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26.11.24

Hafiz, aquele que fala do que nos transcende

O amor não tem limites, é eterno, é para sempre.

Hafiz acreditava no amor como a causa de todas as coisas.

Khwaja Shamsuddin Mohammad Hafiz Shirazi (c. 1315 – 1390), conhecido como Hafiz, é um dos mais célebres poetas persas, cujos poemas capturaram os corações e as mentes de inúmeras pessoas ao longo dos séculos. Sua coleção de poemas acerca do amor rivaliza tão somente com Jalal ud-Din Rumi em termos de popularidade e influência (Rumi foi um poeta místico do séc. XIII que viveu na atual Turquia).

A energia mística do amor e da paixão em seus poemas tem sido uma fonte de inspiração para muitos poetas, compositores e artistas em geral. A poesia de Hafiz é um precioso tesouro de riquezas simbólicas, mas também traz consigo uma paradoxal ambiguidade de imagens. Ele se vale de tais ferramentas para transmitir as emoções mais profundas da melhor maneira possível.

As odes de Hafiz, conhecidas como gazeis (ou gazals), são muitas vezes carregadas de emoções variadas, e revelam o poeta na sua busca por Allah (ou Deus) em sua própria alma.

Ó belo garçom,
traga a taça de vinho,
coloque-a em meus lábios.

A via do amor parecia fácil em seu início,
mas o que surgiu dela
foram as mais diversas provações.

Hafiz foi um escritor e cientista que viveu na cidade de Shiraz (no atual Irã) no séc. XIV, quando ela fazia parte do antigo reino persa. O nome de seu pai era Baha ud-Din Muhammad, um comerciante de carvão, mas ele morreu de forma trágica quando o poeta ainda era uma criança. Em sua adolescência, Hafiz foi aprendiz de padeiro e viveu uma vida cheia de dificuldades junto com a mãe. Com o tempo, no entanto, ele dominou todos os aspectos religiosos e científicos ao seu alcance, de modo que no início da fase adulta ele já era reconhecido como um grande expoente da literatura e das ciências em toda a região.

É interessante saber que ele havia memorizado por completo o Alcorão, o livro sagrado do Islam, e foi justamente por isso que lhe deram o nome de Hafiz, cuja tradução é “memorizador”.

Ele também era conhecido como Lesan Al-Ghayb, ou “aquele que fala sobre o oculto, o desconhecido, o que nos transcende” (séculos depois, o criador da série de ficção científica Duna, Frank Herbert, emprestou esse conceito para o personagem principal da trama). Hafiz parecia falar daquilo que existe além das palavras.

Um cavaleiro sombrio, o medo das ondas,
um redemoinho tão implacável!
Como pode o fardo tão leve das praias
saber da angústia em nossas profundezas?

A visão de mundo do poeta é inseparável do contexto do Islam medieval, assim como do gênero da poesia de amor persa, mas ainda assim é impossível defini-lo com exatidão. Hafiz é um místico que zomba dos místicos. Ele é conhecido como aquele que compreendeu o Alcorão com o coração, e mesmo assim não se cansa de fazer graça com a hipocrisia dos religiosos. Ele demonstra sua própria vocação espiritual, enquanto sua poesia está repleta de referências à intoxicação do vinho, algo que pode ser literal para alguns, e puramente simbólico para outros.

Vá, vá e cuide dos seus próprios assuntos.
Por que você me culpa?
Meu coração se rendeu ao amor,
o que você sabe sobre tal rendição?

O aspecto mais sublime da poesia de Hafiz é justamente a sua ambiguidade. Em seus poemas, os temas são organizados de forma tão intrincada que podem ter diferentes impactos na alma do leitor, de acordo com o seu estado emocional no ato da leitura.

Muitos dos seus poemas são até hoje usados como provérbios e ditados, sobretudo na região da antiga Pérsia, atual Irã. Já o seu senso travesso de ironia atraiu muitos poetas e compositores ocidentais ao longo dos séculos – incluindo Goethe, Brahms e Wagner.

O Divan (termo persa que significa literalmente “coleção de poemas”) de Hafiz contém 500 sonetos, 42 quadras e diversas odes que ele escreveu ao longo de meio século. Ele foi publicado em dezenas de variações, sendo improvável que qualquer uma delas possua de fato a totalidade de sua obra poética.

O seu túmulo está localizado ao norte de Shiraz, em um belo monumento cercado de bosques, onde a fragrância das flores se faz presente na maior parte do ano. Nos dias atuais, é uma das atrações turísticas mais importantes e visitadas do Irã.

Hafiz acreditava que o caminho para Allah residia nos mistérios do amor. Para ele, o amor não apenas criou este mundo, como é a resposta para todas as questões que afligem nossa alma.

Eu segui pelo meu próprio caminho no amor,
e hoje tenho uma má reputação.
Mas como poderia um segredo permanecer oculto,
se rodasse pelas línguas de todas as rodas de fofoca?

Se é a presença do Amado o que busca, Hafiz,
por que se importar com o que dirão de ti?
Permaneça junto Aquele que reside em seu coração,
deixe de lado os delírios de grandeza.

***

Após ter lançado dois livros com poemas de Rumi selecionados e traduzidos de versões inglesas, chegou a hora de mergulhar na poesia de Hafiz. Ao longo de 2025 estarei intercalando outras traduções com mais uma jornada no misticismo sufi. Assim que tiver mais notícias, trarei aqui no blog.

Rafael Arrais

***

Crédito das imagens: Mahmoud Farshchian (artista iraniano inspirado pela obra de Hafiz)

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19.6.24

Oceânico, parte final

« continuando da parte 2


Aquele que tenha explicá-lo, mente

Para realizarmos qualquer coisa, mesmo a mais banal, como ir até a sorveteria tomar um sundae ou uma banana split, antes de mais nada precisamos ter a vontade de agir. Segundo Freud, todos nós temos uma espécie de reservatório de energia psíquica, isto é, uma quantidade de energia disponível para realizar nossas atividades. Freud também chamou essa energia de libido, uma espécie de energia sexual. Tal energia pode se manifestar diretamente na vida sexual em si, como no sexo ou nas fantasias eróticas, mas Freud acreditava que ela também serve como um impulso, uma pulsão, para a realização das mais diversas atividades, mesmo aquelas que julgamos ter pouca ou nenhuma relação com o sexo. Por exemplo, para ele a atividade artística é uma forma de sublimação da libido: ao invés de buscar a satisfação de seus impulsos estritamente sexuais, o artista “desvia” tal energia para a execução de todo tipo de atividade artística. E isso também é válido para a ciência, o trabalho em geral, e até mesmo a espiritualidade. Aliás, essa foi a principal divergência de Freud com Carl Gustav Jung, o jovem psiquiatra que era uma espécie de “discípulo predileto” do fundador da psicanálise.

Ao contrário de Freud, Jung acreditava que a energia psíquica tinha uma origem espiritual, e que poderia se manifestar de diversas formas nas ações humanas, incluindo aí a sexualidade. Mas Freud permaneceu irredutível em sua crença de que tal energia era primordialmente sexual, e que poderia até influenciar a espiritualidade, mas não o contrário. Os dois grandes nomes da psicologia do século XX divergiram justamente no que seria o fundamento da energia psíquica. Ainda assim, é preciso analisar com cuidado a divergência de Jung, pois não é que ele achasse que a sexualidade não tinha papel extremamente importante na vontade humana (e nesse aspecto ele não discordava de Freud), apenas ocorre que Jung não era tão avesso à espiritualidade em geral, e de alguma forma acreditava que a sexualidade por si só não era suficiente para abarcar toda a experiência religiosa, que ela não daria conta de explicar o tal sentimento oceânico (que ele provavelmente chamaria de misticismo).

Foi Jung quem popularizou os termos introversão e extroversão (ou “extraversão”, como ele escrevia) quando fundou seu corpus teórico e clínico, que chamou de psicologia analítica. A premissa básica é que os introvertidos buscam energia internamente, em solitude, enquanto os extrovertidos a obtêm da própria relação com as pessoas ao seu redor. No entanto, embora hoje em dia muitos de nós nos descrevamos como “extrovertidos” ou “introvertidos”, e vejamos esses traços como partes essenciais de nossa identidade, as definições de Jung não eram tão polarizadas. Na visão de Jung, precisávamos buscar essa energia tanto nas relações externas quanto dentro de nós mesmos para sermos pessoas plenas. Longe de definir “o que somos”, como algo escrito em pedra, Jung considerava a introversão e a extroversão como tipos de consciência que podemos experimentar de maneiras diferentes em situações distintas. Tanto a introversão quanto a extroversão podem dominar nosso comportamento, mas também podemos nos beneficiar da outra, não dominante. Aproveitando ambas as fontes de energia, podemos realmente expandir nossa experiência de vida.

