Nós não temos religião
Este é um pequeno conto sobre minha conversa com um espírito “caboclo” [1] incorporado na médium que ministra o curso de correntes magnéticas [2] do qual eu participei, e estava então na sua penúltima aula, quando temos a oportunidade de fazer perguntas diretamente a um espírito de luz [3], ou pelo menos ao mentor de uma médium já experiente.
Não sei bem porque, mas mesmo entre os estudantes mais experientes, quase ninguém pergunta sobre questões mais abrangentes, a grande maioria aproveita para perguntar sobre questões pessoais, sobre o futuro, sobre os “mortos”, sobre pedidos de ajuda a Deus, etc., ou seja – exatamente o tipo de pergunta que um espírito de luz não irá responder, pois sabe que cabe somente ao ser em si julgar o que deve fazer de sua existência, assim como cabe aos “mortos” se dirigirem aos “vivos”, e não o contrário. Mas isso não é uma crítica, apenas uma constatação.
Sem grandes expectativas acerca da resposta, que imaginei ser mesmo breve, quando me aproximei da médium incorporada e ela me dirigiu a atenção, perguntei:
“Olá minha irmã. Gostaria de fazer uma pergunta sobre vocês, e não sobre mim. Gostaria de saber qual a religião de vocês. E gostaria de saber se vocês têm uma resposta para o motivo de tantos de nós guerrearem e se matarem por causa de religião. Você teria um conselho sobre como eu poderia, através do que escrevo, ajudar a aproximar as pessoas de religiões contrárias?”
O espírito, do qual sequer sei o nome, e que até então falava com um sotaque quase incompreensível, me respondeu com um longo e inesquecível ensinamento, do qual entendi cada palavra de forma cristalina:
“Meu filho, nós não temos religião. Nós seguimos a Deus. Quem segue a Deus não se preocupa em ter religião, apenas realiza a Deus dentro de si [4].
Quando Siddharta Gautama [5] viu as pessoas sofrendo fora de seu palácio, ele não se tornou um peregrino para fundar o Budismo. Ele tão somente seguiu a Deus. O Deus que via refletido nos outros, e que acabou por realizar dentro de si.
Todo o sábio, todo o ascencionado, apenas realizou a Deus dentro de si mesmo, para então realizá-lo também no mundo, através de suas ações de amor.
Quando os hindus investigaram seus deuses, acabaram por encontrar a Brahma, o criador do universo, e alguns também conseguiram realizar a Brahma dentro de si. Outros criaram as castas, e dividiram os irmãos segundo a lei do homem, mas contra a lei de Deus. Para Deus não existem castas, meu filho.
Esses que brigam uns com os outros por causa de religião, brigam em nome de Deus, mas não brigam com Deus. Deus não está presente em brigas, Deus não poderá nunca se realizar em quem maltrata um irmão.
Mas, para chegar à realização de Deus dentro de si, é preciso do outro. É preciso essa troca (nesse momento ela colocou a mão um pouco acima de meu coração, e trouxe minha mão para a mesma região do corpo da médium – nesse momento a sensação peculiar de “fluxo de energia” se intensificou bastante).
Por isso, meu filho, somos todos irmãos, estamos todos ligados. O Deus de um só pode ser o Deus de todos, e a realização de um é também a realização de todos, é uma festa no céu.
Para acabar com essas brigas de religião, basta ensinar aos seres sobre Deus. Não o “deus” que eles pensam ter encontrado, mas esse Deus cósmico que preenche a cada um de nós. Quando todos realizarem a Deus dentro de si, não será mais preciso ter religião.
Vai em paz meu filho. (nesse momento, ao me despedir, eu beijei as mãos da médium, e o espírito, comandando seu corpo, retribuiu – beijando também as minhas mãos)”
Sim, foi inesquecível...
Eu bem sei que cada espírito, assim como cada ser encarnado, fala apenas do que sabe, e nada mais. Exatamente por isso, analiso a comunicação com os espíritos não pelos nomes que evocam (Deus, Jesus, Ave Maria, etc.) ou pelas “frases prontas” que repetem (na maioria, repetições dos evangelhos), mas pela real profundidade espiritual do que dizem.
Apesar de um espírito classificado como “caboclo” ter demonstrado conhecimento de budismo e hinduísmo, e ter falado de forma tão bela sobre Deus, ele não disse exatamente nada de novo. O que me importou, entretanto, foi à forma como ele disse o que disse. Infelizmente não sou hábil o bastante com as palavras, essas cascas de sentimento, para lhes passar exatamente a forma com que isso foi dito... Por isso também se diz que o caminho espiritual deve ser trilhado por cada um, individualmente, pois é impossível transmitir aos outros experiências deste tipo.
No entanto, este conto é tão somente minha tentativa de transmitir a você uma parte do que senti [6] naquele momento.
***
[1] Diz-se que um espírito é “caboclo” quando em suas últimas encarnações pertenceu a tribos indígenas. Eles se distinguem, independente da evolução espiritual, pela alta familiaridade com a natureza, e a dificuldade de compreender e se comunicar sobre assuntos modernos, urbanos.
Também vale lembrar que a prática de incorporação vem da Umbanda Sagrada, e não do Espiritismo. Ou seja, o centro espírita onde isso ocorreu é um centro ecumênico, e não ortodoxo.
[2] Eurípedes Barsanufo foi um grande educador, jornalista e espírita da virada do século 19 para o 20. O curso de Correntes Magnéticas é publicado pela editora Auta de Souza, e segue as técnicas iniciadas por Eurípedes décadas atrás.
