Pular para conteúdo
13.6.17

Uma infindável sucessão de bandeiras

Texto por Roberto Calasso em O Ardor (Cia. das Letras). Tradução de Federico Carotti. Os comentários [ao longo do texto] e ao final são meus.

As religiões têm dado muito o que falar no início do século XXI. Mas o que subsiste de religioso, em sentido estrito e rigoroso, no mundo é muito pouco. E não tanto nos indivíduos, mas sobretudo nas estruturas coletivas. Quer sejam igrejas, seitas, tribos, etnias, o modelo é o de um superpartido amorfo, que permite fazer ainda mais do que já permitia a ideia de partido, em nome de algo que é amiúde definido como “identidade”. É a vingança da secularidade. Depois de passar séculos e milênios numa condição de sujeição, como serva de poderes que se impunham sem se justificar, agora a secularidade – zombateiramente – oferece a tudo o que ainda se refere ao sacro as modalidades de ação mais eficazes, mais atualizadas, mais incisivas, mais adequadas aos tempos. É esse o novo horror que ainda precisava se cristalizar: todo o século XX foi o seu longo período de incubação.

Para que se possa falar de algo religioso, é preciso que se estabeleça alguma relação com o invisível. É preciso que haja o reconhecimento de potências situadas além e fora da ordem social. É preciso que a própria ordem social almeje estabelecer alguma relação com o invisível. Nada disso parece ser a preocupação primordial das autoridades religiosas no início do século XXI. Nas altas hierarquias da cristandade ou do Islã, ou entre os pandits do hinduísmo, é fácil encontrar engenhosos sociólogos e engenheiros da sociedade, que utilizam os nomes santos das respectivas tradições para impor ou sustentar uma certa ordem dos costumes. Mas seria difícil encontrar alguém que soubesse falar a língua de Meister Eckhart, de Ibn Arabi ou de Yajnavalkya – ou ao menos lembrasse sua entonação [ele se refere aqui ao misticismo].

Diante disso, os Brahmana [comentários aos Vedas hindus] oferecem a imagem de um mundo constituído apenas pelo religioso e aparentemente desprovido de curiosidade e interesse por tudo que não o seja. Do modo como entende os Brahmana, o religioso permeia todo e qualquer ínfimo gesto – e invade também tudo o que é involuntário e acidental. Para os ritualistas védicos, um mundo que não tivesse tais características pareceria insensato, tal como seus textos tão frequentemente parecem para os leitores de hoje. A incompatibilidade entre as duas visões é total. E é incomensurável a disparidade das forças: de um lado, um encadeamento de procedimentos que, pela primeira vez, veio a recobrir a totalidade do planeta com uma rede digital imperceptível; de outro, um aglomerado de textos, em parte acessíveis apenas numa língua morta e perfeita, que fala de gestos e de entidades que parecem não ter mais nenhuma relevância.

Em sua excentricidade por vezes abissal, o pensamento dos ritualistas védicos tinha, porém, a seguinte peculiaridade: colocava sempre questões cruciais, diante das quais o pensamento de linguagem iluminista se mostra canhestro e impotente. Os ritualistas não ofereciam soluções, mas sabiam isolar e contemplar os nós que não se desatam. Não é dito que o pensamento possa fazer mais do que isso.

Seria um pleonasmo utilizar a palavra símbolo num mundo onde qualquer fiapo implicava outros significados. O que, por exemplo, a água nos Vedas poderia simbolizar, senão – quase – tudo? Se aplicássemos a noção ocidental de “símbolo” ao mundo védico, logo chegaríamos a uma condição de insignificância generalizada por excesso de significados. E, de fato, o sânscrito não dispõe de uma palavra que corresponda precisamente a “símbolo”. Bandhu, nidana, sampad: são palavras que indicam uma afinidade, uma ligação, um vínculo, uma correspondência, um nexo, uma equiparação, mas não podem ser remetidas a funções de representação, como ocorreu com o símbolo [isto é, se tudo já seria uma representação por si só, seria inútil distinguir algo como “sendo uma representação, um símbolo”].

Na mentalidade comum ocidental, como veio a se formar durante uma elaboração secular [...], o pressuposto é que a imensa maioria das coisas pode facilmente se eximir da tarefa de ser símbolo de outra coisa, salvo em alguns casos bem circunscritos, nos quais se admite a legitimidade – e também a utilidade – dessa função. A bandeira é um bom exemplo. Mas o mundo védico seria, então, uma infindável sucessão de bandeiras.

Ao mesmo tempo uma mente ocidental atual consegue, mesmo com alguma dificuldade, abrir caminho entre os textos védicos e neles encontrar algo de vital que não o faz em outros lugares. E as dificuldades com que se depara não são maiores do que as que um indiano contemporâneo precisa enfrentar. A distância entre as duas culturas contemporâneas, a indiana e a ocidental, é evidente e notável, mas se torna irrelevante comparada à distância astronômica de ambas em relação ao mundo védico.

