sua estrutura através da lembrança de um sonho com escadas espiraladas.

Sir Isaac Newton foi um alquimista que incluiu o índigo no espectro de cores em acordo com a simpatia alquímica pelo número sete.

Nós poderíamos dizer que quando a ciência e a magia foram primeiramente separadas, cada uma delas perdeu algo vital: a ciência abandonou a sua capacidade de se relatar com qualquer espécie de mundo interior, enquanto a magia de certa forma pareceu haver perdido muito da sua capacidade de discriminação e análise intelectual. Conforme já foi dito, a reintegração dessas áreas divorciadas da cultura humana poderia ser, eu intuo, um imenso ganho para todas as partes envolvidas.

» continua na parte 2

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[1] Este trecho traz diversas possibilidades de tradução, e eu optei provavelmente pela mais poética e arriscada. No original, "magic as a purposeful engagement with the phenomena and possibilities of consciousness", temos o termo "engagement" que pode significar "compromisso", "engajamento", "noivado", e até mesmo "batalha". Portanto, uma tradução mais sóbria desta definição tão essencial para a compreensão do pensamento de Moore seria algo como "magia como um engajamento intencional com o fenômeno e as possibilidades da consciência".

Crédito da foto: Joe Brown (Alan Moore)

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28.11.15

Pirro e o ceticismo

Trechos do artigo de José Francisco Botelho para a revista Vida Simples. Os comentários ao final são meus.

Em Élida, no oeste da Grécia, vivia um pintor de minguados recursos e parcos talentos chamado Pirro. Ganhava a vida fazendo afrescos, mas é de se imaginar que sua clientela fosse pouco exigente: os antigos cronistas garantem que suas pinturas eram perfeitamente esquecíveis. Pirro compreendeu, decerto, que seus dotes pictóricos nada tinham de olímpicos; talvez embalado pela desilusão artística, resolveu tornar-se filósofo.

Foi uma decisão propícia: a nova ocupação levou-o – literalmente – longe. Naquela época, um rapaz baixote e megalomaníaco ocupava o torno da Macedônia, a maior potência militar da Europa. Em 356 a.C., o monarca de 22 anos marchou rumo ao Oriente, com o plano de espalhar seus domínios até os confins do mapa-múndi. Além dessas ambições desmedidas, Alexandre – que, apesar da estatura mínima, foi apelidado de “o Grande” – nutria veleidades literárias e filosóficas. Mesmo nas barracas militares, costumava dormir com um exemplar da Ilíada embaixo do travesseiro; e gostava de alardear que seu professor de retórica e metafísica fora o sublime Aristóteles.

Pois bem: em sua jornada de conquista universal, Alexandre alistou não apenas lanceiros, arqueiros e espadachins, mas também pensadores abstratos. E, dessa forma, o pintor frustrado tornou-se turista global: no séquito de Alexandre, Pirro embrenhou-se pela Pérsia, pela Arábia, pelo Egito; atravessou o árido coração da Ásia, molhou os pés no Ganges e respirou as brisas geladas do Himalaia. Ao longo da travessia, deparou-se com a indomável variedade da espécie humana: conheceu povos que veneravam crocodilos e chacais, outros que adoravam o fogo, outros que conversavam com as estrelas; na Índia, encontrou sábios que viviam no meio da floresta, alimentando-se de folhas secas e vestidos com cascas de árvores.

Do Mar Mediterrâneo às praias do Índico, o ser humano buscava a verdade; mas, em todo o vasto mundo, Pirro não encontrara uma única verdade igual a outra. Convenceu-se de que nada é convincente: de volta a Grécia, passou a pregar uma nova e estranha doutrina, segundo a qual todo conhecimento humano é mera suposição. Já não existe verdade segura, só nos resta esmiuçar o mundo de forma incansável, sem jamais nos determos em conclusões inquestionáveis: da infinita insegurança nasce a incabível curiosidade. Por isso, os seguidores de Pirro ficaram conhecidos como os céticos – do grego sképtomai, que significa “examinar” ou “investigar” [1].