Jung trouxe da alquimia antiga essa noção de que precisamos equilibrar as nossas caraterísticas internas, e tal noção também perpassa a sexualidade sagrada, a união e o equilíbrio dos polos feminino e masculino, algo que todos nós carregamos conosco, a todo momento. Mas, para explicar isso melhor, será bom recorrermos ao taoismo chinês:

Bem, o taoismo é uma filosofia espiritual bastante vasta, aqui bastará nos focarmos nos conceitos de yin e yang. Eles descrevem duas forças fundamentais, opostas e complementares, que podem ser encontradas em tudo o que há na natureza. O yin é o princípio feminino, a terra, a passividade, a escuridão e a restrição, enquanto o yang é o princípio masculino, o céu, a atividade, a luz e a expansão. Claro que citei apenas alguns exemplos de opostos complementares aqui, pois a lista é infindável. Seja como for, não há qualquer espécie de hierarquia entre os dois princípios. Por exemplo, se dizemos que yang é positivo, ele só é positivo quando comparado a yin, que será negativo. Essa analogia se assemelha a carga elétrica atribuída a prótons e elétrons, de modo que um não é “bom” por ser positivo, tampouco o outro será “mau” por ser negativo.

Segundo essa ideia, cada ser, objeto ou pensamento do universo possui um complemento do qual depende para a sua existência e que, por sua vez, também o traz dentro de si. Disso se tira que nada existe em estado absolutamente puro nem na absoluta passividade, mas sim em constante transformação. Há um símbolo que resume muito bem o yin e yang, e que muitos de vocês possivelmente já viram em algum lugar. Ele se chama taiji, e representa duas carpas vistas do alto, nadando em círculos num lago. Há uma carpa preta, de olho branco; e uma carpa branca, de olho preto. Ou seja, a carpa preta, yin, também tem um pouco de yang; e, da mesma forma, a carpa branca, yang, também carrega um pouco de yin consigo. E ainda temos um conceito essencial no símbolo em si: ambas as carpas jamais param de nadar, e do seu nado advém o equilíbrio e a harmonia de todas as coisas.

Com isso tudo em mente, será muito importante levar em consideração, daqui em diante, que na sexualidade sagrada, nos diversos rituais e práticas de magia sexual, sempre haverá uma conexão entre dois seres humanos, entre duas almas [1], e uma delas fará o papel ativo (yang), enquanto a outra assumirá o passivo (yin). Isso não significa que tais papeis não possam eventualmente se inverter. Tampouco significa, como alguns já devem ter percebido, que todo homem seja sempre ativo, e toda mulher, sempre passiva. Aliás, sequer podemos levar em consideração a própria orientação sexual de cada participante, pois um casal homossexual também terá aquele que se sente mais à vontade no papel de yang, e aquele que está mais próximo de yin. Ou, em outras palavras, no fundo no fundo somos todos alma.

Pois bem, eu sei que muitos gostariam de saber em detalhes como eram exatamente tais rituais sexuais milenares, o que era, o que é exatamente a magia sexual. O que eu posso dizer é que, de certa forma, a única coisa que separa a magia sexual de qualquer outro tipo de magia [2] é o contato íntimo entre os operadores de determinado ritual. Afinal, nada do que se faça com falos e orifícios deveria ser alguma novidade para um mago, de modo que o próprio ato sexual em si é mera parte de um processo, e não um fim em si mesmo.

Como em qualquer ato mágico, o sexo sagrado também busca uma alteração na consciência. Ao contrário de diversas outras técnicas, no entanto, como as que se valem do controle da respiração ou de encenações teatrais específicas, nesse tipo de magia há um momento de alteração radical do estado de consciência, que no mundo profano é chamado de orgasmo.

Ora, sejam ou não magos e sacerdotisas, todos os que já experimentaram ao menos um orgasmo sabem muito bem do que se trata, não é preciso descrever nada: o orgasmo é uma experiência. A questão é saber o que diabos exatamente é essa experiência. Há um termo em francês que também é sinônimo para orgasmo, la petite mort, a pequena morte. Ele compara o orgasmo à morte no sentido de que experimentamos uma alteração tão radical em nosso estado de consciência usual, que é como se tivéssemos “morrido por alguns instantes”. Mas é precisamente esse estado quase que alienígena de consciência, onde muitas vezes sequer temos noção do tempo e do espaço, que possibilita que a própria magia sexual ocorra de modo mais potente. Se quiser saber como é, poderia, por exemplo, nos momentos que antecedem um orgasmo, começar a pensar em natureza, em montanhas e florestas e riachos, em abundância de vida, na Deusa como ela é, ao invés de nádegas e falos.

Nos primórdios da humanidade a religião era matriarcal, a mulher era sagrada, e o seu corpo era um templo. No xamanismo ancestral, os ritos de iniciação eram realizados nas cavernas, pois suas entradas eram comparadas a vaginas, uma vez que o próprio interior da caverna era o ventre da Deusa. Pode parecer estranho pensar sobre isso hoje, mas até mesmo as catedrais góticas seguiram esse padrão simbólico, uma vez que a Igreja também era a “esposa” de Cristo. E, se até hoje bebemos simbolicamente o sangue de Jesus em certas cerimônias, não deveria causar grande surpresa que isso também tenha se originado em ritos muito, muito mais antigos.

No fim das contas, o sentimento oceânico de fato sempre esteve à nossa disposição. Não é sequer o caso de termos de buscá-lo lá fora, no topo de alguma montanha, no texto de algum grimório secreto, mas simplesmente de retirar as barreiras que nós mesmos erguemos contra ele, quiçá por ser tão avassalador, tão irracional, tão além das palavras. Delimitamos nosso ego quando deixamos de ser recém-nascidos na Criação, e experimentar o sentimento oceânico pode ser a via mais breve de retorno ao que sempre fomos.

Há uma wali (amiga de Allah), uma mística sufi que viveu no Oriente Médio, lá no século VIII, que soube descrever essa tal experiência de modo muito poético – quiçá o único modo com que ela possa, de fato, ser descrita:

Em Ishq-e Haqeeqi [3], não há nada se interpondo 
entre um coração e outro.

O querer falar nasce da saudade,
a verdade acerca do real sabor da vida.
Aquele que o provou, sabe;
aquele que tenta explicá-lo, mente...

Como você poderia descrever a verdadeira forma de Algo
em cuja presença você se torna um borrão?
E em cujo Ser você ainda existe e perdura?
E que vive como um signo eterno para a sua jornada?

(Rabia Basri)


***

[1] É claro que os adeptos da não monogamia também podem adentrar a sexualidade sagrada com três ou mais almas, de uma só vez. Apenas leve em consideração que cada alma adicional torna a operação exponencialmente mais complexa. Nada impede, entretanto, a simples alternância de casais dentro de uma relação não monogâmica.

[2] Se você crê que “magia” é o mesmo que “algo que não existe”, ou “algo que se faz contra Deus”, talvez não devesse sequer estar por aqui. Mas, se gostou do que leu até aqui e ficou curioso em descobrir o que é de fato magia, recomendo o meu livro Artemagia (Edições Textos para Reflexão).

[3] Ishq-e Haqeeqi, o amor divino, a experiência de união mística com Deus, algo que pode muito bem ser comparado ao sentimento oceânico. Você pode encontrar este e outros poemas de Rabia Basri no livro Rumi – Além das ideias de certo e errado (Edições Textos para Reflexão).

Crédito das imagens: [topo] cena do filme Um método perigoso (respectivamente, Jung e Freud); [ao longo] Google Image Search (taiji taoista); Dennis Mahlmeister (O Grande Rito).

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11.6.24

Oceânico, parte 1

Um debate entre amigos

Sigmund Freud, fundador da psicanálise e grande desbravador do inconsciente humano, costumava debater sobre a religião com um amigo, Romain Rolland, escritor e biógrafo de grandes espiritualistas do seu tempo, como Sri Ramakrishna e Swami Vivekananda. O debate é usado como ponto de partida do célebre O mal-estar na civilização, de Freud, onde o autor cita que Rolland até concorda com as teses de O futuro de uma ilusão [1], mas afirma que a verdadeira religiosidade humana tem muito pouco a ver com isso tudo:

Eu lhe enviei meu pequeno manuscrito, no qual trato a religião como uma ilusão, e ele me respondeu que concordava inteiramente com a minha opinião, lamentando, todavia, que eu não tivesse apreciado corretamente a verdadeira fonte da religiosidade. Segundo ele, ela seria um sentimento peculiar que jamais o abandonava, sendo que a sua existência fora confirmada por muitas outras pessoas, de modo que ele supunha que ela estaria atuante em milhões de indivíduos.

