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26.3.20

O Apocalipse do COVID-19 (parte 1)

Em geral costuma valer a pena buscar a origem etimológica das palavras quando nos propomos a refletir sobre seu significado. “Apocalipse”, por exemplo, vem do grego apokálypsis e significa literalmente “revelação”. Apesar do livro bíblico supostamente trazer a revelação do fim dos tempos, esta é também somente uma interpretação: o fim de um tempo pode, afinal, apenas significar a transição repentina para um novo tempo.

No entanto, se tem uma coisa que não foi repentina foi o surto do chamado Novo Coronavírus, o COVID-19. Aliás, hoje boa parte do planeta se encontra em quarentena por conta dele, e na origem do próprio termo “quarentena” nós já podemos verificar que certamente já passamos por várias crises como esta, e em situações tecnológicas e sanitárias bem mais calamitosas.

A origem da palavra vem da língua veneta (antigo dialeto italiano), e se referia originalmente ao período de quarenta dias em que todos os barcos deveriam ser isolados antes que passageiros e tripulantes pudessem desembarcar numa cidade costeira. Era a época da peste negra, que no século XIV matou cerca de um terço da população europeia.

Ora, é óbvio que o Coronavírus não é uma nova peste negra, mas mesmo assim ele pode ser bem mais perigoso do que se julgou a primeira vista. Para explicar melhor o seu real perigo, é preciso falar de ciência:

A ciência e o Coronavírus
Existem muitos coronavírus diferentes. A maioria deles causa doença em animais. No entanto, sete tipos de coronavírus são conhecidos por causar doença em seres humanos. Quatro dessas sete infecções por coronavírus em humanos envolvem doença do trato respiratório superior leve, que causa os mesmos sintomas do resfriado comum. No entanto, três das sete infecções por coronavírus em humanos podem ser muito mais graves, e recentemente causaram grandes surtos de pneumonia mortal.

A primeira, assim como o COVID-19, também surgiu na China, em 2002, e o seu nome era SARS (ou Síndrome Respiratória Aguda Grave). Houve um surto mundial que resultou em mais de oito mil casos no mundo todo, e um total de 811 mortes. Nenhum caso foi relatado no mundo desde 2004, e hoje se considera que a SARS foi totalmente erradicada (a doença, mas não o vírus). Presume-se que a fonte imediata de transmissão do vírus para os humanos tenham sido as civetas, mamíferos semelhantes a gatos, que estavam sendo vendidas em mercados de animais vivos (wet markets) como alimentos exóticos. Como as civetas foram infectadas não está claro, embora os biólogos presumam que os morcegos sejam o hospedeiro reservatório do vírus SARS na natureza.

A segunda ficou conhecida como MERS (ou Síndrome Respiratória do Oriente Médio) e teve origem no Oriente Médio, em 2012. Ainda não foi inteiramente erradicada, mas hoje novos casos são bem raros. Ela ceifou cerca de 790 vidas em todo o mundo, e os biólogos presumem que seu hospedeiro na natureza seja o dromedário.

A terceira, no entanto, é um caso totalmente a parte. Surgida no final de 2019, em meados de Fevereiro do ano seguinte ela já havia matado mais do que as duas anteriores. Em Março de 2020 o COVID-19, ou Novo Coronavírus, já estava matando diariamente em países como Itália e Espanha mais do que a MERS e a SARS mataram até hoje em todo o mundo. No entanto, sua taxa de letalidade é consideravelmente inferior as anteriores, girando em torno de 3% a 4%. Então, como diabos esse vírus pegou o mundo desprevenido? Em boa medida, porque o mundo não o levou tão a sério, até que fosse tarde demais.

Como a China havia concentrado a grande maioria dos casos e dos óbitos do SARS quase 20 anos antes, a princípio muitos governos imaginaram que o mesmo ocorreria com o COVID-19. Além disso, cerca de 80% dos que pegam o vírus apresentam no máximo os mesmos sintomas de uma gripe comum, e estima-se que tais pacientes assintomáticos foram responsáveis por dois em cada três casos de contágio. Para piorar a situação, ao contrário de doenças mais graves que debilitam o paciente em poucas horas ou dias, o COVID-19 tem um tempo de incubação médio de 5 dias, podendo chegar até mesmo a 14 dias. Nesse período quase todos estão sem sintoma algum e, no entanto, já podem transmitir o vírus aos demais. Somente 20% dos casos, em média, requerem tratamento em leito hospitalar, sendo que só 5% chegam a necessitar de internação em UTI. Assim sendo, de cada pessoa infectada que sente sintomas graves o suficiente para buscar um hospital, quatro outras estarão com sintomas de uma gripe comum, ou inteiramente assintomáticas – a maioria, portanto, nem vai perceber que pegou o vírus.