A incerteza, para muita gente, é sinônimo de angústia – mas, para os seguidores de Pirro, ela é uma eficaz terapia. Ao longo da história, dogmas inumeráveis estontearam a humanidade; nós, pobres mortais, vivemos correndo atrás de certezas que sempre se encontram na curva do horizonte. A necessidade de ter razão pode nos tornar desarrazoados: quantas vezes não percebemos que andamos esbravejando sobe coisas que só conhecemos pela metade (ou nem isso) [2]?

Perante essas agruras, a terapia cética é de uma simplicidade implacável: antes de afirmar qualquer coisa, deveríamos admitir que não podemos afirmar tudo. Aceitar os limites do conhecimento humano é uma forma de libertação: quem abraça a eterna dúvida encontra a paz de espírito ou ataraxia, virtude que os antigos valorizavam sobe todas as coisas.

[...] O ceticismo, como tantos vocábulos profundos, perdeu um tanto do sentido original, à força de ser repetido ou mesmo sequestrado: Pirro consideraria dogmáticas muitas pessoas que hoje se declaram céticas. Digamos que alguém pergunte a um Pirro moderno se ele acredita em Deus. À primeira vista, existem duas respostas possíveis: sim ou não. O senso comum diria que a posição cética corresponde à segunda alternativa. Mas, nesse caso, o senso comum está enganado: para um cético clássico, devemos suspender o juízo a respeito de assuntos logicamente insolúveis.

É possível imaginar um universo criado por uma inteligência transcendente, além da compreensão humana; é também possível imaginar um cosmos solitário e materialista, sem outro sentido além do bailado dos átomos. Ou seja: ambas as hipóteses são verossímeis, mas nenhuma delas é verificável. Não podemos bater uma radiografia do universo e constatar a presença ou ausência de Deus, como quem identifica um órgão ou uma cartilagem; logo, tanto o sim quanto o não correspondem a um salto de fé.

O ateísmo, nos olhos pirrônicos, é apenas uma crença, igual às outras. Pirro, aliás, tornou-se sacerdote da antiga religião grega, após seu retorno a Élida; e George Berkeley, um dos nomes mais célebres do ceticismo moderno, era bispo da Igreja Anglicana.

Mas não precisamos nos alçar a enigmas metafísicos para testas a terapia pirrônica. Mesmo que deixemos o sentido do cosmos à escolha de cada um, veremos que o método tem efeitos salutares quando aplicado às coisas do dia a dia. Os céticos da Antiguidade colocavam em dúvida até mesmo o testemunho dos sentidos; alguns questionavam o brilho do Sol, a doçura do mel, ou a vermelhidão das coisas vermelhas [3] – mas não precisamos ir tão longe. Será suficientemente cético quem se ativer a esta máxima: somos criaturas finitas, enquanto a verdade é infinitamente complexa – e o universo talvez não caiba em uma casca de noz.

Isso não implica renunciar a toda a opinião – podemos deixar a suspensão total do juízo ao velho Pirro, em suas divagações. [...] Para nós, basta recordar que toda perspectiva humana é parcial. A visão completa das coisas só pertence aos deuses – e, bem, eles costumam guardar seus segredos com muito afinco.

Os antigos cartógrafos tinham o hábito de escrever, nas bordas dos mapas marítimos, o lema latino nec plus ultra – “daqui não passarás”. O objetivo era assustar os navegantes audazes – e lembrá-los de que toda viagem tem de chegar ao fim. O dogmatismo também anda, sempre, a rabiscar términos e limites na geografia da mente; com regra e esquadro, ele insiste em tascar pontos-finais à aventura do pensamento.