(Freud, O mal-estar na civilização)

Mais adiante na obra, Freud explica que para Rolland tal sentimento não era propriamente mero “artigo de fé”, mas um verdadeiro contato com algo ilimitado, sem fronteiras, eterno: um sentimento oceânico. Ora, mas Freud era um entusiasta da ciência, das observações objetivas dos casos clínicos, e confessa no livro que ele mesmo jamais conseguiu tocar esse tal sentimento que, segundo seu amigo, era a verdadeira fonte da religiosidade humana. Daí em diante, sem recorrer à desonestidade intelectual ou a alguma espécie de ceticismo de negação [2], Freud dedica o restante do primeiro capítulo da obra a tentar desvendar de onde viria tal sentimento oceânico.

É então que ele nos traz uma comparação curiosa com a percepção de mundo dos recém-nascidos. Segundo Freud, inicialmente o bebê não consegue diferenciar a si mesmo do restante do mundo a sua volta, mas aos poucos vai aprendendo que há “objetos distintos de si”, como o próprio seio da mãe, que só “aparece” quando chamado. Assim o bebê aprende que, ao chorar de fome, é amamentado por um objeto externo, que não era parte de si mesmo. Com o tempo, vamos aprendendo a nos dissociar do mundo, vamos delimitando nosso ego:

Originalmente o ego contém tudo, e só mais tarde separa, de si mesmo, um mundo exterior. Assim, o nosso presente sentimento do ego não passa de um atrofiado resíduo de um sentimento muito mais inclusivo – de fato, totalmente abrangente –, que corresponde a um vínculo mais íntimo entre o ego e o mundo que o cerca. Caso nós pudéssemos supor que esse sentimento primário do ego persistiu, em maior ou menor grau, na vida mental de muitas pessoas, ele poderia ser colocado, como um tipo de contraponto, lado a lado com o sentimento do ego da maturidade, que é mais nitidamente demarcado. Nesse caso, os conteúdos imaginativos a ele pertinentes seriam justamente aqueles da ausência de limites e de um vínculo ao universo como um todo, precisamente os mesmos que meu amigo utiliza para descrever o sentimento “oceânico”.

(Freud, O mal-estar na civilização)

Segundo a tese de Freud, o tal sentimento oceânico não teria uma fonte mística, não seria relacionado com um suposto contato real com a divindade ou alguma manifestação cósmica, mas antes seria tão somente o “resíduo” de um sentimento de nossa primeira infância, que por alguma razão jamais foi esquecido. Em resumo, é como se o que chamamos de misticismo fosse reduzido a alguma espécie de sentimento de amamentação cósmica, como se ainda bebêssemos algum leite metafísico direto da fonte eterna.

Como espiritualistas, devemos aplaudir Freud por ter ido até onde poderia ir, por ter se esforçado em tentar compreender o incompreensível. É como se algum mergulhador tivesse retornado do oceano em estado de êxtase, maravilhado com seu primeiro mergulho no mar, e tentasse descrever com palavras algo que não pode realmente ser descrito em palavras; e Freud, sem nunca ter mergulhado sequer numa piscina, tentasse explicar tal descrição com sua própria visão de mundo. Mas as palavras são apenas cascas de sentimento, e o misticismo de fato vai muito além disso.

O que quer que pensem de nós, em nada lembrará o que somos.

(Rumi)

Seja como for, também me parece que Freud teria sido mais feliz em sua analogia se considerasse o sentimento de um recém-nascido como algo mais digno de nota, e não somente parte de um mero instinto de sobrevivência. Pois o bebê chora quando tem fome, e é amamentado; mas, quando não tem fome, ele vive em uma espécie de estado de êxtase persistente. Ou, como bem resumiu Satyaprem, um budista brasileiro:

Uma criança é um buda que não sabe que é um buda.
Um buda é uma criança que sabe que é um buda.

Ou seja, a criança saudável e bem cuidada vive em seu próprio estado de iluminação, muito embora tal estado seja lentamente vencido pelo peso do mundo. Nascemos, e não nos entendemos como algo separado do resto, somos parte de tudo. Então, lentamente vamos construindo/delimitando um ego, tão necessário a nossa sobrevivência, mas que também necessariamente nos retira do Céu, e somos expulsos desse paraíso oceânico. Mas um buda, um iluminado, é aquele que, mesmo tendo caído no mundo adulto, consegue de alguma forma alcançar novamente tal estado, ainda que em curtos espaços de tempo (se é que o tempo pode ser medido no Céu).

Nada disso se explica com palavras. Se não entendeu, leia novamente o parágrafo acima, mas com o coração. E, se ainda não sabe ler com o coração, talvez seja porque sofre desse mal do Ocidente, que tenta se relacionar com o sagrado apenas do ponto de vista masculino, como uma espécie de fonte eterna de onde todas as coisas são criadas e cuidadas. Isso é uma visão bem diversa da do Oriente, que em geral considera que o sagrado é todas as coisas, de modo que jamais poderíamos estar longe, muito menos fora do Céu. Se não vemos o sagrado a nossa volta, se quando choramos de angústia não há nenhum seio da Grande Mãe que venha nos amamentar, quiçá tenhamos de retornar ao passado, quando a religião era ditada pelas mulheres, para beber uma vez mais desse leite.


» Na sequência, quando Deus era mulher.

***

[1] Outra obra de Freud, onde ele basicamente considera o monoteísmo do Ocidente como uma grande ilusão cuja função primordial é frear os instintos humanos e manter a sociedade “em ordem”.

[2] O ceticismo de negação afirma que algo não existe somente porque não há evidências objetivas da sua existência. No entanto, é impossível comprovar objetivamente que algo não existe, apenas que existe. Ou, usando as palavras de Carl Sagan, a ausência de evidência não é evidência de ausência.

Bibliografia
O mal-estar na civilização, de Sigmund Freud (Edições Textos para Reflexão).

Crédito das imagens: [topo] Google Image Search (Freud e Romain Rolland); [ao longo] Bia Octavia/unsplash.

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28.11.23

Mas o que exatamente eu sou?

René Descartes foi um dos grandes pensadores modernos, tanto que é considerado por alguns como “o fundador da filosofia moderna”, e por outros como “o pai da matemática moderna”. E, de fato, ele foi tão ou mais importante para a ciência e a matemática quanto o foi para a filosofia em si. Entretanto, se formos analisar hoje pelo que Descartes é mais lembrado, será difícil escapar da sua célebre afirmação:

Penso, logo existo.

Tal frase, cuja tradução do latim original – cogito ergo sum – seria melhor definida como “Penso, logo sou”, surgiu em um livro que a princípio era quase que um prefácio para outras obras mais científicas, intitulado Discurso sobre o Método. Nesta obra, escrita em 1637 e publicada originalmente na Holanda, pois nessa época o pensador francês residia por lá, Descartes propõe um modelo quase matemático para conduzir o pensamento humano, uma vez que a matemática tem por característica a certeza, a ausência de dúvidas. De acordo com o próprio autor, parte da inspiração de seu método (descrito nesse tratado) veio de três sonhos ocorridos na noite de 10 para 11 de novembro de 1619: em tais sonhos lhe surgiu “a ideia de um método universal para encontrar a verdade”.

E o método de Descartes entrou para a história, ao ponto de se confundir com as bases do próprio método científico como veio a ser conhecido de lá para cá. Mas o que me interessa discutir aqui é a tal frase, o “penso, logo sou”. Como exatamente ele chegou nela?

Ora, Descartes estava preocupado com a validade das evidências que poderiam comprovar as verdades da nossa existência. Se devemos questionar tudo, por que devemos confiar nas informações que colhemos da natureza, já que tudo passa pela interpretação dos nossos cinco sentidos?

Tudo o que olhamos, cheiramos, escutamos, tocamos ou saboreamos só pode ser analisado pela consciência quando passa pelos nossos ouvidos, olhos, boca, tato e nariz. E, para piorar, essa interpretação é pessoal e intransferível. Como confiar que todas as pessoas perceberiam esses estímulos da mesma forma, permitindo que uma verdade se tornasse válida para todos?

