Pular para conteúdo
13.7.18

Pensamento e linguagem

É possível haver pensamento sem linguagem?

Filósofos como Platão, Descartes, Kant e Henri Bergson acham que a linguagem é a manifestação de algo “superior”, como o intelecto, as ideias, a mente, a subjetividade ou, simplesmente, a razão.

Outros, como Charles Peirce, John Dewey, Wittgenstein e Habermas, em geral os linguistas e os estruturalistas, consideram que as capacidades de raciocínio, pensamento, recordação, memória e associação, enfim, o que se rotula como “mental”, dependem do aprendizado de signos, de apreensão e interpretação de imagens e símbolos.

Eu vou tentar aqui resolver essa pendenga histórica da filosofia sem citar filósofos (exceto Descartes, pois será necessário), apelando somente para o senso lógico de vocês. Pode parecer um assunto complexo a primeira vista, destinado a ser debatido “somente pelos grandes pensadores”, mas eu acho justamente o oposto: creio que qualquer um de nós com um pouco de bom senso, e sendo encaminhado passo a passo por certos conceitos, é capaz de perceber por si mesmo, de uma vez por todas, se há pensamento sem linguagem.

Então, vamos lá! A primeira coisa que precisaremos fazer é definir o que é exatamente pensamento e linguagem. Vamos começar pelo pensamento:

Etimologicamente, pensar significa avaliar o peso ou as características de alguma coisa. Em sentido amplo, podemos dizer que o pensamento tem como missão tornar-se o avaliador da realidade. Por exemplo, você pode ver três maçãs em cima de uma mesa, e ao comparar umas com as outras, poderá dizer qual é grande e qual é pequena. Qual é a menor de todas, qual a maior de todas, e qual a que é maior do que uma e menor do que a outra. Isso, é claro, considerando que elas tenham dimensões claramente díspares ao olho nu. Maçãs muito parecidas em tamanho serão classificadas pelo pensamento como iguais, seria necessária a ajuda de uma lente de aumento ou de alguma medição científica para determinarmos com exatidão plena qual a maior e qual a menor. Ainda assim, “maior” e “menor” farão parte de conceitos interpretados pelo pensamento.

Se formos nos limitar ao conceito do parágrafo acima, parece claro que seria impossível pensar sem usar linguagem, uma vez que estaríamos sempre avaliando alguma coisa, gerando uma intepretação clara e evidente a partir de uma observação da mente. Ocorre que o pensamento não é só isso, ou pelo menos foi assim que o definiu Descartes (e esta é a última vez que citarei um filósofo nesse artigo):

A essência do homem é pensar. (Por isso eu dizia): “Sou uma coisa que pensa, isto é, que duvida, que afirma e que ignora muitas coisas, que ama, que odeia, que quer e não quer, que também imagina e que sente”. (Logo quem pensa é consciente de sua existência): “penso, logo existo”.

Ora, pelo que foi dito acima, “penso, logo existo” seria tão válido quanto “imagino, logo existo”; ou “duvido, logo existo”; ou até mesmo “sinto, logo existo”. Nesse sentido chegamos à conclusão de que pensar não é somente o ato racional de se avaliar os objetos e elementos que percebemos em nossa mente, como também imaginar novos elementos, e até mesmo ter experiências misteriosas, como sentir dor ou amar apaixonadamente. Pois bem, agora vai faltar definirmos o que diabos é a linguagem...

Linguagem é geralmente definida como a capacidade especificamente humana para aquisição e utilização de sistemas complexos de comunicação. O estudo científico da linguagem, em qualquer um de seus sentidos, é chamado linguística. Os códigos e outros sistemas de comunicação construídos artificialmente, como aqueles usados ​​para programação de computadores, também podem ser chamados de linguagens – a linguagem, nesse sentido, é um sistema de sinais para codificação e decodificação de informações (guardem esse termo, “informação”).

De acordo com muitos estudiosos, a linguagem pode ter se originado quando os primeiros hominídeos começaram a cooperar, adaptando sistemas anteriores de comunicação baseados em gestos e sinais, compartilhando assim intencionalidade. Nessa linha, o desenvolvimento da linguagem pode ter coincidido com o aumento do volume do cérebro, e muitos linguistas acreditam que as estruturas da linguagem evoluíram a fim de servir a funções comunicativas e cognitivas específicas.

A linguagem, como o próprio termo parece indicar claramente, está diretamente relacionada à linguística, a capacidade exclusivamente humana de se interpretar símbolos e compartilhar informações por meio deles, como pela leitura e escrita de alfabetos, ou simplesmente pela vocalização de palavras e conceitos através da fala. Quem defende essa tese dirá que um papagaio pode até repetir o que um ser humano fala, mas não compreende aquilo que repete. Mas, será mesmo que os animais não possuem linguagem?