[...] Hoje, os deuses gregos e seus ritos falam na Grécia apenas por meio do silêncio das pedras. O mesmo vale para o Egito, a mais idosa das civilizações [embora os hermetistas talvez tenham outra opinião]. Mas os mantras védicos continuam a ser recitados e entoados, incólumes, por vezes nos mesmos locais onde se formaram. E certos gestos rituais, aos quais o pensamento védico dedicara uma obsessiva atenção, continuam a ser realizados nas cerimônias sacramentais que ainda marcam inúmeras existências na Índia.

Os deuses habitam lá onde sempre habitaram. Mas na terra perderam-se algumas indicações que se tinha sobre esses locais. Ou já não se consegue mais encontrá-las em velhas folhas, abandonadas e dispersas. A vida, enquanto isso, continua como se nada fosse. Alguns pensam que algum dia essas folhas serão reencontradas. Outros pensam que elas nunca tiveram nenhum interesse especial. Outros ainda ignoram que elas existiram.


Comentários
Eu acabo de lhes trazer um trecho do epílogo da monumental obra de Roberto Calasso, um intelectual de Florença, na Itália, que além de conhecer diversas línguas e países, é também um estudioso profundo de sua história, literatura e mitologia. No caso dos Vedas e do hinduísmo, no entanto, é talvez onde Calasso tenha de fato ido “até onde nenhum estudioso ocidental jamais esteve”.

Em O Ardor, Calasso esmiúça os primórdios quase insondáveis do “povo dos Vedas”, que se iniciam precisamente no Rigveda, o primeiro e mais antigo. Trata-se dos hinos e rituais de um povo ainda nômade, ainda recém-saído do xamanismo arcaico, que mal havia se estabelecido as margens do Ganges. Talvez fosse algo para ser descartado, não fosse pelo fato deste mesmo povo ter concebido, nos milênios que se seguiram, uma das literaturas espirituais mais profundas e iluminadas, com seus milhares de deuses, e que veio a culminar na grande pérola conhecida como Bhagavad Gita.

Calasso por vezes é criticado por inserir muito da sua própria opinião, da sua própria visão de mundo ocidental, nas análises que faz dos Vedas, mas eu penso que isso seja justamente a sua grande qualidade, e não um defeito: ter a coragem de interpretar os Vedas, e não somente relatá-los, como um arquivista do Céu. Assim, para quem se interessa por hinduísmo ou pelos primórdios da espiritualidade oriental, este livro é altamente recomendado: você pode encontrá-lo à venda na Amazon.

***

Crédito da imagem: Google Image Search

Marcadores: , , , , , ,

5.4.17

Deixaram somente palavras

Texto por Roberto Calasso em O Ardor (Cia. das Letras). Tradução de Federico Carotti. Os comentários ao final são meus.

Eram seres remotos, não só dos modernos, mas de seus contemporâneos antigos. Distantes não como outra cultura, mas como outro corpo celeste. Tão distante que o ponto de onde são observados torna-se quase indiferente. Que isso ocorra hoje ou cem anos atrás, nada de especial muda. Para quem nasceu na Índia, algumas palavras, alguns gestos, alguns objetos podem soar mais familiares, como um irreprimível atavismo. Mas são contornos engraçados de um sonho cujo desenrolar se ofuscou.

Incertos os locais e os tempos em que viveram. Os tempos: mais de três mil anos atrás, mas as variações cronológicas, entre um estudioso e outro, são consideráveis. A área: o norte do subcontinente indiano, mas sem fronteiras precisas. Não deixaram objetos nem imagens. Deixaram somente palavras. Versos e fórmulas que marcavam rituais. No centro deles aparecia uma planta inebriante, o soma, que até hoje não foi identificada com precisão. Já naquela época falavam dela como uma coisa do passado. Ao que parece, não conseguiram mais encontrá-la.

A Índia védica não teve uma Semíramis nem uma Nefertiti, tampouco um Hamurabi ou um Ramsés II. Nenhum DeMille conseguiu encená-la. Foi uma civilização em que o invisível prevalecia sobre o visível. Esteve, como poucas outras, exposta à incompreensão. Para entendê-la, é inútil recorrer aos fatos, que não deixaram traços. Permanecem apenas os textos: o Veda, o Saber. Composto de hinos, invocações, esconjuros, em versos. De fórmulas e prescrições rituais, em prosa. Os versos vêm inseridos em determinados momentos de ações rituais muito complexas. Eles vão desde a dupla libação, agnihotra, que o chefe da família deve realizar sozinho, todos os duas, por quase toda a vida, até o sacrifício mais importante – o “sacrifício do cavalo”, asvamedha –, que envolve a participação de centenas e centenas de homens e animais.