O francês concluiu que nós só temos a capacidade de duvidar dos nossos sentidos (isto é, pensar) porque estamos vivos para receber esses estímulos. Ter a convicção da nossa existência seria a única coisa da qual não podemos duvidar. Eis as suas palavras, traduzidas do original:

“[...] ao analisar com atenção o que eu era, e vendo que podia presumir que não possuía corpo algum e que não havia mundo algum, ou lugar onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao contrário, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas, resultava com bastante evidência e certeza que eu existia; ao passo que, se somente tivesse parado de pensar, apesar de que tudo o mais que alguma vez imaginara fosse verdadeiro, já não teria razão alguma de acreditar que eu tivesse existido; compreendi, então, que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de lugar algum, nem depende de qualquer coisa material. De maneira que esse eu, ou seja, a alma, por causa da qual sou o que sou, é completamente distinta do corpo e, também, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, mesmo que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é.

Depois disso, considerei o que é necessário a uma proposição para ser verdadeira e correta; pois, já que encontrara uma que eu sabia ser exatamente assim, pensei que devia saber também em que consiste essa certeza. [Assim, percebi] que nada há no eu penso, logo sou que me dê a certeza de que digo a verdade, salvo que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir.”

Ou seja, ainda que tudo o que percebemos com os sentidos desde que nos entendemos por gente for algum tipo de ilusão, e ainda que não possamos obter uma certeza derradeira e absoluta sobre basicamente nenhuma verdade, ainda assim não podemos negar que existimos, que estamos aqui pensando sobre a existência. Descartes havia encontrado a única certeza genuína da filosofia, a única que não pode ser questionada. E vejam que, ainda assim, o fato de existirmos não significa que tenhamos sequer a certeza sobre a nossa própria vontade, ou liberdade de agir; porém, fato é que algo existe, e não nada.

Agora, me desculpem, mas nesse momento não posso deixar de sorrir ante tamanha ironia, isto é: que um dos tratados que servem de alicerce para o próprio método científico, que um dos pilares da racionalidade moderna seja mais lembrado justamente por sua afirmação mais mística, mais espiritual, ainda que a imensa maioria dos que esbarraram nela não tenha percebido sua profundidade abissal.

Sim, pois muitos se comportam diante dela como aqueles que estavam se preparando para a sua primeira aula de mergulho na praia mas, ao ver a placa informando “Perigo, correnteza forte”, preferiram se abster de mergulhar. Tivessem mergulhado, a primeira coisa que teriam de se deparar era com a continuação até mesmo óbvia da preposição de Descartes:

Penso, logo sou. Mas o que exatamente eu sou?

Então cairiam de cabeça no misticismo, ou seja, na tentativa de conceber a verdadeira natureza do que existe, do que é. E poderia falar aqui de Parmênides, dos estoicos, de Plotino ou Benedito Espinosa, mas será mais fácil se deixarmos a filosofia de lado e recorrermos à poesia, mais precisamente a poesia de Jalal ud-Din Rumi, um poeta sufi (o misticismo do Islam) que viveu no século XIII. Eis o que ele soube nos dizer sobre o tema:

Na verdade nós somos uma só alma, eu e você. Nos mostramos e escondemos, você em mim, eu em você.

Eis o sentido profundo da nossa relação: é que entre você e eu não existe nem eu nem você.

Os poemas de Rumi eram um eterno diálogo entre ele e Allah, ou Deus. Mas a ideia principal, a que permeia toda a sua obra, e também a de todo místico genuíno, é justamente esta: “entre eu e você, não existe nem eu nem você”. O que existe é o que é, sempre foi e será, justamente porque existe, porque não é nada. Mas isto não se entende com palavras.

Afinal, se fosse necessário pensar através de alguma espécie de linguagem, por mais rudimentar que fosse, então não existiríamos enquanto recém-nascidos, e só passaríamos a existir a partir de dado momento desta vida. Ocorre que mesmo tal ideia é absurda nesse contexto: “passar a existir”. Não faz o menor sentido. Mas isto também não se entende com palavras.

E, mesmo no ápice de sua racionalidade, o próprio Descartes intuiu a mesma coisa, embora talvez não tenha conseguido se expressar através de um conceito cristão. Pois o pensador francês ainda defende a existência de Deus poucas páginas após o trecho que eu trouxe acima. E, para tal, ele se vale de uma lógica que muitos consideram até mesmo infantil: ele afirmou basicamente que o fato de concebermos a ideia da perfeição e do infinito, mesmo sendo imperfeitos e finitos, era a prova da existência de Deus.

Faltou a Descartes justamente ir um pouco além, e mergulhar nos mares abissais do Grande Mistério. Nós não “concebemos” Deus, nós somos Deus. Nós somos o que existe.

***

Crédito das imagens: [topo] Corbis (Descartes); [ao longo] Cristofer Maximilian/unsplash.

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22.6.23

Lançamento: Artemagia

O Projeto Ars Magica chegou ao fim, e o seu título final é Artemagia: uma reflexão sobre o Caminho.

Em Artemagia, Rafael Arrais se vale da sua escrita poética e hipnotizante para nos trazer preciosas e profundas reflexões acerca do Caminho, o caminho espiritual, e tudo o que ele abarca: a Arte, a magia, a religião, a filosofia, a ciência, a espiritualidade, a chamada Verdadeira Vontade, o contato com anjos e demônios, as vias da mão direita e esquerda, o tarot etc. Se souber ler com o coração, você também será mudado para sempre por este livro.

Já disponível em e-book, na Amazon, e também na versão impressa:

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» Leia alguns trechos da obra


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21.4.22

O que é o Sefirat ha Ômer?

Neste vídeo Raph faz um panorama geral do Sefirat ha Ômer (ou Contagem do Ômer, uma prática do misticismo judaico) e responde a 7 das principais questões de quem nunca ouviu falar do tema - ou conhece muito pouco do assunto, mas se interessa em saber mais.. Assista abaixo:

Se gostaram, não esqueçam de curtir, compartilhar e se inscrever no canal!


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15.4.22

Lançamento: Rubaiyat de Omar Khayyam

As Edições Textos para Reflexão trazem a poesia persa para o formato digital.

Hoje Nixapur é uma cidade modesta situada no nordeste do Irã, mas há cerca de mil anos ela era uma das maiores cidades do mundo, sendo um ponto importante da famosa Rota da Seda. Na época, em meio aos impérios persas, nela nasceu e morreu um cientista, astrônomo e matemático chamado Omar Khayyam. Dizem que também foi poeta, e teria nos deixado centenas de poemas compostos por quatro versos – os rubaiyat, plural de rubai (poema em quarteto). Muitos séculos depois, tais versos foram transpostos ao inglês por um poeta de ascendência irlandesa chamado Edward FitzGerald, que foi o grande responsável por tornar o Rubaiyat de Omar Khayyam célebre em todo o Ocidente.

Nessa versão, contamos com a primorosa tradução de Rafael Arrais – também tradutor de Rumi, outro grande poeta associado ao misticismo sufi, e membro da Ordem Sufi Naqshbandi. Além disso, a edição traz mais de 30 ilustrações de grandes artistas.

Um ebook já disponível para o Amazon Kindle e na Google Play:

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26.11.20

Bate-papo Mayhem: Rumi, o Sufismo e os poetas da alma, com Raph

Oi pessoal. Recentemente fui novamente convidado a participar do programa Bate-papo Mayhem, apresentado pelo meu amigo Marcelo Del Debbio. Desta vez eu falei sobre os mistérios da poesia, da sua relação com a magia, e também sobre Rumi, Shams, Rabia Basri e o misticismo sufi:

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28.9.20

Rabia Basri, a santa dos primórdios do sufismo

Conta a lenda que no século VIII, num pequeno vilarejo próximo a atual Basra, cidade no extremo sul do Iraque, uma mulher foi vista circulando pela viela principal segurando um lampião numa mão e um vaso d’água na outra. Veio então um mercador e lhe perguntou o que diabos ela estava fazendo, uma vez que a mulher parecia enxergar algum outro mundo que os demais não podiam ver. Ela respondeu:

“Eu quero apagar as chamas do Inferno e botar fogo no Paraíso.”

