Pular para conteúdo
19.10.16

As cartas de Rilke

Introdução
Para um poeta que dedicou boa parte da vida a escrita, Rainer Maria Rilke nos deixou uma obra poética relativamente curta. Apesar de haver capturado a imaginação de músicos, filósofos, artistas, escritores, e até mesmo de membros das castas mais nobres de sua época, ao ponto de ser considerado o maior poeta da língua alemã do século XX, tudo levava a crer que, tal qual Fernando Pessoa, Rilke deixou vasta obra por publicar após sua morte. Foi isso que Ulrich Baer, especialista em sua obra, foi investigar – e desta investigação surgiram milhares de cartas que Rilke trocou durante toda a vida com correspondentes de toda a parte da Europa, e até mesmo fora dela. A seleção das melhores passagens destas cartas, traduzida do alemão por Milton Camargo Mota, é o que compõe o excelente e intrigante Cartas do poeta sobre a vida, da Marins Fontes, livro do qual trago alguns trechos abaixo:

Não pense que quem procura consolá-lo vive sem esforço em meio às palavras simples e serenas que às vezes confortam você. A vida dele tem muita tribulação e tristeza e permanece muito aquém da sua. Mas, se fosse diferente, ele jamais poderia ter encontrado tais palavras...

Da vida
Nós, seres do aqui e agora, não estamos satisfeitos por um só momento no mundo do tempo, nem presos a ele; nós sempre vamos além e além, até os de outrora, até nossa origem e àqueles que parecem vir depois de nós. Nesse mundo “aberto” ao máximo, não se pode dizer que todos são “contemporâneos”, pois juto a revogação do tempo acarreta que todos são. A transitoriedade cai em toda parte num profundo ser.

E, assim, todas as formas do aqui não devem ser usadas apenas dentro de limites temporais, mas, tanto quanto possível, devem ser postas naqueles significados superiores de que participamos. Mas não no sentido cristão; ao contrário, numa consciência puramente terrena, profundamente terrena, jubilosamente terrena, é nossa tarefa introduzir o [que foi] visto e tocado aqui no círculo mais vasto, o mais vasto de todos. Não em um além, cuja sombra escurece a Terra, mas em um todo, no Todo.

A natureza e as coisas de nosso entorno e uso são preliminares e transitórias, mas são, enquanto estamos aqui, nossa posse e nossa amizade, cúmplices de nosso sofrimento e alegria, tal como elas já foram os confidentes de nossos antepassados. É essencial, portanto, não apenas não caluniar e rebaixar as coisas do aqui, mas também pelo caráter provisório que elas compartilham conosco, compreender e transformar esses fenômenos e coisas com o mais íntimo entendimento.

Transformar? Sim, pois é nossa tarefa gravar em nós essa terra provisória, efêmera, de forma tão profunda, tão sofrida e tão apaixonada que sua essência de novo ressuscita “invisível” dentro de nós. Somos as abelhas do invisível. Apaixonados colhemos o mel do visível, para acumulá-lo no grande favo de ouro do Invisível.

Da convivência
Sou da opinião de que o “casamento” como tal não merece tanta ênfase quanto acumulou pelo desenvolvimento convencional de sua natureza. A ninguém ocorre a ideia de exigir de um indivíduo que seja “feliz” – mas, quando alguém se casa, todos ficam muito espantados por ele não ser feliz! (E, além do mais, não é nem um pouco importante ser feliz, seja como solteiro ou casado). Em vários aspectos, o casamento é uma simplificação das condições de vida, e a união decerto soma as forças e vontades de dois jovens, de modo que, em conjunto, eles parecem alcançar mais longe no futuro do que antes. Só que isso são meras impressões, das quais não se pode viver.

Antes de tudo, o casamento é uma nova tarefa e uma nova seriedade – uma nova demanda e um desafio à força e à bondade de cada participante, e um novo grande perigo para ambos. Pelo que sinto, não se trata de no casamento criar uma rápida união pela demolição de todas as fronteiras. Ao contrário, o bom casamento é aquele em que um designa o outro como guardião de sua solidão e lhe demonstra a maior confiança que ele tem a conceder.

Uma vida conjunta de duas pessoas é uma impossibilidade e, quando ela todavia parece existir, é uma limitação, um acordo mútuo, que priva uma parte ou ambas de sua mais plena liberdade e desenvolvimento. Mas, contanto que se reconheça que mesmo entre as pessoas mais próximas subsistem distâncias infinitas, pode se estabelecer entre elas uma coabitação maravilhosa, tão logo consigam amar a vastidão entre elas que lhes dá a possibilidade de se verem um ao outro em sua forma total e diante de um céu imenso!