Nessas horas, um gole do antídoto pirrônico vem a calhar. Pois ele nos devolve a medida certa de modéstia e ousadia: não sabemos tudo; e, por isso mesmo, temos de acreditar que a busca continua. Sejamos então como Alexandre, que não quis se deter na Babilônia, nem em Persépolis, nem nos desertos do Afeganistão; seguiu marchando enquanto pôde e, ao olhar as estrelas, exclamava com sonhadora melancolia: “Há muitos mundos lá em cima; e não poderei conquistar nem mesmo este mundinho nosso, aqui embaixo”.

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[1] O ceticismo original nasceu, com Pirro, de uma constatação tão simples quanto profunda e humilde: a de que nenhum ser humano detém a verdade absoluta. Há uma parábola sufi que diz que Deus carregava um espelho e esse espelho era chamado “Verdade”. Um dia, ele deixou cair, e seu vidro se quebrou em inúmeros pedacinhos. Cada pessoa que descobriu um desses pedacinhos acreditou que havia descoberto toda a verdade, e foram raras as que chegaram à conclusão de que a verdade absoluta não pode nunca ser a propriedade de uma só pessoa, de uma só doutrina ou filosofia. É isto precisamente o ceticismo de Pirro: não uma negação da verdade, mas um reconhecimento de que ela só pode ser encontrada em parte, e somente por aqueles que não desistiram de continuar investigando.

[2] Infelizmente é muito comum encontrarmos entre os que se satisfazem com dogmas e certezas absolutas gente que não está aqui em busca de uma verdade para satisfazer as suas dúvidas internas, mas antes para expô-la aos demais, por vezes de forma grosseira e violenta, numa necessidade quase que insaciável de “ter razão”. Ironicamente, tais pessoas são as que se encontram, quase sempre, mais distantes da razão.

[3] O ceticismo moderno está, talvez irremediavelmente, contaminado pelo positivismo da Academia. O que isto quer dizer, basicamente, é que hoje é muito comum crermos que nossas dúvidas só podem ser solucionadas por comprovações objetivas, muitas vezes em um laboratório, e acompanhadas por calhamaços de estudos científicos e/ou estatísticas. Isto é bom, por exemplo, para o desenvolvimento da tecnologia; mas é muito ruim para o desenvolvimento do ser humano. Os céticos antigos questionavam tudo, é verdade, mas também aceitavam as comprovações subjetivas de suas próprias experiências pessoais, ainda que não pudessem, com isso, “evangelizar” suas comprovações adiante. Ocorre que Pirro e seus seguidores não perdiam seu tempo tentando convencer os outros de nada – nem do que existe, nem do que não existe.

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Crédito da imagem: Google Image Search

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8.10.15

A ciência e os seus dogmas

Trechos de Ciência sem Dogmas, de Rupert Sheldrake (editora Cultrix). Tradução de Mirtes Pinheiro. Os comentários ao final são meus.


Há mais de duzentos anos, os materialistas prometeram que a ciência explicaria tudo sob a ótica da física e da química. A ciência provaria que os organismos vivos são máquinas complexas, que a mente nada mais é do que atividade cerebral e que a natureza é desprovida de propósito. As pessoas apoiam-se na fé de que as descobertas científicas justificarão suas crenças.

Karl Popper, filósofo da ciência, chamava essa postura de “materialismo promissório”, pois depende de notas promissórias por descobertas que ainda não foram feitas. Apesar de todas as conquistas da ciência e da tecnologia, atualmente o materialismo está enfrentando uma crise de credibilidade que seria inimaginável no século XX.

[...] A preposição fundamental do materialismo é de que a matéria é a única realidade. Portanto, a consciência nada mais é do que atividade cerebral. É como uma sombra, um “epifenômeno”, que não faz nada, ou apenas outra maneira de falar sobre atividade cerebral. No entanto, os pesquisadores de neurociência e estudos da consciência não chegaram a um consenso sobre a natureza da mente.

