A filosofia pode ser terapêutica?
Segundo os pensadores do período helenístico, sim.
Na verdade, a filosofia naquela época era diferente de como a praticamos hoje. Se na filosofia moderna o conhecimento filosófico é ensinado como um discurso nas universidades, dedicada a tentar resolver os problemas da natureza do conhecimento – por exemplo, racionalismo versus empirismo, materialismo versus metafísica, objetividade versus subjetividade – na antiguidade clássica os filósofos viam a própria filosofia como uma “forma de viver”.
Ou seja, os filósofos estavam preocupados com os problemas da ética. E com ética eu não me refiro a moral. Não se tratava de simplesmente descobrir o “comportamento correto”, tal como seria numa moral religiosa, seja cristã, judia, budista ou qualquer outra.
A ética se refere ao modo como nos relacionamos com as coisas do mundo, com as outras pessoas e até mesmo com nossos próprios desejos. É muito mais um exercício a ser desenvolvido que uma norma a ser seguida. É neste sentido que a ética, numa concepção helenista, se aproxima do que hoje entendemos como o campo da psicologia, ou melhor, das psicoterapias.
Uma psicoterapia é também uma forma de pensar a maneira como nos relacionarmos com nossa vida, repensar nossos investimentos e cuidar daquilo que nos faz sofrer. Toda terapia – independente de sua abordagem – segue um ideal ético, ainda que cada terapia tenha a sua própria ética.
O terapêutico é a maneira como lidamos com o sofrimento, e para os helenistas, o sofrimento não é por acaso. Ele tem origem em nosso pensamento. Isto é, seja por pensamentos incorretos, raciocínios distorcidos ou modos patológicos de enxergar a realidade, nós sofremos.
E se a filosofia é, por excelência, o meio para nos fazer pensar melhor, não é estranho imaginar que ela poderia nos fazer sofrer menos também. [1]
Por trás do pensamento, no entanto, há o próprio desejo. Aquilo que o homem quer do mundo e na vida. Pensamos de determinada maneira porque queremos algo disso. Ao questionar o pensamento, a filosofia estaria na verdade investigando, explorando e tratando os nossos desejos, origem de nossos pensamentos, e causa do sofrimento.
Deste modo, as escolas filosóficas helenistas e suas diferentes propostas éticas eram, em última instância, modos de lidar e educar o próprio desejo. A filosofia aparece como uma terapia do desejo. [2]
Apresentarei a vocês neste texto resumidamente as três principais escolas do pensamento helenista e suas respectivas formas de lidar com o desejo:
O Epicuranismo e a busca pelo desejo verdadeiro
Fundada por Epicuro, esta escola entendia que o homem sofre porque ele tem “maus desejos”. Isto é, desejos ruins e artificiais, como a busca por dinheiro, fama, glória etc. Estes desejos seriam impróprios não por uma simples razão moralista, mas porque, de algum modo ou de outro, os filósofos percebiam que tais desejos não podiam trazer uma verdadeira felicidade. Eles não correspondiam ao que as pessoas realmente necessitavam na vida.
A verdadeira felicidade viria dos desejos verdadeiros, estes sim que deveriam ser buscados e valorizados. Epicuro, por exemplo, acreditava que a riqueza seria um bem vazio se não pudesse ser compartilhada com outras pessoas, criando com elas momentos de alegria. Deste modo, o dinheiro não é um verdadeiro desejo, mas sim a companhia de boas amizades. A busca por riqueza seria um desejo artificial, enquanto cultivar uma boa amizade ou um amor recompensaria melhor a nossa natureza.
A terapêutica de Epicuro dedicava-se, portanto, em descobrir que aquelas coisas que perseguimos normalmente são artificiais. Necessitamos descobrir quais são os nossos verdadeiros desejos, porque eles sim podem nos trazer a felicidade.
Por outro lado, esta terapêutica lida com o problema de que nem sempre reconhecemos o nosso desejo como ruim. Isto é, alguém pode gostar de seu mau desejo. A ética epicurista só seria praticável a alguém num momento em que já se percebe num nível “patológico”.