Bem, eu poderia citar a gorila Koko, por exemplo, que chegou a aprender mais de mil palavras e sinais, e conseguiu se comunicar claramente, embora de forma bem rudimentar, com pesquisadores. Mas ao invés disso vou trazer abaixo um vídeo gravado no Dolphin Quest Oahu, em Honolulu no Havaí, onde peixes treinados são capazes de reconhecer figuras geométricas (símbolos), e assim conseguir alguma comida em troca:

Seriam tais peixes capazes de compreender códigos simples? Seria a gorila Koko um exemplo vivo do surgimento da capacidade de interpretação de linguagem humana entre os animais? Isto vocês que devem definir, pois a maioria dos especialistas parece ter a certeza de que animais não compreendem linguagem.

Mas, para arrematar, precisaremos voltar a Descartes (ops, trouxe um maldito filósofo outra vez, me desculpem)...

Vocês se lembram que ele definiu o pensamento como algo que se imagina e que se sente, não é mesmo (está alguns parágrafos acima, caso queiram reler)? Pois bem, então imagine que você está imensamente apaixonado por alguém, como exatamente você vai explicar o seu sentimento em linguagem, em códigos simbólicos, em palavras escritas ou vocalizadas? Parece problemático, não?

E não precisamos nos referir a nada tão misterioso e transcendente como o “sentir amor”, ou ainda o “sentir dor”, ou mesmo o “adorar a Deus” ou “se assombrar com a Natureza”, podemos ter o mesmo tipo de problema ao observar aquelas mesmas maçãs em cima da mesa, e tentar explicar como exatamente percebemos “a vermelhidão do vermelho” em suas cascas. Pois que, no fundo, as palavras são tão somente cascas de sentimento, incapazes de abarcar completamente o sentimento e a imaginação humana (não a toa há um ditado popular que diz: uma imagem vale mais do que mil palavras).

Se um cientista, um linguista, quiçá um filósofo especialista em linguagem, fosse capaz de definir o amor em palavras, a poesia seria então ciência ou filosofia, e não arte.

Dessa forma, me parece que é claro que, dadas as definições usuais para “pensamento” e “linguagem”, que o pensamento precede a linguagem: enquanto esta é o fruto, aquele é a semente. E não só isso: há pensamentos que jamais conseguirão ser expressos claramente ou inteiramente em linguagem, há horizontes da mente humana intransponíveis, que jamais poderão ser comunicados inteiramente tanto aos demais, como a própria mente que “pensa, logo existe”.

Se, no entanto, consideramos a linguagem como um processo que lida com qualquer tipo de informação mental, não somente as humanas, ou as capazes de serem codificadas e decodificadas em linguagem humana, então seria melhor dizer que é impossível haver pensamento sem informação (e não sem linguagem)!

Informação, etimologicamente significa “dar forma a mente”. Me parece que os antigos, portanto, já tinham todo o mistério resolvido lá atrás: o pensamento dá forma a mente, mas não necessariamente uma forma unicamente racional, exprimível em linguagem humana. Muitas vezes, pensar é dar forma ao amor, dar forma ao medo, dar forma ao assombro perante o mistério da vida. Existimos, enfim, não somente porque sabemos que uma maçã é maior do que outra, mas essencialmente porque percebemos o vermelho, e não há outro instrumento na Natureza capaz de fazer o mesmo: interpretar o mundo, e não somente computar informações em linguagem.

Enfim, somos seres e não robôs. Se isto é algo “superior” ou “divino”, vai da crença de cada um. Mas não podemos ignorar os fatos, não podemos fingir que somos coisas pensantes, pois não há “coisa pensante”.

***

Crédito da imagem: Google Image Search

Marcadores: , , , , , , , , ,

4 comentários:

Blogger Camila Alves disse...

Achei muito interessante seu texto,estou fazendo um ensaio e o tema é : Para o indivíduo,o que vem primeiro? Pensamento ou linguagem?. E o seu texto me gerou muitas reflexões, obrigada.

9/10/18 18:28  
Blogger raph disse...

Legal, fico feliz em ter ajudado. Obrigado por refletir adiante :)

10/10/18 09:27  
Blogger Anderson Mattozinhos disse...

Olá Ralph! Gostei demais do sei post e já faz algum tempo que estou querendo gravar um podcast sobre esse tema. Queria te convidar para gravar comigo, o que acha? Tenho um site e um PodCast que se chama Geekonomics.

Se você animar podemos combinar, o que acha?

29/10/19 07:51  
Blogger Unknown disse...

Quando você coloca a dor em seu modo pensante, você já racionalizou a dor, já pensou nela, já a colocou em palavras. Pensar é uma das competências humanas, sentir é outra. Se eu te der um chute na canela você sentirá dor sem ter pensado. Quando você pensar na dor que está sentindo, ela poderá aumentar ou diminuir através da maneira que você reage as coisas do mundo. Se ao ler meu comentário você sentir repulsa, é sinal que você está racionalizando, ou seja pensando sentimentos. A isto chamo racionalização do sentir; permita-se pensar menos e sentir mais. A linguagem está muito atrelada ao pensamento, e ambos carregam um componente racional monstruoso. E o verbo se fez carne... veja como a racionalidade tenta prevalecer sobre a coisa em si, o ser. Já em relacão ao nosso sentir, deixe-os com a poesia!

21/2/22 03:49  

Postar um comentário

Toda reflexão é bem-vinda:

‹ Voltar a Home