Revistas respeitadas como Behavioural and Brain Science e Journal of Counsciousness Studies publicam muitos artigos que revelam problemas profundos na doutrina materialista. O filósofo David Chalmers chamou a própria existência da experiência subjetiva de “problema difícil [da consciência]”. Difícil porque desafia uma explicação em termos de mecanismos. Mesmo que compreendamos como os olhos e o cérebro reagem ao farol vermelho, a experiência de [interpretar o] vermelho não é levada em consideração.

Na biologia e na psicologia, o grau de credibilidade do materialismo está em queda. Será que a física pode vir em seu socorro? Alguns materialistas preferem denominar-se fisicalistas, para enfatizar que suas esperanças dependem da física moderna, e não de teorias sobre a matéria do século XIX. Mas o grau de credibilidade do fisicalismo foi reduzido pela própria física, por quatro razões.

Em primeiro lugar, alguns físicos insistem em afirmar que a mecânica quântica não pode ser formulada sem levar em consideração a mente dos observadores. Eles alegam que a mente não pode ser reduzida à física, porque [a] física [também] pressupõe a mente dos físicos.

Em segundo lugar, as mais ambiciosas teorias unificadas da realidade física, a teoria das cordas e a teoria M, com dez e onze dimensões, respectivamente, levam a ciência para um território totalmente novo.

[...] Em terceiro lugar, desde o início do século XXI, ficou claro que os tipos conhecidos de matéria e energia representam apenas cerca de 4% do universo. O restante consiste em “matéria escura” e “energia escura”. A natureza de 96% da realidade física é literalmente obscura.

Em quarto lugar, o Princípio Antrópico Cosmológico afirma que, se as leis e constantes da natureza tivessem sido ligeiramente diferentes no momento do Big Bang, jamais poderia ter surgido vida biológica e, portanto, não estaríamos aqui para pensar sobre isso. Então, será que uma mente divina ajustou as leis e as constantes no início?

Para evitar que um Deus criador surgisse numa nova forma, quase todos os principais cosmólogos  preferem acreditar que o nosso universo é apenas um entre um vasto, talvez infinito, número de universos paralelos, todos com diferentes leis e constantes, como também sugere a teoria M. Acontece que simplesmente existimos no universo que tem as condições certas para nós.

A teoria do multiverso é a suprema violação da navalha de Occam, princípio filosófico segundo o qual “as entidades não devem ser multiplicadas além do necessário”, ou, em outras palavras, devemos fazer o menor número possível de pressuposições. Essa teoria também tem a desvantagem de não poder ser testada, tampouco consegue se livrar de Deus. Um Deus infinito poderia ser o Deus de um número infinito de universos.

O materialismo apresentou uma visão de mundo aparentemente simples e direta no final do século XIX, mas que a ciência do século XXI deixou para trás. Suas promessas não foram cumpridas e suas notas promissórias foram desvalorizadas pela hiperinflação.

Estou convencido de que a ciência está sendo restringida por pressuposições que se enrijeceram em dogmas, mantidos por fortes tabus. Essas crenças protegem a cidadela da ciência tradicional, mas age como uma barreira ao pensamento aberto.


Comentários
Quando um cientista “desafia a visão dogmática” da Academia, logo surgem os seus detratores. O que eles costumam afirmar é que “não se trata de um cientista relevante”, ou ainda levantar a questão, “mas qual foi a contribuição dele para a ciência”?

Como se fosse necessário que alguém fizesse uma grande contribuição científica, ou tivesse artigos publicados em revistas de renome, como a Nature, para poder criticar a ortodoxia da Academia...

De qualquer forma, no caso específico deste cientista, ambas as “exigências” acima foram cumpridas. Rupert Sheldrake é um biólogo e bioquímico inglês de renome, que além de ter publicado mais de oitenta artigos científicos e uma dezena livros, já foi o convidado de diversos programas de divulgação científica de grande audiência na TV, como por exemplo o Grandes Mistérios do Universo, apresentado por Morgan Freeman (no Brasil, passa no Discovery Science, na TV a cabo).