O Ceticismo e as expectativas
Outra escola importante da antiguidade era o ceticismo. Hoje usamos esta palavra para nos referir a pessoas que são cientificistas, que não acreditam ou duvidam de algo, ou até mesmo que são ateias. Porém, originalmente, os céticos eram aqueles que duvidavam de que existisse uma visão única sobre algo, que duvidavam de que havia uma verdade.
Podemos ver que os céticos concordavam com a visão de Epicuro de que o sofrimento humano tem origem em suas falsas crenças, em seus falsos desejos. Porque muitas vezes pensamos que aquilo que desejamos é verdadeiro e bom, e depois de perseguir tal ilusão nos decepcionamos e sofremos.
No entanto, os céticos discordavam dos epicuristas que a solução estaria em cultivar desejos melhores. Para eles, isto simplesmente não existia. Seria apenas trocar um falso desejo por outro, que inevitavelmente também nos faria sofrer em algum momento.
Aos céticos, o problema era a própria expectativa criada pelo desejo. A terapia cética buscava assim criar uma indiferença ao próprio desejo, pois, se somos indiferentes ao que desejamos, nos tornaríamos imunes aos sofrimentos das altas expectativas.
Porém, é necessário questionar até que ponto a expectativa seria algo evitável, ou mesmo se a indiferença seria vantajosa, e não apenas uma maneira de fugir dos paradoxos da vida e do desejo. Quem suportaria uma vida indiferente a tudo?
O Estoicismo e o autocontrole
Finalmente, a última das três principais escolas da antiguidade é o estoicismo. Esta deixou para a posterioridade o seu ideal ascético, tendo influenciado em muito o cristianismo. O objetivo estoico é substituir as paixões humanas pela razão. Seus filósofos acreditavam que nós não somos simples animais, movidos pelas nossas emoções, mas que através de nossa capacidade racional podemos alcançar uma vida superior.
Os estoicos viam o sofrimento no desejo. Em nossas paixões. Pois ao querermos coisas e não podermos tê-las ou transformá-las, terminaríamos frustrados. Nossas emoções nos fariam sempre demasiadamente humanos, mesquinhos pelos nossos interesses, incapazes de uma visão superior sobre a vida e a sociedade. O ideal estoico dizia então que o homem devia usar sua maior virtude, a racionalidade, para dominar a as suas paixões e exercitar o autocontrole.
É curioso que, como terapeuta, percebo que a maioria dos nossos clientes procuram o atendimento motivados por um ideal estoico. Geralmente percebem que há algo neles que não podem controlar, e desejam ter maior domínio sobre isso em suas vidas para não mais sofrerem.
No entanto, os estoicos precisam confrontar-se com a dificuldade – quiçá a impossibilidade muitas vezes – de serem sempre racionais ou não possuírem emoções ou paixões autênticas, por mais que estas pareçam injustas ou contraditórias. Será que o homem pode estar sempre no controle de si mesmo?
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Vemos, portanto, que os ideais terapêuticos que nossos clientes buscam ou que profissionais e influenciadores promovem por aí não nasceram da psicologia moderna. Inocentes são aqueles que acreditam nisso. Eles existem desde muitos séculos na filosofia, se não são anteriores a ela mesma.
É neste sentido que a filosofia pode ser sim terapêutica, já que a origem de nossa ética emerge dela, mesmo que disto não saibamos. Que alguém busque um desejo verdadeiro que lhe traga felicidade, que tente lutar contra suas próprias expectativas ou queira controlar a si mesmo através da racionalidade, tudo isto faz parte de um ideal ético filosófico.
Se a filosofia pode ser terapêutica é porque antes a terapia é filosófica. Cabe questionar, para além disso: qual é afinal a nossa ética?
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[1] Nota do Editor: antigamente o blog Textos para Reflexão tinha uma espécie de “slogan” – pensar para melhor viver. É interessante que, anos depois do “slogan” haver sumido, a sua essência tenha reaparecido aqui :)
[2] Mais sobre este tema pode ser lido no livro The Therapy of Desire de Martha Nussbaum.
Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.
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Crédito da imagem: Bill Ringer/Unsplash
Marcadores: ceticismo, Colunista: Igor Teo, colunistas, Epicuro, estoicismo, existência, filosofia, psicanálise, psicologia
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