Deixaram somente palavras
Texto por Roberto Calasso em O Ardor (Cia. das Letras). Tradução de Federico Carotti. Os comentários ao final são meus.
Eram seres remotos, não só dos modernos, mas de seus contemporâneos antigos. Distantes não como outra cultura, mas como outro corpo celeste. Tão distante que o ponto de onde são observados torna-se quase indiferente. Que isso ocorra hoje ou cem anos atrás, nada de especial muda. Para quem nasceu na Índia, algumas palavras, alguns gestos, alguns objetos podem soar mais familiares, como um irreprimível atavismo. Mas são contornos engraçados de um sonho cujo desenrolar se ofuscou.
Incertos os locais e os tempos em que viveram. Os tempos: mais de três mil anos atrás, mas as variações cronológicas, entre um estudioso e outro, são consideráveis. A área: o norte do subcontinente indiano, mas sem fronteiras precisas. Não deixaram objetos nem imagens. Deixaram somente palavras. Versos e fórmulas que marcavam rituais. No centro deles aparecia uma planta inebriante, o soma, que até hoje não foi identificada com precisão. Já naquela época falavam dela como uma coisa do passado. Ao que parece, não conseguiram mais encontrá-la.
A Índia védica não teve uma Semíramis nem uma Nefertiti, tampouco um Hamurabi ou um Ramsés II. Nenhum DeMille conseguiu encená-la. Foi uma civilização em que o invisível prevalecia sobre o visível. Esteve, como poucas outras, exposta à incompreensão. Para entendê-la, é inútil recorrer aos fatos, que não deixaram traços. Permanecem apenas os textos: o Veda, o Saber. Composto de hinos, invocações, esconjuros, em versos. De fórmulas e prescrições rituais, em prosa. Os versos vêm inseridos em determinados momentos de ações rituais muito complexas. Eles vão desde a dupla libação, agnihotra, que o chefe da família deve realizar sozinho, todos os duas, por quase toda a vida, até o sacrifício mais importante – o “sacrifício do cavalo”, asvamedha –, que envolve a participação de centenas e centenas de homens e animais.
Os Arya (“os nobres”, como os homens védicos chamavam a si mesmos) ignoravam a história com uma insolência que não encontra igual nos anais das outras grandes civilizações. Conhecemos os nomes de seus reis apenas por alusões no Rigveda e por episódios narrados nos Brahmana e nas Upanisad. Não se preocuparam em deixar memória de suas conquistas. E, mesmo nos episódios de que chegaram notícias, não se trata tanto de ações – bélicas ou administrativas –, mas de conhecimento.
Quando falavam em “atos”, pensavam principalmente em atos rituais. Não surpreende que não tenham fundado – nem sequer tenham tentado fundar – um império. Prefeririam pensar sobre qual é a essência da soberania. Eles a encontraram em sua duplicidade, em sua divisão entre brâmanes e xátrias, entre sacerdotes e guerreiros, auctoritas e potestas. São duas chaves, sem as quais nada se abre, sobre nada se reina. Toda a história pode ser considerada sob o ângulo de suas relações, que incessantemente mudam, se ajudam, se ocultam – nas águias bicéfalas, nas chaves de São Pedro. Há sempre uma tensão que oscila entre a harmonia e o conflito mortal. Sobre essa diarquia e suas infindáveis consequências, a civilização védica concentrou-se com a mais alta e sutil clarividência.
[...] Não havia templos, nem santuários, nem muralhas. Havia reis sem reinos de fronteiras traçadas e seguras. Moviam-se periodicamente em carroças com rodas dotadas de raios. Essas rodas foram a grande novidade que criaram: antes delas, nos reinos de Harappa e Mohenjo-daro, apenas as rodas compactas, maciças e lentas eram conhecidas. Assim que paravam, tratavam principalmente de preparar e acender fogueiras. Três fogueiras, uma circular, uma quadrara de uma em forma de meia-lua. Sabiam cozer tijolos, mas os usavam somente para construir o altar que ocupava o centro de um de seus rituais. Tinha o formato de um pássaro – um falcão ou uma águia – de asas abertas. Chamavam-no “o altar do fogo”.
Passavam a maior parte do tempo numa clareira aberta, em leve declive, onde se concentravam ao redor dos fogos murmurando fórmulas a cantando fragmentos de hinos. Era uma ordem de vida impenetrável, a não ser após longo aprendizado. Imagens pululavam em suas mentes. Talvez, também por isso, não se interessavam em entalhar ou esculpir figuras dos deuses. Como se, já estando cercados por elas, não sentissem necessidade de acrescentar outras.
Quando os homens do Veda desceram ao Saptasindhu, à Terra dos Sete Rios e depois à planície do Ganges, grande parte do território era coberta por florestas. Abriram caminho com o fogo, que era um deus: Agni. Deixaram que ele traçasse uma teia de cicatrizes. Viviam em aldeias provisórias, em cabanas sobre estacas, com paredes de junco e teto de palha. Seguiam os rebanhos, deslocando-se sempre para o leste, às vezes parando diante de imensas extensões de água. Foi essa a época áurea dos ritualistas.
Comentários
É assim que se inicia a monumental obra de Roberto Calasso, um intelectual de Florença, na Itália, que além de conhecer diversas línguas e países, é também um estudioso profundo de sua história, literatura e mitologia. No caso dos Vedas e do hinduísmo, no entanto, é talvez onde Calasso tenha de fato ido “até onde nenhum estudioso ocidental jamais esteve”.
Em O Ardor, Calasso esmiúça os primórdios quase insondáveis do “povo dos Vedas”, que se iniciam precisamente no Rigveda, o primeiro e mais antigo. Trata-se dos hinos e rituais de um povo ainda nômade, ainda recém-saído do xamanismo arcaico, que mal havia se estabelecido as margens do Ganges. Talvez fosse algo para ser descartado, não fosse pelo fato deste mesmo povo ter concebido, nos milênios que se seguiram, uma das literaturas espirituais mais profundas e iluminadas, com seus milhares de deuses, e que veio a culminar na grande pérola conhecida como Bhagavad Gita.
Calasso por vezes é criticado por inserir muito da sua própria opinião, da sua própria visão de mundo ocidental, nas análises que faz dos Vedas, mas eu penso que isso seja justamente a sua grande qualidade, e não um defeito: ter a coragem de interpretar os Vedas, e não somente relatá-los, como um arquivista do Céu. Assim, para quem se interessa por hinduísmo ou pelos primórdios da espiritualidade oriental, este livro é altamente recomendado: você pode encontrá-lo à venda na Amazon.
***
Crédito da imagem: Google Image Search/hinduhumanrights.info
Marcadores: autores selecionados, autores selecionados (191-200), espiritualidade, hinduísmo, Índia, mitologia, Roberto Calasso
2 comentários:
Raph Arraes. parece que autorictas e potestas indicam o poder espiritual e o material.
Mas o estabelecimento de sudras e de párias - que sequer podem entrar num templo, está mesmo nos Vedas? Parece obra de alguém que queria oprimir pessoas por séculos.
C votos de saúde,
José Elias
Está sim, mas ao meu ver não da maneira como veio a ser interpretado politicamente ao longo do tempo. Há uma longa discussão sobre isso, mas o que importa é que ninguém é obrigado a concordar com tudo o que está escrito num livro antigo, ainda que seja o mais sagrado dos sagrados.
Abs
raph
Postar um comentário
Toda reflexão é bem-vinda:
Voltar a Home