Entre as suas importantes contribuições científicas, se destacam a descoberta do mecanismo de transporte da auxina em vegetais, assim como o auxílio no detalhamento da “morte celular programada”, que se tornou um campo de pesquisa vital no estudo de doenças como o câncer e a Aids, bem como da regeneração de tecidos pelas células-tronco. Na Índia, ainda participou no desenvolvimento de técnicas de cultivo em clima semi-árido, hoje amplamente usadas em todo o mundo.

Ou seja, este livro incomoda, pois não se trata do pensamento de um cientista “de pouco renome”. Viva-se com esse barulho.

O objetivo de Sheldrake, no entanto, não é substituir o dogma materialista por algum antigo dogma espiritualista. Ele quer somente romper a represa dogmática que tem restringido enormemente o atual pensamento científico, particularmente dos cientistas que, exatamente por terem obtido relativo sucesso em suas carreiras, ficam cada vez mais preocupados com “o que vão pensar lá na Academia” a toda a vez que falam sobre assuntos científicos heterodoxos.

O biólogo inglês é, sobretudo, um grande crítico da ideia de um “relojoeiro cego”, uma metáfora alçada à fama por Richard Dawkins para explicar como um universo complexo pode ter surgido do “acaso cego”. Ora, o que Sheldrake combate não é propriamente a ideia de “cegueira”, mas o conceito de que o universo é como um “relógio”, ou “alguma espécie de máquina que está lentamente perdendo o vapor”.

Não, segundo ele, o universo se parece muito mais com um organismo vivo, assim como todos os seres vivos dentro dele. Ao longo desse livro extraordinário o que ele tenta nos explicar é que, no final das contas, o materialismo em sua visão mecanicista sequer consegue encontrar as metáforas adequadas para explicar o que quer dizer – em suma, que não somos consciências que interpretam o mundo, mas tão somente máquinas que computam e guardam informações.

Afinal de contas, nenhum gene pode ser realmente “egoísta” nem muito menos “aspirar a imortalidade”, e ainda que o universo inteiro operasse efetivamente como um relógio, tudo o que um relógio pode fazer é apontar para algo muito maior e mais transcendente. O tempo não pode ser reduzido às engrenagens de um relógio, assim como a consciência e a subjetividade ultrapassam em muito a tentativa de explicar o que são utilizando somente 4% do que existe.

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Crédito da imagem: Harfian Herdi

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30.9.15

Nós somos o chão; nós somos as estrelas

Geralmente não fazemos isso por aqui, mas este artigo recém publicado do excelente Alexandre Versignassi (redator-chefe da Superinteressante) é tão bom que sentimos que ele merecia ficar guardado aqui com a gente também... O título original é Muito além de Marte


Um bebê recém-nascido não sabe que é um indivíduo. Acha que ele e a mãe formam uma entidade única. Talvez ache até que ele, a mãe e o mundo sejam uma coisa só.

Mas antes de seguir com esse raciocínio, queria passar a palavra para alguém mais qualificado que eu, o Richard Dawkins. “Vamos imaginar que o surgimento de vida em algum planeta seja algo estupidamente improvável”, ele me disse numa entrevista recente. “Mais improvável até do que você tirar uma quadra de ases num jogo de cartas, e todo mundo na mesa também sair com quadras. Mas sabe de uma coisa? Mesmo se a vida for algo tão difícil de acontecer, ainda assim ela seria abundante no Universo”.

Dawkins, professor emérito de biologia em Oxford e reformulador do darwinismo, entende de vida. Mas nem ele nem ninguém tem como dizer se o fenômeno é corriqueiro no Cosmos ou se não, se trata-se de algo raríssimo, que só aconteceu na Terra, ou, dando uma chance ao acaso, que só apareceu em um a cada um bilhão de planetas Cosmos afora.

