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27.8.19

A espiritualidade de Sócrates

Hoje acreditamos que filosofia e espiritualidade são coisas diferentes, campos distintos. Mas segundo o filósofo francês Michel Foucault, como discutido em seu livro A Hermenêutica do Sujeito, na Antiguidade essas áreas eram mais permeáveis entre si.

Neste texto, veremos o caso de Sócrates. Como todos já devem saber, o pai da filosofia foi condenado à morte acusado de “corromper a juventude”. O que sabemos na verdade, segundo os relatos de Platão, é que Sócrates era um sujeito bastante incômodo em Atenas.

Sócrates perambulava pelas ruas da cidade questionando o que as pessoas pensavam ser a verdade sobre a justiça, sobre o bem, sobre a fortuna, e por aí vai. Após uma série de indagações que demonstravam o desconhecimento mais profundo do seu interlocutor sobre estes temas, os cidadãos de Atenas saíam aborrecidos, queixando-se da atividade do filósofo.

Porém, o objetivo de Sócrates não era simplesmente perturbar as pessoas. Vejamos o que ele mesmo diz em sua defesa durante seu julgamento:

"Que tratamento, que multa mereço eu por ter acreditado que deveria renunciar a uma vida tranquila, negligenciar o que a maioria dos homens estima, como fortuna, interesse privado, postos militares, sucesso na tribuna, magistraturas, coalizões, facções políticas? Por oferecer a cada um de vós em particular, aquilo que declaro ser o maior dos serviços, buscando persuadi-lo a preocupar-se menos com o que lhe pertence do que com sua própria pessoa, de pensar menos nas coisas da cidade do que na própria cidade, em suma, de aplicar a tudo esses mesmos princípios?”

De maneira simples, Sócrates se defendeu da acusação de ser um corruptor da cidade dizendo que seu objetivo era tentar convencer as pessoas a se dedicarem antes aos interesses de si mesmas que aos interesses da cidade (como adquirir riquezas, cargos e propriedades).

Não surpreende que não tenha convencido a ninguém em sua defesa. Sócrates de fato corrompia os valores atenienses. Ele questionava os valores que moviam os cidadãos em busca de dinheiro, fama e status, e lhes queria convencer a cuidar mais de suas próprias almas. Segundo Foucault, Sócrates iniciou assim a longa tradição ocidental do cuidado de si mesmo.

O que é o cuidado de si?
Cuidar-se de si significa formar-se como sujeito. Constituir uma relação consigo mesmo, definindo valores, identidade e assumindo regimes de verdades. É cuidar de sua própria alma, acreditando que há uma verdade nesse cuidado que pode nos conduzir a viver melhor. Ocupar-se consigo antes de se preocupar com as demandas da cidade. Isso é o que chamamos também de espiritualidade.

Sócrates se colocava na pólis como um guia espiritual. Ao ocupar-se dos outros, Sócrates era conhecido por constantemente não se ocupar consigo mesmo. Ele mesmo diz em seu discurso que negligenciou os bens em sua vida, não adquiriu fortuna, recusou vantagens cívicas e renunciou a qualquer carreira política, nem pleiteou cargo de magistratura para poder ocupar-se dos outros. De certo modo, Sócrates encarna a figura do terapeuta que traz o remédio aos males do outro, mas não pode tratar a si mesmo.

Sócrates encarnava a figura do mestre, que é uma figura essencial para o cuidado de si. Pois o cuidado de si tem sempre a necessidade de passar pela relação com um outro. Não por acaso procuramos ainda hoje psicólogos para tratar de nossa saúde mental (ou deveríamos). Também por isso a ideia de “autoajuda” é tão falha. Existe uma impossibilidade no trabalho solitário de si.

Porém, diferente de um professor, o mestre não é aquele que ensina aptidões e capacidades a quem ele guia. O mestre não ensina alguém a se comportar melhor ou prevalecer sobre os outros. O mestre é quem cuida do cuidado que o sujeito tem de si mesmo. Não cuida do discípulo, mas do cuidado que o discípulo tem para consigo. Aqui há a similaridade com a moderna figura do psicanalista, que não diz ao seu cliente como viver, mas faz ele refletir sobre sua maneira de viver.

Quando interpelava os jovens na rua, Sócrates lhes dizia: “é preciso que cuideis de vós mesmos”. Tal ato, mais do que a excentricidade de um velho, representa um acontecimento na história do pensamento ocidental. Pois do exercício filosófico de “conhecer a si mesmo para cuidar de si” de Sócrates, ao ascetismo cristão, chegando até mesmo às modernas formas de psicoterapia, centenas de anos de evolução do pensamento acontece, onde o denominador comum é a máxima que devemos cuidar de nós mesmos.

A espiritualidade do cuidado de si
Desde os antigos textos clássicos da filosofia às modernas receitas de autoajuda, das diferentes práticas de vida aos discursos terapêuticos, o princípio do cuidado de si aparece convertido em uma série de fórmulas como: sentir prazer consigo mesmo, ter cuidados com sua saúde, buscar a felicidade somente em si, encontrar a companhia de si mesmo, ser seu próprio amigo, estar em si como numa fortaleza, respeitar-se etc.

A ideia de que muitas vezes não podemos mudar o mundo, mas podemos transformar a nós mesmos, e ao mudar nossa própria conduta numa reforma íntima podemos viver de uma maneira diferente – talvez mais plenos, talvez mais felizes – é a base das terapêuticas que conduzem a transformações espirituais.

A espiritualidade é a relação com uma verdade que transforma. Não por acaso Sócrates estava tão obstinado em encontrar a verdade. Em qualquer caminho espiritual, a verdade nunca está em posse do sujeito. Temos uma relação de desconhecimento com a nossa existência. Não sabemos a priori nossa razão de ser. Para encontrar uma resposta a esta questão, não podemos fazer por um simples ato de conhecimento. A verdade sobre a vida não pode ser acessada com a simplicidade de apenas ler a bula de um medicamento.

Toda doutrina filosófica e espiritual exige que o sujeito se modifique, se transforme, se desloque, torne-se outro que não ele mesmo, para ter acesso à verdade. Na espiritualidade cristã, é morrer e renascer em Cristo. Em outras tradições, é o contínuo processo de elaboração na reforma íntima espiritual.

Pois o que está em jogo na espiritualidade é um trabalho, no sentido mais hegeliano do termo. A espiritualidade se define mesmo pelo modo no qual o sujeito deve se transformar na ascese para alcançar algo de uma “realização subjetiva”.

Um Sócrates espiritual
Sem querer estender muito além da questão socrática, concluímos este texto não para defender um Sócrates místico acima do filósofo, mas para sinalizar que essas dimensões não andavam separadas na Filosofia Antiga. Mais do que isso, Sócrates não é apenas o pai da filosofia ocidental, mas o precursor do modo como entendemos e praticamos a espiritualidade.

Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.

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Crédito da imagem: Google Image Search

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1 comentários:

Blogger Marta Silverio disse...

Só sei que nada sei...

Sócrates

5/4/22 23:57  

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