O mercador, que felizmente não era lá tão religioso ao ponto de ficar transtornado com aquela resposta, ainda assim procurou saber o motivo dela, ao que a mulher a sua frente complementou:

“O Paraíso e o Inferno estão bloqueando meu caminho até Allah. Se eu devo adorá-Lo por temor do Inferno, que eu queime no Inferno. Se eu devo adorá-Lo pelas recompensas prometidas no Paraíso, que eu seja expulsa dele para sempre. Mas, se já não existirem nem Inferno nem Paraíso, então que eu possa adorá-Lo por quem Ele é, e que Ele não esconda mais de mim a sua face, e que já não haja nada mais além de Ishq-e Haqeeqi [amor verdadeiro].”

Ishq-e Haqeeqi, o amor real e verdadeiro, o amor de Allah, onde todos os místicos buscam mergulhar, é uma palavra árabe que define os primórdios do sufismo, o misticismo do Islã. A tal mulher da história é Rabia Basri, santa sufi que influenciou diretamente diversos místicos e poetas posteriores, desde Farid ud-Din Attar a Jalal ud-Din Rumi.

Muito pouco se sabe sobre ela, e muitos dos poemas a ela atribuídos podem muito bem ser da autoria de terceiros. Neste caso, as lendas em torno da sua existência – isto é, a sua mitologia – provavelmente contam mais do que a sua vida real. Mesmo o seu nome, Rabia Basri, significa algo trivial: algo como “a quarta (rabi’a) filha da família, residente de Basra”. No entanto, considerar que uma mulher pobre, camponesa, iletrada, que jamais deixou algo escrito, e que viveu nos primórdios do Islã, ainda assim possa ter influenciado de tal forma o sufismo, e sido reconhecida como santa ainda em vida, diz o tanto que Rabia foi especial.

Segundo o mito, sua família não teve condições de sobreviver intacta durante um longo período de secas e fome, de modo que Rabia eventualmente foi vendida como escrava. Então, ela fazia a faxina e ajudava a cuidar da casa do seu mestre, e todas as noites, sem exceção, rezava em meditação profunda. Desde cedo, ela buscava estar no amor de Allah (no “campo além das ideias de certo e errado”, como definiu Rumi, o célebre poeta sufi, séculos depois). Uma bela noite, seu mestre se dirigiu até seu quatro para espiá-la – quem sabe, pelo fato dela já estar mais crescidinha –; e percebeu, estupefato, que uma luz irradiava dela enquanto rezava a Allah. Na manhã seguinte, decidiu declará-la livre, possivelmente por temer alguma punição divina por manter uma santa em cativeiro.

Assim Rabia se tornou uma mística e asceta em pleno Islã do século VIII. Não há muitas informações confiáveis acerca de como se manteve solitária e supostamente virgem num brutal mundo de homens. Mas há uma outra história, um pouco mais confiável por ter sido contada por um sábio reconhecido de sua época, que pode jogar alguma luz sobre o tema.

Antes de chegarmos a ela, é preciso considerar um problema de datas. Hasan al-Basri foi um teólogo sufi que viveu boa parte da vida naquela mesma região. No entanto, ele nasceu em 642 e morreu no ano 728, ao passo que Rabia supostamente nasceu entre os anos 714 e 718 e morreu no ano 801. Quando Hasan encontrou-se com Rabia, certamente era um ancião no fim da vida; Rabia, porém, muito provavelmente já não era mais uma pré-adolescente. Assim, talvez ela tenha nascido pelo menos uma década antes das datas consideradas mais aceitas. Bem, pelo menos se considerarmos a história de Hasan verdadeira. Vamos a ela:

"Eu passei a noite inteira e a manhã seguinte com ela. Em nenhum momento passou pela minha mente que ali, em sua presença, eu era um homem, tampouco que ela era uma mulher. Quando a vi a primeira vez, eu percebi que meu espírito estava falido, que eu era como um mendigo; enquanto ela, ela era a pessoa mais rica que eu já havia encontrado."

O relato de Hasan se refere a uma noite em que se dirigiu a tenda de Rabia em busca de um genuíno diálogo entre místicos. É preciso ressaltar que um teólogo sufi como Hasan não fazia votos de celibato. Isso quer dizer, obviamente, que ele não tinha nenhuma obrigação de negar seus instintos sexuais. No entanto, quando passou uma noite só numa tenda com uma mulher muito mais jovem do que ele, “em nenhum momento passou por sua mente que ele era um homem e ela era uma mulher”. Talvez isso explique como Rabia passou a vida inteira solitária: nenhum pretendente, ante sua presença, parece ter conseguido levar adiante alguma proposta de casamento – ela já estava “casada” com Allah, era algo até mesmo óbvio.

Assim, Rabia passou toda a vida voltada para o convívio íntimo com Allah, em todos os momentos. Ao ponto de, ao morrer, perto dos oitenta e poucos anos de idade, ter em suas posses tão somente um tapete de junco, um manto, um jarro de cerâmica e um colchão que também lhe servia para rezar e meditar. Afinal, para ela, tudo parecia se dissolver em Allah, ela nunca precisou de nada além Dele:

Em minha alma
há um templo, um santuário, uma mesquita, uma igreja
onde eu me ajoelho.

A oração deveria nos levar a um altar
onde não existem
nem muros nem nomes.

Acaso não há uma região do amor
onde o altar real sequer é iluminado pelas velas,
onde o êxtase derrama-se em si mesmo
e se perde,
onde as asas estão plenamente vivas,
mas já não possuem nem mente
nem corpo?

Em minha alma
há um templo, um santuário, uma mesquita, uma igreja
que se dissolvem...

Neste momento
onde eu me ajoelho
todas as construções se dissolvem,
tudo se dissolve
em Allah... [1]

Quando Hasan faleceu, toda Basra se mobilizou em seu funeral. Afinal, tratava-se de um proeminente teólogo. Anos mais tarde, na morte de Rabia, provavelmente a comoção foi consideravelmente menor. Apesar de santa, Rabia era uma mulher, e a menos que fosse alguma rainha ou princesa, não havia motivos para realizar um funeral tão luxuoso para uma mulher. Foi o próprio Hasan quem disse, no entanto, que perto dela ele era “um mendigo”, e ela era “a pessoa mais rica que já havia encontrado”.

Os místicos sabem reconhecer a verdadeira riqueza. Ishq-e Haqeeqi, como somente ela soube (tentar) descrever:

Neste amor, não há nada se interpondo
entre um coração e outro.

O querer falar nasce da saudade,
a verdade acerca do real sabor da vida.
Aquele que o provou, sabe;
aquele que tenta explicá-lo, mente...

Como você poderia descrever a verdadeira forma de Algo
em cuja presença você se torna um borrão?
E em cujo Ser você ainda existe e perdura?
E que vive como um signo eterno para a sua jornada? [1]

***

[1] Poema atribuído a Rabia Basri (tradução de Rafael Arrais).

Crédito das imagens: [topo] Google Image Search; [ao longo] Wikipedia (representação de Rabia moendo grãos; retirada de um dicionário persa).

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12.8.20

As últimas palavras de Sócrates

Neste vídeo vamos analisar o que diabos Sócrates quis dizer, afinal, em suas últimas palavras no leito de morte. O que simbolizava o tal galo que ele devia a Asclépio? Quem era Asclépio? Teria isso a ver com ritos de cunho místico e iniciático? Vamos tentar responder tais questões.

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5.8.20

O último enigma de Sócrates

Há pouco mais de 2.400 anos, a filosofia ocidental viveu a sua cena definitiva: numa prisão em Atenas, após ser julgado pelos próprios concidadãos e se recusado a abandonar a cidade, Sócrates cumpria sua pena, e bebia o veneno que, dali a alguns momentos, causaria sua morte.

Faziam parte da acusação: ateísmo (não crer nos deuses gregos, e se associar a deuses desconhecidos) e corrupção dos jovens (com novas ideias). Ambas eram absurdas, e talvez os próprios acusadores sequer acreditassem realmente nelas, mas fato é que eles desejavam se livrar daquele maldito filósofo que insistia em expor a todos o quão ignorantes eram aqueles que se julgavam sábios, sem o ser. Foi oferecida a Sócrates a oportunidade de abandonar sua defesa do que considerava ser a verdade, exilando-se de Atenas para sempre. Ele preferiu a morte a uma vida exilada do diálogo e da busca conjunta pela verdade.