Um em um bilhão parece pouco. Só que é menos ainda. A probabilidade de você morrer atingido por um raio é de uma em 2 milhões. A de ganhar na Mega-Sena, uma em 50 milhões. Em outras palavras, uma chance em um bilhão é basicamente sinônimo de “impossível”.

Mas isso aqui na Terra. Porque no céu a história é outra. É que, se um em um bilhão é algo menor do que parece, o espaço sideral é maior. Bem maior do que parece. As estimativas mais humildes indicam que existem 10 trilhões de bilhões de estrelas no Universo observável (ou 1022 , o número 1 seguido de 22 zeros, caso você prefira uma notação mais científica). Um mundo assim, com 10.000.000.000.000.000.000.000 de sóis, destrói qualquer estatística. Assim: se a vida surgiu em um único planeta por sistema solar (como parece ter sido o caso neste sistema solar aqui), e só um em cada bilhão de sistemas solares teve essa sorte, existiriam dez trilhões de planetas com vida.

Mais: se entre esses supostos planetas com vida só um em um milhão abrigar seres inteligentes, teríamos dez milhões de civilizações sobre as nossas cabeças. Como o Dawkins mesmo disse naquela entrevista: “Nossos cérebros não sabem lidar com grandezas na ordem de bilhões e bilhões”.

Mas tem outra coisa com a qual o nosso cérebro não sabe lidar: o próprio conceito de “vida”. Por instinto, nós teimamos em achar que somos entidades à parte no Universo. Que nós estamos aqui, e o Universo está “lá fora”. E aí que a gente volta aos bebês do primeiro parágrafo. Nos primeiros meses de vida, passamos a entender que somos indivíduos, entidades únicas, apartadas das nossas mães, e do mundo, e do Universo.

Ilusão. Os átomos que formam o seu corpo sempre estiveram aqui na Terra. E vão continuar por aqui, independentemente do que você faça com eles até o dia que o seu coração parar de bater. O autor do Gênesis traduziu bem essa ideia, na cena em que Deus diz a Adão que ele terá de trabalhar pesado, e suar para que a terra produza algum alimento “até que você, Adão, volte para a terra, pois do pó você foi feito, e em pó irá se transformar” (Gen. 3:19). Três mil anos depois, o astrônomo britânico Martin Rees refinou o raciocínio. Diante da descoberta de que todos os átomos mais complexos que o hidrogênio e o hélio foram forjados no interior de estrelas, ele escreveu que “somos todos, literalmente, cinzas de estrelas mortas há muito tempo”.

Logo, nós somos o chão. Nós somos as estrelas. Somos o espaço e o tempo. E a vida consciente talvez seja o Universo se olhando no espelho, e descobrindo que ele próprio é um indivíduo.

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» Acompanhe Crash, o blog de Alexandre Versignassi

Crédito da imagem: 2001 - Uma Odisseia no Espaço/Divulgação

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24.9.15

Veja o amor (Life & Death)

Como alguns devem saber, sou um amante dos poemas de Rumi, e já traduzi diversos deles. Abaixo, segue uma nova tradução, que surgiu através da sugestão de uma leitora [1]:


[Veja o amor]

Veja o amor...
Veja como se entrelaça
com aquele caído em sua rede.

Veja o espírito...
Veja como se funde a terra
trazendo a nova vida.

Ora, por que você está tão ocupado
com isto, ou aquilo,
com o que foi bom ou ruim?
Presta atenção em como as coisas se misturam,
em como tudo se harmoniza.

Por que discutir sobre tudo,
o que é conhecido, e o que não é?
Veja como o conhecido se mescla
ao desconhecido.

Por que imaginar esta vida e a próxima
como algo separado,
quando uma nasce da outra?

Veja seu coração e sua língua...
Uma percebe tudo como surda muda,
o outro se comunica em símbolos e sinais.

Veja a água e o fogo,
a terra e o vento,
veja amigos e inimigos,
todos de uma só vez.

O lobo e o cordeiro,
o leão e o cervo,
vagando distantes pela terra
e, ainda assim, juntos.