Por tal motivo, isto também deve servir como critério para a rejeição ou a escolha: a possibilidade de desejar velar pela solidão de outra pessoa e de estar inclinado a colocar essa mesma pessoa nos portões de nossa própria profundidade, da qual ela só tomará conhecimento graças àquilo que emerge da grande escuridão, festivamente trajado.

Do trabalho (ou missão)
Antes que tivessem conhecimento autêntico do trabalho, as pessoas inventaram a distração como um desprendimento e um oposto do falso trabalho. Ah, se tivessem esperado, se tivessem tido um pouco mais de paciência, então o verdadeiro trabalho teria estado um pouco mais ao seu alcance, e elas teriam percebido que o trabalho não pode ter um oposto, assim como o mundo não pode ter, nem deus, nem viva alma. Pois ele é tudo, e o que ele não é – é nada e lugar nenhum.

Da infância
A infância – o que ela realmente foi? O que foi ela, a infância? Não se pode indagar sobre ela senão com essa atônita pergunta – o que foi ela? Aquele arder, aquele espantar-se, aquele contínuo não-poder-fazer-de-outro-modo, aquele doce, profundo, irradiante sentir-as-lágrimas-aflorarem? O que foi isso?

A maioria das pessoas absolutamente não sabe como o mundo é belo e quanto esplendor se revela nas menores coisas, em alguma flor, uma pedra, uma casca de árvore ou uma folha de bétula. Os adultos, que têm negócios e preocupações e se atormentam com puras mesquinharias, aos poucos perdem totalmente o olhar para essas riquezas, que as crianças, se boas e atentas, logo notam e amam de todo o coração. E, contudo, seria a coisa mais sublime se quanto a isso todo mundo permanecesse sempre como crianças boas e atentas, ingênuas e pias no sentimento, e não perdesse a capacidade de se alegrar de modo tão intenso com uma folha de bétula ou uma pena de pavão ou a asa gralha-cinzenta como com uma cordilheira ou um palácio suntuoso.

O pequeno não é pequeno, tal como o grande não é grande. Uma beleza grande e eterna atravessa o mundo todo e se distribui de modo justo sobre as coisas pequenas e grandes, pois, no que é importante e essencial, não há injustiça em lugar algum sobre a Terra.

Da escola
Todo saber que a escola precisa oferecer deve ser dado com afeto e generosidade, sem restrição e reservas, sem intenção e por um indivíduo apaixonado. Nela, todas as disciplinas deveriam tratar da vida, como o único tema que está por trás de todos os outros. Então, todas elas, em seus limites mais externos, nunca cessariam de tocar os grandes contextos que geram religião inesgotavelmente.

Das profundezas de nosso interior
De fato é assim: cada um, nas profundezas de seu interior, é como uma igreja, e as paredes estão adornadas com solenes afrescos. Na primeira infância, em que o esplendor ainda está exposto, é muito escuro lá dentro para se ver as imagens, e, quando o salão aos poucos vai ganhando luz, vêm as loucuras adolescentes, os falsos anseios e a vergonha sedenta e cobrem de cal parede após parede. E algumas pessoas avançam longe vida adentro e a atravessam sem suspeitar do antigo esplendor sob a sóbria pobreza.

Mas bem-aventurado aquele que o sente, encontra-o e secretamente o desvela. Ele se dá um presente. E volta ao lar de si mesmo.

Da arte
Arte significa não saber que o mundo já é, e fazer um. Não destruir nada que se encontra, mas simplesmente não achar nada pronto. Nada mais que possibilidades. Nada mais que desejos. E, de repente, ser realização, ser verão, ter sol. Sem que se fale disso, involuntariamente. Nunca ter terminado. Nunca ter o sétimo dia. Nunca ver que tudo é bom.

Insatisfação é juventude.

***

Crédito da foto: Google Image Search/Leonid Pasternak (o poeta)

Marcadores: , , , , , , ,

2 comentários:

Blogger Unknown disse...

Boa tarde Rafael.
Gostaria de saber se você dá o curso de hipnose e se sim como faço para aprender está excelente ferramenta para que eu possa também introduzir nos trabalhos espirituais.
Marcos

19/10/16 18:04  
Blogger raph disse...

Olá Marcos, eu não entendo nada de hipnose, talvez o pessoal do EAdeptus tenha alguma coisa sobre o assunto... Abs!

19/10/16 18:35  

Postar um comentário

Toda reflexão é bem-vinda:

‹ Voltar a Home