Sócrates, afinal, não deixou obra escrita e sequer fundou alguma nova doutrina. Foi influenciado por Permênides e pelos ritos místicos de sua época, mas não parece ter sido alguém como Platão, que fundou uma escola filosófica e deixou extensa obra escrita, onde usava de Sócrates como personagem para divulgar suas próprias ideias. O que sabemos de Sócrates, para além do personagem de Platão, é que ele de fato existiu, e parece mesmo ter irritado muitos atenienses de sua época, sobretudo aqueles que julgavam ser “muito sábios” acerca de certos assuntos. Existiu, porque também foi descrito na obra de Xenofonte – outro filósofo que foi seu discípulo – e nas peças teatrais de Aristófanes. Foi irritante, porque ninguém é alvo da galhofa de um grande comediante sem razão: e as peças de Aristófanes nada mais eram do que uma crítica bem humorada aquele “filósofo chato” que insistia em viver no mundo das ideias.

Voltemos então à cena: Sócrates aproxima o veneno dos lábios e toma a taça de uma vez. A sua volta, seus discípulos mais próximos se desesperam. Eis o que narrou Fédon (retirado do Fédon de Platão):

Até então quase todos tínhamos tido forças para conter nossas lágrimas, mas, ao vê-lo beber e depois de ter bebido, já não podíamos conter nossos impulsos. Quanto a mim, minhas lágrimas caíam em abundância, apesar de meus esforços para contê-las, e tive de cobrir-me com meu manto para poder chorar livremente. Porque não era a desgraça de Sócrates que chorava, mas a minha, ao pensar no amigo que ia perder. Críton, que já estava transtornado antes de mim, não pôde reter as lágrimas e saiu do recinto. Apolodoro, que não parava de chorar, se colocou a gritar e a soluçar de tal modo que não houve quem não se comovesse, exceto Sócrates.

Sócrates continuava sendo irritante: ele insistia em permanecer ao lado da verdade – ao menos, da sua verdade – mesmo no momento de sua morte. “Permaneçam tranquilos, meus amigos, e demonstrem maior coragem” – foi mais ou menos o que disse em seguida; e ele tinha todo motivo para tal, pois segundo sua lógica, viver no exílio seria algo certamente terrível, enquanto a morte era somente uma viagem desconhecida. Pouco antes daquele momento trágico, Sócrates havia dito uma de suas frases definitivas:

Mas eis a hora de partir: eu para a morte, vocês para a vida. Quem de nós segue o melhor rumo, ninguém o sabe, exceto os deuses.

Na realidade, a crença de Sócrates nos deuses gregos era tão profunda que ele confiava que a vida após abandonar definitivamente o seu corpo não seria tão terrível, uma vez que seguiu a sabedoria por boa parte da sua vida; vejam como ele próprio explicou a questão (outro trecho do Fédon):

Há uma coisa, pelo menos, que seria justo que todos nós refletíssemos: se a alma é verdadeiramente imortal, é preciso que zelemos por ela não apenas durante o tempo atual, que chamamos vida, mas durante todo o tempo, pois seria grave perigo não se preocupar com ela. Admitamos que a morte seja tão somente uma total dissolução de tudo. Que sorte admirável estaria então reservada para os maus que se veriam libertos de sua própria maldade! Mas, na verdade, uma vez tendo sido tornado claro que a alma é imortal, não haverá fuga possível para ela frente a seus males, a não ser que se torne melhor e mais sábia.

Eis, portanto, a sua lógica: Sócrates julgava que se tornava melhor e mais sábio ao dedicar-se a filosofia. O seu método, no entanto, não era solitário. Ele precisava estar em Atenas, junto aos jovens (de ideias), para poder prosseguir em seu caminho rumo à sabedoria. Exilar-se seria, antes de tudo, abdicar daquilo que ele julgava ser a tarefa mais essencial da vida. Seria melhor continuá-la após a vida – curar-se da própria ignorância, era tudo o que o filósofo buscava, e talvez seja isso o que melhor explique o seu último enigma, a última frase que disse a um dos seus discípulos mais próximos:

Críton, somos devedores de Asclépio, nós o devemos um galo; pois bem, paga minha dívida, não se esqueça.

Críton ainda respondeu, “Assim será, mas veja se não tem algo mais a dizer”. E não tinha, pois estava morto. O homem mais sábio de Atenas havia deixado o mundo com um dito aparentemente corriqueiro e ordinário para alguns, ou um profundo enigma, para outros.

Ora, do ponto de vista ordinário, tal frase pode dar a entender que o filósofo valorizava a justiça ao ponto de, mesmo em seu último momento, não esquecer de que eles deviam um galo a algum cidadão ateniense. Uma coisa do dia a dia, por assim dizer. Entretanto, apesar de Sócrates só o haver mencionado uma única vez em toda a obra de Platão, Asclépio não era um mero homem a quem se pudesse “dever um galo”, mas sim o deus da medicina (posteriormente conhecido como Esculápio, entre os romanos) – aquela não era propriamente uma dívida, portanto, mas antes uma oferenda.

Parece estranho, deveras estranho, que o sábio e tantas vezes excessivamente racional Sócrates tenha reservado suas últimas palavras para render culto a um “deus menor”, ao menos se comparado a Zeus, que ele cita incontáveis vezes. Mas, se é verdade que Sócrates foi um personagem usado por Platão para divulgar suas próprias ideias, aqui fica mais evidente, quem sabe, o “Sócrates real”, para além do mero personagem dos livros. E esse homem real era bem mais ligado ao misticismo do que Platão gostaria.

O mais antigo registro do nome “Asclépio” é encontrado na Ilíada de Homero. Ele pode ter existido de fato, vivendo em torno de 1200 a.C. Na cultura grega era comum que heróis célebres fossem objeto de culto após sua morte. Asclépio, no entanto, foi médico, não exatamente um herói aos moldes de Hércules. Seja como for, na época de Sócrates e Platão ele já havia sido incluso no panteão dos semideuses, sendo filho do deus Apolo com uma mortal chamada Corônis. Segundo dizem as lendas, Asclépio eventualmente se tornou um curandeiro tão poderoso que era mesmo capaz de ressuscitar aqueles que morreram há pouco tempo, o que virou motivo de preocupação para Hades, o deus que cuidava do mundo dos mortos. Hades foi reclamar a Zeus que um médico estava impedindo que mais almas chegassem ao seu reino, e este resolveu a situação fulminando Asclépio com um raio. Algumas versões dizem que após algum tempo Zeus ressuscitou Asclépio e permitiu que continuasse a tratar dos doentes, desde que nunca mais trouxesse ninguém de volta dos mortos.

Em torno de 420 a.C., aproximadamente vinte anos antes de Sócrates beber o veneno, o deus da medicina havia sido invocado para afastar uma peste em Atenas, no que foi aparentemente bem sucedido. Poucos anos após, Asclépio também foi inserido definitivamente nos ritos dos Mistérios de Elêusis, que eram cultos agrícolas de cunho místico-iniciático celebrados nas proximidades de Atenas – é quase certo que tanto Sócrates quanto Platão não somente os conheciam como também participaram de suas celebrações; e, o que é mais importante, tiveram o seu pensamento influenciado por tais ritos.

Eventualmente o culto a Asclépio cresceu, e entre os romanos, sob o nome de Esculápio, ele chegou a ter templos em dezenas de cidades. Se as práticas do seu culto foram fieis a época de Sócrates (de onde não temos relatos lá muito precisos), então podemos considerar que elas eram mais ou menos assim:

O paciente adentrava o templo, se purificava na fonte do santuário e oferecia um sacrifício. Oferendas comuns eram bolos de mel, bolos de queijo e figos. Preces, meditação, o canto de hinos sacros, banhos medicinais, exposição à luz do sol, caminhadas de pés descalços, uma dieta especial, abstinência de sexo e exercícios físicos também eram muitas vezes parte do ritual e do tratamento. À noite o doente se dirigia a um quarto reservado, a fim de dormir e se produzir a enkoimesis, ou "incubação", ou seja, a revelação do deus em sonhos, o que frequentemente acontecia. O deus ou aparecia e curava diretamente, ou dava instruções sobre um tratamento específico, o que às vezes acontecia ao longo de vários dias em sonhos diferentes. Os sonhos eram então relatados ao sacerdote, que interpretava ou complementava as instruções. Ocasionalmente o deus transformava uma doença séria em outra mais branda, e então a deixava ao cuidado dos médicos. Às vezes os sonhos não eram necessários, e a cura se efetuava imediatamente. Se a pessoa fosse curada, o costume era agradecer com um novo sacrifício, então geralmente era oferecido um galo ou uma soma em dinheiro.