Veja a unidade de tudo isso:
A primavera e o inverno
manifestos no mesmo equinócio.

Vocês também devem se misturar, meus amigos,
pois a terra e o céu
estão mesclados
somente para que nós possamos viver.

Seja como a cana de açúcar,
doce e silenciosa,
não se deixe misturar
às palavras amargas.

O meu Amado cresce
em meu próprio coração...
Há união maior que essa?


Jalal ud-Din Rumi (tradução de Rafael Arrais, a partir da versão inglesa de Nader Khalili)

***

Obs.: Este poema também é conhecido pelo título Life & Death (Vida e Morte), e ficou famoso por ter alguns trechos citados no filme Drácula: A história nunca contada.

[1] Veja também o livro Rumi – A dança da alma, com minhas traduções e comentários de alguns dos mais belos poemas de Rumi.

Crédito da imagem: David Uzochukwu

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15.7.15

A sabedoria do silêncio interno

Este é um texto de autoria anônima, atribuído ao taoísmo, que se tornou célebre pela web. Os comentários ao final são meus.


Pense no que vai dizer antes de abrir a boca. Seja breve e preciso, já que cada vez que deixa sair uma palavra, deixa sair uma parte da sua energia vital (chi). Assim, aprenderá a desenvolver a arte de falar sem perder energia.

Nunca faça promessas que não possa cumprir. Não se queixe, nem utilize palavras que projetem imagens negativas, porque se reproduzirá ao seu redor tudo o que tenha fabricado com as suas palavras carregadas de chi.

Se não tem nada de bom, verdadeiro e útil a dizer, é melhor não dizer nada. Aprenda a ser como um espelho: observe e reflita a energia. O universo é o melhor exemplo de um espelho que a natureza nos deu, porque aceita, sem condições, os nossos pensamentos, emoções, palavras e ações, e envia-nos o reflexo da nossa própria energia através das diferentes circunstâncias que se apresentam nas nossas vidas.

Se se identifica com o êxito, terá êxito. Se se identifica com o fracasso, terá fracasso. Assim, podemos observar que as circunstâncias que vivemos são simplesmente manifestações externas do conteúdo da nossa conversa interna. Aprenda a ser como o universo, escutando e refletindo a energia sem emoções densas e sem preconceitos.

Porque, sendo como um espelho, com o poder mental tranquilo e em silêncio, sem lhe dar oportunidade de se impor com as suas opiniões pessoais, e evitando reações emocionais excessivas, terá a oportunidade de uma comunicação sincera e fluida.

Não se dê demasiada importância, e seja humilde, pois quanto mais se mostra superior, inteligente e prepotente, mais se torna prisioneiro da sua própria imagem e vive num mundo de tensão e ilusões. Seja discreto, preserve a sua vida íntima. Desta forma irá se libertar da opinião dos outros e terá uma vida tranquila e benevolente, invisível, misteriosa, indefinível, insondável como o Tao.

Não entre em competição com os demais, a terra que nos nutre já nos dá o necessário. Ajude o próximo a perceber as suas próprias virtudes e qualidades, a brilhar. O espírito competitivo faz com que o ego cresça e, inevitavelmente, crie conflitos. Tenha confiança em si mesmo. Preserve a sua paz interior, evitando entrar na provação e nas trapaças dos outros. Não se comprometa facilmente, agindo de maneira precipitada, sem ter consciência profunda da situação.

Tenha um momento de silêncio interno para considerar tudo que se apresenta e só então tome uma decisão. Assim desenvolverá a confiança em si mesmo e a sabedoria. Se realmente há algo que não sabe, ou para que não tenha resposta, aceite o fato. Não saber é muito incômodo para o ego, porque ele gosta de saber tudo, ter sempre razão e dar a sua opinião muito pessoal. Mas, na realidade, o ego nada sabe, simplesmente faz acreditar que sabe.

