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9.10.18

Pedras preciosas

Irfan já não aguentava mais tanto calor. Secretamente, rezava para que Allah fizesse com que a noite se derramasse logo no Saara. Sempre ouvira falar daquela distinta linha de trem que cruzava o maior deserto do planeta, mas nunca achou que um dia poria os pés na Mauritânia. Mas trabalho é trabalho, e ele precisava representar a empresa de peças de mineração francesa, que tinha enorme interesse no desenvolvimento da colônia.

Pelo menos aquele país quase que inteiramente plano possibilitava que a linha férrea fosse reta, tão reta que o trem quase não chacolejava. Além da praga e da súplica contra o calor que ele ouvia em sua própria mente, dizendo para si mesmo, tudo o que havia a volta eram pequenas e breves conversas em árabe e berbere; quase nenhum francês podia ser ouvido – o que o convenceu a se resignar com a solidão da viagem. Recostou a cabeça na janela e, contemplando a linha do horizonte que separava o amarelo e o azul semi-infinitos, dormiu.

O que ele se lembrou, em seguida, foi de ter ouvido uma voz doce e suave, reverberando em sua cabeça: “Irfan, venha! Há pedras preciosas no deserto, venha pegá-las!”

Acordou de um pulo, e pôde ver que já era noite, e o calor havia arrefecido e cedido lugar a um friozinho até mesmo agradável. Mas estava escuro, muito escuro dentro do trem. Nenhuma luz funcionava. Viu que os outros passageiros estavam tão assustados quanto ele. Tentou ligar sua lanterna, sem sucesso. Parecia que toda a luz do mundo havia sido retirada, o que restava era um breu noturno, com a parca luminosidade de uma lua crescente.

Irfan, venha! Há pedras preciosas no deserto, venha pegá-las!”

Desta vez ouviu acordado, e poderia jurar que todos os demais passageiros no trem ouviam exatamente a mesma coisa, quiçá cada um em seu próprio idioma. Colocou de novo a cara no vidro da janela: lá fora era tão escuro que, houvesse mesmo pedras preciosas em meio a tanta areia, seria impossível saber de longe. Teria de sair do trem.

“Irfan, venha! Há pedras preciosas no deserto, venha pegá-las!”

O trem, inexplicavelmente, foi parando lentamente no meio do Saara. Não havia cidade alguma nas imediações, e o sistema de som tampouco funcionava. Parecia uma pane geral. Mas, por que tudo estava tão estranhamente escuro? E aquela voz, de onde teria vindo? Seria Allah?

Irfan foi interrompido pelo som da abertura da porta do vagão. Havia uma pessoa se aventurando no deserto! Ele observou que ela encheu os bolsos de areia e logo retornou... Que maluquice!

Logo, outros passageiros resolveram fazer o mesmo. Eram minoria no vagão, mas observando as silhuetas humanas contra a luz do luar, parecia óbvio que pessoas dos demais vagões também resolveram descer e apanhar areia. Irfan observou que no seu próprio vagão menos da metade havia descido. “Descer para pegar areia?” – pensou consigo mesmo – “E se o trem partir? Mas e se... e se não for somente areia?”

Resolveu descer. Afinal, não se cruza o deserto de trem toda hora. Pegou um punhado de areia nas mãos, mas estava escuro demais para perceber qualquer pedra preciosa ali. O jeito seria guardar nos bolsos para analisar na manhã seguinte...

Enquanto enchia os bolsos de areia, percebeu que havia um casal que trouxe suas próprias malas para fora do vagão, e estavam jogando a roupa toda fora. Achou aquilo tudo tão inusitado que foi falar com eles, tentando ver se entendiam francês.

“Sim meu senhor, eu e minha amada já viajamos pela Europa, conhecemos francês, inglês e até mesmo um pouco de alemão. Me chamo Asik, e esta é a bela Duniazade.”

“Mas por que estão se desfazendo das suas roupas?”

“Ora, você não escutou a voz? Se esta areia estiver cheia de pedras preciosas, o que seria toda a nossa bagagem perto de tamanha preciosidade? E, se tudo o que houver for somente areia, compramos roupas novas na próxima parada!”

Aquele homem pareceu tão louco que Irfan ficou por um momento atônito. Resolveu se despedir e retornar para seu assento no vagão. “Devo eu mesmo ser um pouco louco, afinal estou com os bolsos cheios de areia” – pensou, e logo dormiu novamente, quando o trem retornou ao movimento. Estava um clima agradável, e por isso dormiu com um sorriso, pois Allah havia atendido sua prece contra o calor.

Na manhã seguinte, acordou com gritos efusivos de comemoração.

“Ricos, estamos ricos!” – foi o que Irfan pôde compreender do árabe.

Logo, retirou o punhado de areia de um dos bolsos. Sob o brilho do sol, pôde ver esmeraldas verdejantes e grandiosos rubis. Allah é grande.


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***

Comentário
Ouvi este conto, de maneira bem mais resumida, da boca de um sheikh sufi da Ordem Naqshbandi.

A vida é como uma viagem de trem. Entre uma e outra parada, temos a oportunidade de colher pedras preciosas. Disse Isa (Jesus) no Evangelho de Tomé que “o Reino está espalhado pela Terra, mas os homens não o veem” – isto é, tudo o que um místico faz é desenvolver olhos para contemplar o Reino. As pedras preciosas não são esmeraldas e rubis reais, mais metáforas para o conhecimento de Allah, o autoconhecimento, a gnose do Amor.

Quando o trem para em meio ao deserto, e está estranhamente escuro, nem todos têm coragem de descer e seguir a voz em sua mente (ou coração). Já aqueles que estão dispostos a trocar as quinquilharias de suas bagagens por tais pedras espirituais, estes são ainda bem mais raros. Eles não somente contemplaram o Reino espiritual, como verdadeiramente se desapegaram do mundo.

O Reino espiritual e o mundo também podem ser uma coisa só. Tudo o que se modifica é a nossa maneira de enxergar. Ou, como bem resumiu Jalal ud-Din Rumi:

A alma é a fonte,
e as coisas criadas, os rios.
Enquanto a fonte jorra, correm os rios.
Tira da cabeça todo o pesar
e sorve aos borbotões a água deste rio.
Que a água não seca, ela não tem fim.

***

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Crédito da imagem: Google Image Search

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2 comentários:

Blogger Alexandre Bismarck disse...

Rafael obrigado pela inspiração. É um prazer poder me nutrir do seu trabalho. Obrigado.

18/10/18 22:26  
Blogger raph disse...

Valeu Alexandre, obrigado por refletir adiante :)

19/10/18 09:35  

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