Quando ouvi dizer que somente cerca de 3,5% das pessoas infectadas estavam morrendo de COVID-19, eu mesmo achava que o Brasil deveria estar se preocupando mais com o surto da Dengue, para dar um exemplo prático. No entanto, eu estava redondamente enganado, assim como muitos dos que, por pura ignorância, subestimaram o novo vírus.

Ora, ocorre que, devido ao seu longo tempo de incubação e a possibilidade de ser transmitido mesmo por pessoas sem sintoma algum, a capacidade do COVID-19 de se espalhar rapidamente pelo planeta, de forma exponencial, é o que o torna um desafio sem precedentes para os sistemas de saúde pública da era moderna. A grande questão é que, ainda que somente 20% dos infectados necessite de tratamento hospitalar, quando o vírus atinge um novo país, alcançando uma nova população que nunca entrou em contato com ele, o COVID-19 pode potencialmente se espalhar de maneira tão rápida que serão dezenas de milhares de contagiados a bater as portas dos hospitais ao mesmo tempo, e isso nem a China nem qualquer outro país do mundo teria condições de suportar sem que o seu sistema de saúde entrasse em colapso.

É exatamente o que ocorreu no norte da Itália, e ligou o sinal de alerta vermelho em todo o mundo. Enquanto a China, uma ditadura comunista, não teve grandes dificuldades em manter uma quarentena forçada em Wuhan, mantendo quase 11 milhões de pessoas (quase uma São Paulo) presas em casa, a Itália teve idas e vindas em sua própria quarentena, o que comprometeu seriamente a sua eficácia.

Moral da história: o COVID-19 está longe de ser o vírus mais letal do mundo, e de fato a maioria dos infectados não sofrerá grandes consequências. Mas é exatamente por isso que ele é um problema tão grave para os sistemas de saúde no mundo, principalmente em suas ondas iniciais de contágio. É por isso que em Março de 2020 boa parte do Ocidente fechou as portas, mantendo toda a sua população em quarentena. Na Índia, por sinal, tivemos o início da maior quarentena da história humana, com mais de um bilhão de pessoas restritas aos seus devidos lares.

Isso deve causar uma crise econômica global que vai entrar para os anais da história. Mas é melhor que os livros de história no futuro falem de uma época onde houve um súbito pico de desemprego e falências de empresas [1] do que de um tempo onde caixões se amontoavam nas ruas, e precisavam ser buscados por caminhões do exército.

» Na sequência, no que a Filosofia pode nos ajudar nessa crise.

***

[1] Como o tema é particularmente polêmico, cabe uma explicação mais "direto ao ponto": é óbvio que ninguém deseja causar uma crise econômica desnecessariamente, mas hoje já sabemos que se não for feita uma quarentena abrangente, como a chinesa, corremos o risco de estender a própria crise econômica por ainda mais tempo, como ocorre na Itália. Dito isso, é preciso bom senso para decidir com a devida cautela o que é ou não um serviço essencial, que não deveria ser afetado pela quarentena. No Brasil, por exemplo, penso que postos de estrada são essenciais para que nossos caminhoneiros continuem abastecendo os supermercados e farmácias país afora sem morrerem de fome no caminho; já quanto aos templos e igrejas, não faz o menor sentido que fiquem abertos.

Crédito das imagens: [topo] Adli Wahid/unsplash (na China, cartazes em homenagem ao Dr. Li Wenliang, o primeiro a alertar as autoridades acerca da gravidade do vírus, e que infelizmente morreu infectado); [ao longo] Vaticano (o Papa Francisco abençoa o Vaticano esvaziado em plena quarentena).

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2 comentários:

Blogger PDDO disse...

a maioria dos Brasileiros não tem dinheiro guardado,e existem muitas pessoas na informalidade devido ao desemprego, os empresários não vão querer pagar os funcionário que estão em casa, o governo não vai querer liberar o FGTS e nem ajuda financeira, pq isso causaria aglomeração de pessoas a ajudaria a espalhar o vírus, da onde essas pessoas vão tirar dinheiro para comprar alimentos, remédios, pagar dividas, comprar agua, pq algumas pessoas não veem esse lado, só se preocupam em reclamar de políticos de ambos os lados, não é hora de reclamar, temos que nos ajudar, para conseguir uma solução

27/3/20 17:40  
Blogger raph disse...

O Congresso e a equipe econômica estão agindo. Acabam de aprovar três meses de salário entre 600 e 1.200 reais para trabalhadores informais. Pequenas e médias empresas vão poder financiar dois meses dos salários dos seus funcionários a juros da taxa Selic pura (3,75% ao ano), para pagarem ao longo de 10 anos (se não me engano). Isso afora os aportes financeiros do Estado diretamente nas grandes empresas dos setores mais afetados (aviação e turismo). Não será o fim do mundo, mas tampouco será um período fácil. Abs!

27/3/20 20:42  

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