[3] Essa classificação da literatura espírita é na maior parte das vezes julgada erroneamente por não-espíritas. Quando se diz que um espírito “é de luz”, se quer dizer que ele demonstra ter grande sabedoria e espiritualidade, e não que ele é alguma espécie de arcanjo, ou alguém em posição superior aos demais espíritos. E muito menos que a “luz” tem qualquer referência a sua cor de pele, até mesmo porque espíritos não têm pele.
[4] A palavra religião vem do latim re-ligare e significa “religação a Deus ou ao Cosmos”. Já a palavra igreja vem do grego ekklesia (ou do latim ecclesia) e significa “comunidade dos escolhidos por Deus”. Acredito que, no contexto do que o espírito disse, o significado ficaria melhor traduzido como “nós não temos igreja” – entretanto, achei melhor manter a resposta conforme foi ditada originalmente, inclusive para o título deste conto, até mesmo porque eu mesmo esqueci de usar “igreja” (ao invés de “religião”) em minha pergunta. Em todo caso, mais importante do que se ater as palavras, é se ater aos significados.
[5] Trata-se do Buda. Devo confessar que originalmente pensei em perguntar sobre o conhecimento dos espíritos das religiões orientais, como o Budismo e o Hinduísmo. Não sei se o espírito “leu minha mente”, mas terminou por incluir esse conhecimento em sua resposta, tornando-a ainda mais inesquecível para mim.
[6] A compreensão espiritual não se dá apenas pelo que vemos e ouvimos, mas pelo que realmente sentimos através de nosso espírito, de forma abrangente. Entenda quem tiver ouvidos para entender.
***
Crédito da foto: Laura Monteiro
Marcadores: budismo, contos, contos (1-20), Deus, ecumenismo, espiritismo, hinduísmo, religião, umbanda sagrada
6 comentários:
Olá Raph!
Muito obrigado pela indicação do texto.
Está maravilhoso e é algo que venho repetindo e refletindo com meu primo muitas vezes. No astral não existe religião, todos trabalham para Deus!
Muito bom, foi a confirmação que queríamos.
Postarei no blog com todo o carinho, muito legal mesmo. Obrigado!!!
Paz e luz!!
Legal Levi, eu sabia que iriam gostar :)
Eu apenas compilei o que o espírito me disse, o crédito nesse caso é todo dele!
Abs
raph
Belíssimo! Certamente uma mensagem de grande valor e lucidez! Apenas meu lado cético, que teimosamente costuma acompanhar meu lado místico, inspira-me um questionamento:
Os amplos conhecimentos em Religiões demonstrados pela entidade não seriam na verdade provenientes da medium?
Nunca assisti nem estudei a fundo incorporações, por isso não sei até que ponto minha indagação é pertinente.
De qualquer forma, desejo paz e luz na sua caminhada e sucesso em levar adiante essa mensagem!
Abs!
Brasileiro,
Sua indagação não só é muito pertinente como certamente passa pela mente de qualquer estudante sério da mediunidade.
O que posso lhe afirmar com toda a certeza, depois de anos de estudo e investigação prática, é que a grande maioria dos médiuns não estão fingindo incorporar. Eles realmente perdem a consciência, ou a mantém de forma alterada, e algo neles fala muitas vezes sobre o que não sabem, com idiomas e sotaques que desconhecem, e com postura corporal não condizente com seu estado normal.
Agora, se a origem dessa informação (no caso, o que o médium transmite incorporado) é anímica (de sua alma ou inconsciente), se flutua no ar como o Inconsciente Coletivo de Jung, se é transmitida pelos memes de Dawkins (os "genes místicos" da ciência), ou se são provenientes de espíritos desencarnados, aí cabe a cada um julgar através de sua experiência pessoal.
Eu certamente fico num meio termo entre o animismo e a comunicação real com espíritos desencarnados. Muitas vezes as duas coisas ocorrem simultâneamente, sem que nenhuma delas isoladamente possa explicar o fenômeno.
O blog "paraPsi", nos links aí da direita, estuda tudo isso de forma muito mais detalhada e científica do que eu :)
Abs
raph
Uma dúvida profana, técnica:
Se fizermos uma pergunta a um espírito ou entidade em inglês, ou qualquer outra lingua, ele(a) entenderá a pergunta? Isso depende da lingua de sua última encarnação? Ou eles conhecem todas as linguas? Provavelmente dependa do nível da entidade, né?
Depende do nível num sentido de capacidade de empatia. Um espírito de alta empatia consegue "traduzir" o que você quis perguntar, ainda que não reconheça o idioma utilizado. Aliás é pelo mesmo motivo que muitas entidades incorporadas tem certa dificuldade em falar (por exemplo, em português), já que muitas vezes estão fazendo "tradução simultânea" do que seu espírito queria dizer para o mecanismo cerebral do médium que compreende aquele idioma, e que por sua vez sai meio "truncado" na fala final.
No caso da comunicação ser fruto do animismo do próprio médium, ele pode estar se conectando com personalidades de vidas passadas, por isso as vezes usam idiomas que não teriam como conhecer nessa vida.
Claro que também há sempre a explicação mais simples: o espírito já conhecia aquele idioma, seja o que incorpora, seja o do próprio médium...
Abs
raph
Postar um comentário
Toda reflexão é bem-vinda:
Voltar a Home