Ou seja, o galo que Sócrates “devia” a Asclépio não era uma dívida ordinária, mundana, mas uma forma de oferenda em agradecimento a uma cura alcançada. E a cura que o filósofo julgava ter alcançado era justamente aquela que o permitiria, enfim, viajar para o mundo dos deuses. E não por um motivo fútil, não por uma fuga da vida, mas tanto o oposto disso: por haver defendido a sua verdade até o fim.

***

Crédito das imagens: [topo] Jacques-Louis David (1787); [ao longo] Google Image Search (culto a Asclépio/Esculápio)

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29.5.20

O mundo vai acabar

Neste vídeo vamos analisar o que significa, de fato, o chamado Apocalipse, e porque isso não tem nada a ver com fugir deste planeta numa nave espacial (ou numa carruagem angelical). Ao final, leio um trecho do Evangelho de Tomé (apócrifo).

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18.5.20

Bate-papo Mayhem: o aspecto emocional do Sefirat ha Ômer, com Raph

Oi pessoal. Enquanto não volto a postar vídeos no canal do Textos para Reflexão, vocês podem aproveitar para assistir a minha participação no programa Bate-papo do Projeto Mayhem, onde fui recebido pelo meu amigo Marcelo Del Debbio e falei sobre o aspecto emocional do Sefirat ha Ômer, uma prática de meditação do misticismo judaico:

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18.3.20

Yoga, a via para o Eu Supremo

Neste vídeo tentaremos definir o que é, de verdade, o Yoga. Também falaremos sobre as duas vias possíveis para a Unidade com o Eu; e, ao final, indicamos a leitura de um livro sobre o tema, escrito por uma das maiores espiritualistas de nossa história: Annie Besant.

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29.10.19

Rumi, Shams e o Segredo de Allah

Neste vídeo falaremos sobre o grande encontro místico entre o poeta sufi Jalal ud-Din Rumi e o andarilho misterioso Shams de Tabriz, que ficou conhecido na tradição do sufismo, o misticismo islâmico, como o encontro de dois oceanos. Ao final, recito um poema de Rumi.

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22.10.19

O encontro de dois oceanos

Conta a lenda que no dia 28 de novembro de 1244 em Konya, na atual Turquia, numa região que era então conhecida como Rum (ou Sultanato de Rum), o grande teólogo islâmico Jalal ud-Din Rumi, herdeiro espiritual da tradição do próprio pai, Baha’ud Din Walad, ensinava a cerca de uma ou duas dúzias de discípulos às margens de um pequeno lago da região, sob o sol da tardinha persa.

Do próprio pai, Rumi aprendeu teologia e os cânones da literatura clássica árabe. De um dos discípulos do pai, por cerca de uma década aprendeu todos os segredos do chamado “conhecimento inspirado”, a fonte para se trilhar a via mística. No entanto, aquela altura, já perto dos 40 anos, ele era mais conhecido como um mestre da filosofia, da poesia clássica, da teologia, da jurisprudência e da moral – muito mais um propagador de conhecimentos, sejam intelectuais ou espirituais, do que propriamente um místico. Isso estava para mudar naquele dia...

Vindo pela estrada que beirava a margem do lago onde estavam, surgiu um andarilho de idade relativamente avançada, envolto num manto negro de feltro ordinário, com sapatos um tanto desgastados, que aparentava carregar consigo o pouco que necessitava para cruzar grandes distâncias a pé. Seu olhar era ao mesmo tempo atraente, magnético, inquisitivo e assustador, de modo que antes que ele abrisse a boca, a aula já havia sido interrompida. Quando ele falou, apontando para a pilha de livros ao lado de Rumi, tinha a atenção de todos os presentes:

“O que há nesses papeis?”

“Aqui só há palavras,” – respondeu Rumi – “em que podem lhe interessar?”

O andarilho, que agora mais de perto se via claramente tratar-se de um sufi (isto é, uma espécie de místico asceta nômade), simplesmente caminhou até ao lado de Rumi, apanhou a pilha de livros e, num rompante repentino de aparente insanidade, atirou tudo nas águas do lago!

Rumi levantou-se, furioso, e o repreendeu:

“Você faz ideia do que fez? Alguns desses livros continham manuscritos importantes de meu pai, que não se encontram copiados em nenhum outro lugar!”

Então, para espanto de todos os presentes, que o testemunharam à posteridade, o sufi se encaminhou até a beirada do lago e, entoando uma espécie de cântico meditativo, de alguma forma fez com que os ventos soprassem em sua direção, trazendo todos os livros de volta para a margem. Ele os recolheu e levou de volta a Rumi. Para a surpresa geral, estavam perfeitamente secos.

“Qual é o segredo envolvido nisso?” – indagou o teólogo.

“Aqui só há êxtase espiritual,” – respondeu o sufi – “em que pode lhe interessar?”

Antes que pudesse refletir sobre a enigmática resposta, Rumi constatou que os manuscritos do pai estavam em branco:

“Ei! Mas as palavras de meu pai sumiram; faça com que elas retornem, feiticeiro!”

“Jalal ud-Din, deixa para trás as palavras de seu pai, elas já tiveram a sua utilidade. Agora é hora de escrever as suas próprias palavras.”

“Como sabe meu nome?”

“Meu antigo mestre, em Tabriz, me disse que em Konya vivia um grande conhecedor da nossa religião islâmica, que já havia cruzado seu caminho com Farid ud-Din Attar e Ibn Arabi, e que hoje vivia enjaulado numa gaiola de palavras. Então eu, que também sou conhecido como parinda [o pássaro, ou o voador] resolvi vir até aqui para libertar outro pássaro.”

Desde esse dia, enquanto ambos estiveram livres para tal, Jalal ud-Din Rumi e aquele sufi andarilho, chamado Shams de Tabriz, jamais deixaram de dialogar sobre Allah, sobre o amor, sobre a via mística, enfim: sobre tudo o que não se encontra nas palavras e nos livros. Tal conjunção de almas ficou conhecida na tradição do sufismo como “o encontro de dois oceanos”.

Shams se recusava a dar maiores detalhes da sua história de vida. Uns dizem que a sua família era ismaelita, uma vertente dissidente e minoritária do Islã, e costumavam se passar por loucos ou tolos, talvez de modo a não levantar maiores suspeitas sobre suas práticas religiosas heterodoxas. Outros afirmam que ele era originalmente um membro da tribo dos Hashishins da Síria, liderada pelo lendário Alaodin, “O Velho da Montanha”, cujas práticas religiosas admitiam variadas formas de estados alterados de consciência, principalmente através da dança. Ora, mais tarde, privado da companhia de Shams, Rumi iria desenvolver um método de dança mística rodopiante conhecida como sama, que mais tarde seria aperfeiçoada pelo seu filho mais velho – talvez ele a tenha aprendido de Shams, ou talvez tenha sido indiretamente influenciado por ele.

Fato é que, uma vez privados das aulas de seu mestre, que agora passava seus dias e suas noites na companhia inseparável daquele estranho andarilho místico, dialogando sobre assuntos que não se liam em nenhum livro, os discípulos de Rumi tramaram para afastá-los. Na primeira vez em que Shams deixou Konya na surdina, temendo causar maiores problemas naquela comunidade, Rumi iniciou a sua jornada pela poesia mística, motivo principal por ser celebrado até hoje, no mundo árabe e fora dele. Desesperado ante a ausência do amigo, Rumi começou a lhe endereçar belíssimas cartas em formato poético, até o dia em que conseguiu convencê-lo a retornar de Damasco, onde havia residido durante a sua ausência.

Ante tal insistência, no entanto, os discípulos resolveram assassinar Shams, e enterrá-lo num poço da região. Com a ausência derradeira do amigo, Rumi começa a dançar em transe, recitando os poemas que o imortalizaram, todos eles cuidadosamente anotados pelos seus discípulos (quiçá alguns deles os próprios assassinos de Shams)...

Não importa, os dias e as noites em que eles passaram juntos estão hoje marcados na Eternidade, pois poucas vezes se viu na história humana dois místicos que se complementassem tão bem um ao outro: Rumi, o teólogo ortodoxo que, não obstante, dissolveu-se inteiramente nas profundidades do Amor; e Shams, o santo andarilho de origens incertas e nebulosas, cuja estatura espiritual ofuscava a todos, como o Sol.