Evite julgar ou criticar. O Tao é imparcial nos seus juízos: não critica ninguém, tem uma compaixão infinita e não conhece a dualidade. Cada vez que julga alguém, a única coisa que faz é expressar a sua opinião pessoal, e isso é uma perda de energia, é puro ruído. Julgar é uma maneira de esconder as nossas próprias fraquezas.

O sábio tolera tudo sem dizer uma palavra. Tudo o que o incomoda nos outros é uma projeção do que não venceu em si mesmo. Deixe que cada um resolva os seus problemas e concentre a sua energia na sua própria vida. Ocupe-se de si mesmo, não se defenda. Quando tenta se defender, está a dar demasiada importância às palavras dos outros, a dar mais força à agressão deles.

Se aceita não se defender, mostra que as opiniões dos demais não o afetam, que são simplesmente opiniões, e que não necessita convencê-los de nada para ser feliz. O seu silêncio interno o torna impassível. Faça uso regular do silêncio para educar o seu ego, que tem o mau costume de falar o tempo todo.

Pratique a arte de não falar. Tome algumas horas para se abster de falar. Este é um exercício excelente para conhecer e aprender o universo do Tao ilimitado, em vez de tentar explicar o que é o Tao. Progressivamente desenvolverá a arte de falar sem falar, e a sua verdadeira natureza interna substituirá a sua personalidade artificial, deixando aparecer a luz do seu coração e o poder da sabedoria do silêncio.

Graças a essa força, atrairá para si tudo o que necessita para a sua própria realização e completa libertação. Porém, tem que ter cuidado para que o ego não se infiltre… O poder permanece quando o ego se mantém tranquilo e em silêncio. Se o ego se impõe e abusa desse poder, este irá se converter num veneno, que o levará rapidamente a ruína.

Fique em silêncio, cultive o seu próprio poder interno. Respeite a vida de tudo o que existe no mundo. Não force, manipule ou controle o próximo. Converta-se no seu próprio mestre e deixe os demais serem o que têm a capacidade de ser. Por outras palavras, viva seguindo a via sagrada do Tao.


Comentários
A primeira coisa que me lembro de haver me perguntado quando achei o Tao Te Ching numa livraria há muitos anos atrás foi algo como, “O que diabos é o Tao?”. Ora, acredito que qualquer um que cruze com o taoísmo pela primeira vez, principalmente no Ocidente, tenha a mesma dúvida.
Deste lado do mundo aprendemos a ser demasiado racionais, precisamos separar tudo em categorias, embrulhar e guardar em pequenas caixas, enfim, precisamos saber o que é alguma coisa antes sequer de decidirmos se vamos dedicar alguns minutos de nosso precioso tempo a ela.
Pior, então, é quando cremos que realmente sabemos o que são as coisas em profundidade. Daí, muitas vezes, cremos que este saber por si só nos torna superior aos demais, e que não temos praticamente nada a aprender com “os que nada sabem”.
Repare como tudo isso ocorre sob o ponto de vista do ego. Este nosso lado ignorante, e por isso mesmo tão necessário, que acredita ser algo a parte do todo, da natureza, do universo, dos seres. Neste caso, o Tao é como um guia para os andarilhos, ele aponta uma direção para que possamos caminhar e assim, nessa longa caminhada, irmos lentamente, passo a passo, domesticando nosso ego, até que ele se torne um animal sob nosso controle, e não como era anteriormente, um cão raivoso que ladra para todos os desconhecidos, julgando a tudo e a todos...
Ocorre que, para o Tao, nada é inteiramente conhecido, tampouco desconhecido. O Tao apenas é.

Rafael Arrais é um cara que escreve um blog, e que também já traduziu o Tao Te Ching da versão clássica inglesa de James Legge para o nosso bom português.

***

Veja também:
» Os significados ocultos no Yin-Yang
» Deus no Taoismo

Crédito da imagem: H. Koppdelaney

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