Os Arya (“os nobres”, como os homens védicos chamavam a si mesmos) ignoravam a história com uma insolência que não encontra igual nos anais das outras grandes civilizações. Conhecemos os nomes de seus reis apenas por alusões no Rigveda e por episódios narrados nos Brahmana e nas Upanisad. Não se preocuparam em deixar memória de suas conquistas. E, mesmo nos episódios de que chegaram notícias, não se trata tanto de ações – bélicas ou administrativas –, mas de conhecimento.

Quando falavam em “atos”, pensavam principalmente em atos rituais. Não surpreende que não tenham fundado – nem sequer tenham tentado fundar – um império. Prefeririam pensar sobre qual é a essência da soberania. Eles a encontraram em sua duplicidade, em sua divisão entre brâmanes e xátrias, entre sacerdotes e guerreiros, auctoritas e potestas. São duas chaves, sem as quais nada se abre, sobre nada se reina. Toda a história pode ser considerada sob o ângulo de suas relações, que incessantemente mudam, se ajudam, se ocultam – nas águias bicéfalas, nas chaves de São Pedro. Há sempre uma tensão que oscila entre a harmonia e o conflito mortal. Sobre essa diarquia e suas infindáveis consequências, a civilização védica concentrou-se com a mais alta e sutil clarividência.

[...] Não havia templos, nem santuários, nem muralhas. Havia reis sem reinos de fronteiras traçadas e seguras. Moviam-se periodicamente em carroças com rodas dotadas de raios. Essas rodas foram a grande novidade que criaram: antes delas, nos reinos de Harappa e Mohenjo-daro, apenas as rodas compactas, maciças e lentas eram conhecidas. Assim que paravam, tratavam principalmente de preparar e acender fogueiras. Três fogueiras, uma circular, uma quadrara de uma em forma de meia-lua. Sabiam cozer tijolos, mas os usavam somente para construir o altar que ocupava o centro de um de seus rituais. Tinha o formato de um pássaro – um falcão ou uma águia – de asas abertas. Chamavam-no “o altar do fogo”.

Passavam a maior parte do tempo numa clareira aberta, em leve declive, onde se concentravam ao redor dos fogos murmurando fórmulas a cantando fragmentos de hinos. Era uma ordem de vida impenetrável, a não ser após longo aprendizado. Imagens pululavam em suas mentes. Talvez, também por isso, não se interessavam em entalhar ou esculpir figuras dos deuses. Como se, já estando cercados por elas, não sentissem necessidade de acrescentar outras.

Quando os homens do Veda desceram ao Saptasindhu, à Terra dos Sete Rios e depois à planície do Ganges, grande parte do território era coberta por florestas. Abriram caminho com o fogo, que era um deus: Agni. Deixaram que ele traçasse uma teia de cicatrizes. Viviam em aldeias provisórias, em cabanas sobre estacas, com paredes de junco e teto de palha. Seguiam os rebanhos, deslocando-se sempre para o leste, às vezes parando diante de imensas extensões de água. Foi essa a época áurea dos ritualistas.


Comentários
É assim que se inicia a monumental obra de Roberto Calasso, um intelectual de Florença, na Itália, que além de conhecer diversas línguas e países, é também um estudioso profundo de sua história, literatura e mitologia. No caso dos Vedas e do hinduísmo, no entanto, é talvez onde Calasso tenha de fato ido “até onde nenhum estudioso ocidental jamais esteve”.

Em O Ardor, Calasso esmiúça os primórdios quase insondáveis do “povo dos Vedas”, que se iniciam precisamente no Rigveda, o primeiro e mais antigo. Trata-se dos hinos e rituais de um povo ainda nômade, ainda recém-saído do xamanismo arcaico, que mal havia se estabelecido as margens do Ganges. Talvez fosse algo para ser descartado, não fosse pelo fato deste mesmo povo ter concebido, nos milênios que se seguiram, uma das literaturas espirituais mais profundas e iluminadas, com seus milhares de deuses, e que veio a culminar na grande pérola conhecida como Bhagavad Gita.

Calasso por vezes é criticado por inserir muito da sua própria opinião, da sua própria visão de mundo ocidental, nas análises que faz dos Vedas, mas eu penso que isso seja justamente a sua grande qualidade, e não um defeito: ter a coragem de interpretar os Vedas, e não somente relatá-los, como um arquivista do Céu. Assim, para quem se interessa por hinduísmo ou pelos primórdios da espiritualidade oriental, este livro é altamente recomendado: você pode encontrá-lo à venda na Amazon.

***

Crédito da imagem: Google Image Search/hinduhumanrights.info

Marcadores: , , , , , ,