Quando [finalmente] encontrei Rumi, a primeira condição foi de que não me apresentasse como um mestre. Allah ainda não criou o homem que possa ser como um mestre para ele. Eu tampouco estou em condições de ser o discípulo de alguém, já estou muito além dessa etapa. (Shams de Tabriz, Maqalat, 33)

Eu tinha em Tabriz um mestre espiritual, Abu-Bakr, e foi dele que obtive todas as santidades. No entanto, havia em mim algo que meu mestre não pôde ver; de fato, ninguém era capaz de vê-lo. Mas Rumi o viu.
Eu era água estagnada, fervendo e entornando-me sobre mim mesmo e já começando a cheirar mal, até que a existência de Rumi me encontrou; então aquela água começou a correr e continua correndo doce, fresca, saborosa. (Shams de Tabriz, Maqalat, 245-246)

***

O amor não é condescendência,
nem livros ou qualquer marca em papel,
nem o que uma pessoa diz para a outra.

O amor é uma árvore
com seus galhos se elevando ao Alto,
suas raízes se aprofundando na Eternidade
e nenhum tronco!

Você o viu?
A mente é cega para ele.
Seu desejo é incapaz de observá-lo.
A saudade que sente desse amor
vem do seu interior.

Quando se tornar o Amigo,
sua saudade será como o náufrago no oceano
agarrado a um pedaço de madeira...

Eventualmente, madeira, homem e oceano
se tornam um ser ondulante:
Shams de Tabriz, o segredo de Allah.

(Jalal ud-Din Rumi)

***

Crédito das imagens: Google Image Search

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22.7.19

4 Amores: Ágape

Neste vídeo encerramos a nossa jornada pelo Amor, finalmente falando de Ágape, o amor que traz consigo a iluminação. Para tentar descrever um nível tão elevado e inefável de Amor, demonstraremos como se dá parte do trabalho do famoso médico-palhaço, Patch Adams, que pode muito bem ser considerado um santo da era moderna. Podem nos faltar palavras, mas sobrarão brincadeiras e um belo exemplo de vida.

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28.3.19

As Canções de Kabir

Rabindranath Tagore foi o primeiro não ocidental a vencer o Prêmio Nobel de Literatura, em 1913, e também o único ser humano responsável pela composição do hino nacional de duas nações: Índia e Bangladesh. Tagore foi um dos maiores poetas do Oriente, e aquele que conferiu o título de “Mahatma” (grande alma) a Gandhi. Mas este artigo não quer tratar de Tagore ou de sua poesia, e sim da sua grande fonte de inspiração: um homem, um poeta, uma lenda conhecida simplesmente como Kabir (“Grande”, em árabe).

Pouco se sabe da sua história com exatidão além de que viveu a maior parte da vida na cidade de Varanasi, no nordeste da Índia, durante o século XV (e início do XVI). Varanasi, às margens do Ganges, é uma das principais cidades do hinduísmo, e uma das cidades continuamente habitadas mais antigas da humanidade, com pelo menos 3 mil anos.

Tendo nascido aproximadamente em 1440 nos arredores de Varanasi, e morrido aproximadamente em 1518 na cidade próxima de Mughar, Kabir passou toda a vida sob o domínio islâmico do Sultanato de Delhi (1206-1526), que no entanto era consideravelmente tolerante para com as práticas hindus. Apesar de possuir um nome árabe, Kabir sempre desdenhou dos rótulos religiosos e das castas sociais, tanto que é até hoje considerado islâmico e hindu ao mesmo tempo (o que, mesmo naquela época, já era algo incomum).

Muito bem, a partir deste ponto, a realidade se confunde com a lenda... Segundo a tradição, Kabir nasceu numa família que professava o hinduísmo, pertencente à casta dos brâmanes (a mais “elevada” delas, reservada aos sábios e sacerdotes). Porém, seu pai morreu cedo e a sua mãe, sem ter condições de educá-lo, o ofereceu em adoção. Kabir foi adotado e educado por um casal de muçulmanos relativamente pobres, o tecelão Niru e sua esposa Nima. Naquele tempo, como ainda hoje, a comunidade islâmica de Varanasi dominava a produção e o comércio de tecidos finos. Assim sendo, Kabir alcançou cedo a maestria na arte da tecelagem, e durante o restante da vida trabalhou com ela.

Quando seu pai adotivo morreu, Kabir assumiu o seu posto como tecelão e vendedor de tecidos, de onde tirava o pálido sustento dele e da mãe. Durante o trabalho, no entanto, entrava frequentemente em êxtase místico e, assim absorto noutros mundos, tecia peças fora da medida ou era facilmente roubado por ladrões quando as expunha no mercado. Era necessário que ele disciplinasse tal vocação espiritual, e foi assim que procurou ajuda no ashram de Ramananda, um dos maiores expoentes da bhakti yoga no hinduísmo da época.

Felizmente, Ramananda também foi um dos primeiros grandes mestres daquele tempo a aceitar discípulos de todas as castas e credos. Tomando contato com aquele jovem tecelão, não se importou que fosse pobre e vindo de família islâmica: viu, em seus olhos, toda a sua potência espiritual, e logo o acolheu.

Sob a generosa tutela deste grandioso mestre, Kabir em poucos anos veio a alcançar ele mesmo o status de santo e sábio, reconhecido por muitos discípulos e inúmeros admiradores (inclusive advindos do islamismo). Mas a lenda de Kabir vai além: mantida em sigilo por séculos, a informação de que ele também teria sido instruído por outro mestre foi revelada por Paramahansa Yogananda (1893-1953) em sua célebre autobiografia. Segundo nos revelou Yogananda já no século XX, Kabir também teria sido instruído por Bábaji, um lendário iogue de sua época (considerado por muitos hindus como “o maior dos iogues perfeitos”).

A conexão de Kabir com grandes místicos do seu século não termina aí. No siquismo se diz que Kabir também foi uma das inspirações do próprio guru Nanak (1469-1539). A poesia de Kabir também encontra paralelos evidentes tanto com o misticismo hindu (sobretudo a bhakti yoga) quanto com o sufismo, o misticismo islâmico.

Assim sendo, não surpreende que Tagore, não mais do que dois anos após alcançar o reconhecimento ocidental com o seu Nobel, tenha se dedicado a selecionar e traduzir poemas de Kabir para o inglês. Através desta obra, Songs of Kabir (As Canções de Kabir), o grande poeta de Varanasi foi finalmente conhecido no Ocidente.

Antes de lhes apresentar trechos deste livro, resta-nos ainda uma última lenda (ou anedota) por contar:

Quando Kabir morreu, tanto os hindus quanto os muçulmanos o reivindicaram como deles e houve uma disputa para cremar ou enterrar seu cadáver. Os hindus queriam cremá-lo conforme a sua tradição e os muçulmanos queriam enterrá-lo, seguindo seus costumes. Há uma história popular a respeito de sua morte, que é ensinada como evento histórico em muitas escolas indianas: ela conta que quando abriram o caixão para disputar o corpo, lá encontraram um livreto sobre sua filosofia desdenhando tanto as crenças hindus quanto as islâmicas, e um buquê com suas flores favoritas! O corpo do santo havia desaparecido e nunca jamais foi encontrado.

Agora sim, para encerrar, algumas canções de Kabir (na tradução de Rafael Arrais):

IV.

Não vá até o bosque!
Ó meu amigo, não vá!

Em seu corpo
existe o bosque, cheio de flores...
Tome o seu lugar
numa das milhares de pétalas da lótus,
e então contemple
a Beleza Infinita.


XIV.

O rio e suas ondas
fluem como um só:
qual a diferença entre eles?

Quando se eleva a onda,
ela é a água;
e quando ela rebenta,
ainda é a mesma água...
Diga-me, ó senhor,
onde está a diferença?

Se acaso a chamaram "onda",
não pode mais ser chamada "água"?

Nas mãos de Brama,
os mundos estão sendo contados
um a um, como as contas de um rosário:
contemple-o com os olhos da sabedoria.


XVI.

Entre os polos da consciência e da inconsciência,
lá a mente fez a sua oscilação:
neste movimento se sustentam todos os seres e todos os mundos,
e este pêndulo jamais deixa de oscilar.

Milhões de seres estão lá;
o sol e a lua e os seus cursos estão lá.
Passam-se milhões de anos,
e seu movimento persiste...

Tudo em fluxo!
O céu e a terra e o ar e a água,
e o próprio Lorde tomando forma:
foi esta a visão que fez de Kabir um servo.


raph

***

Bibliografia
The Songs of Kabir, trad. Rabindranath Tagore (diversas editoras); Kabir: 100 Poemas, trad. José Tadeu Arantes (Attar Editorial); Wikipédia.

Crédito das imagens: [topo] Google Image Search; [ao longo] Joel L.

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