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6.3.11

O ungido

De volta a região onde havia nascido da última vez, o Mensageiro dos Céus havia encontrado seus pescadores, e juntamente com um punhado deles, havia aprendido a pescar almas. Até então não havia sido notado pelas hostes sombrias, mas isso foi tão somente até ser batizado com água por Yohánan, o Batista. Desde então, foi como se um aviso houvesse sido espalhado pelas mentes de todos os seres etéreos a vagar pela escuridão, até então desinformados: o Ungido havia retornado!

Um deles era o mais influente sobre os pensamentos alheios, como uma enorme sombra a pairar sobre os desavisados ou de vontade fraca. Gabava-se, particularmente, de influenciar decisões de governantes, rabinos, e até mesmo reis e imperadores. Ele intitulara a si mesmo de Senhor da Sombra, e por onde andava uma legião de espíritos subjugados o seguia, serviçais que o adoravam como a um deus; Um deus que podiam ver e ouvir, mas um deus que dificilmente perdoava qualquer indisciplina, qualquer hesitação no caminho da sombra.

Foi enquanto o Mensageiro dormia junto a seus seguidores, debaixo de algumas árvores entre uma e outra cidade da Galileia, que eles finalmente se encontraram em um sonho obscuro:

Senhor da Sombra – Ora, ora, então você é aquele que tem expulsado meus seguidores dos homens e mulheres... É você o “grande exorcista”?

Mensageiro – Eu não expulso ninguém. O que expulsa é o pensamento. Tudo que tenho feito é trazer um pensamento novo aos miseráveis que se arrastam pelo pântano do desejo desenfreado.

Senhor da Sombra – E de que adianta toda essa encenação? Você acha que vai conseguir transformá-los? Pois saiba que, a exceção de alguns poucos que você e Yohánan tem tocado, a grande maioria volta a pecar tão logo você se despede e segue pelas estradas!

Mensageiro – E o que é pecar, senão errar o alvo?

Senhor da Sombra – Como assim?

Mensageiro – Todo ser procura trilhar um caminho ascendente. Em suas escolhas, intuitivamente são sempre levados a agaranhar mais e mais do que quer que estejam buscando... Ocorre que, de acordo com a Lei, todo ser colhe o que planta – quando o que busca não lhe faz sair do lugar, ele permanece preso ao mesmo local, ele erra o alvo, e sua colheita só lhe traz a angústia.

Senhor da Sombra – Muito bonito, muito bonito... Mas palavras não resolverão nossa angústia. Eu estive diversas vezes neste mundo e tudo o que vi foi a brutalidade e a ganância. Seu precioso mundo me ensinou que o poder reside na força do desejo, e o que desejo é ser o que sou: o Senhor de toda uma hoste de espíritos sombrios.

Mensageiro – E você é feliz?

Senhor da Sombra – A felicidade é uma ilusão passageira, uma luz que brilha tão ligeiramente na escuridão que logo a esquecemos... Não desejo mais a felicidade, mas apenas me vingar de todos estes que se dizem santos e divinos reis, e em realidade são tão sombrios, ou mais, quanto eu.
E eis que chego a você, o Ungido! Eu até hoje não sei por onde Deus tem andado, mas certamente está muito distante deste mundo... Você, que se diz o Rei dos Judeus, nada mais é que mais uma fraude!

Mensageiro – Se sou alguém ungido no óleo sagrado, então sou tão ungido quanto qualquer outro, pois não há lugar no Reino que não esteja ungido, e o Reino nos abarca a todos. Pense nisso, meu irmão, que nos reencontraremos em breve...

Assim terminou o sonho. O Senhor da Sombra foi pego de surpresa, alguma coisa em seu frio coração voltara a fervilhar... Havia muito tempo, muitas e muitas vidas, que alguém havia lhe chamado de irmão com tamanha sinceridade. Mas este breve encontro não foi o suficiente para lhe modificar, ele tinha uma reputação a zelar, e muitas mentes para obsediar.

Alguns dias depois, o Mensageiro se aproximara de uma vila onde algumas pessoas estavam sob o domínio das hostes do Senhor da Sombra, e ele tratou de recebê-lo pessoalmente:

Senhor da Sombra – O que veio fazer aqui Yeshu? Acredita que vai os livrar contra a minha vontade?

Mensageiro – Muito pelo contrário. É você mesmo quem os livrará, meu irmão, e por vontade própria...

Senhor da Sombra – Absurdo! E o que vai fazer, me “converter”? Me “batizar” em suas águas imundas?

Mensageiro – Vejamos o que posso fazer por ti, irmão... Observe, vê aqueles homens a me seguir? Pois eles abandonaram suas famílias, seu comércio, sua casa, para me seguir por este mundo tão angustiado, como você mesmo bem sabe... Pois você acredita ter hostes de seguidores, mas em realidade é apenas um cego guiando outros cegos pela força, pela subjugação. Ninguém o segue por vontade espontânea, mas simplesmente porque estava tão perdido quanto você, e acredita que você os tem guiado a algum lugar.
Mas eis, meu irmão, que você é o seu Senhor, você não tem ninguém mais para passar esta responsabilidade: você sabe que o seu caminho é como uma estrada que não leva a cidade alguma, um rio que jamais encontrará oceano algum. Você precisa tão somente admitir isso a si mesmo...
Veja, neste meu caminho, apesar de ser árduo, apesar de ser reconhecido por pouquíssimos, reside a única esperança de felicidade. Pois é uma passagem estreita de início, mas que depois se expande em uma via sagrada da qual sequer conhecemos o final.
Venha, venha conosco, trilhar o único caminho que vale a pena ser trilhado... Venha ser mais um ungido, não o Rei de algum povo, não o conquistador da vontade alheia, mas o rei e o conquistador de si próprio, sob a luz do óleo sagrado que sempre nos cobriu a todos, mas que estivemos cegos para ver, e insistimos em errar o alvo, em escolher o caminho inútil. Eu sou o Ungido, mas vocês também são, e farão tudo que tenho feito, e muito, muito mais!

E desde esse segundo encontro, o Mensageiro passou a contar seguidores e discípulos também no mundo invisível. Não foi da noite para o dia que o Senhor da Sombra se modificou, mas foi o início de um novo caminho...


raph'11

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Este conto é uma continuação direta de "O pescador de almas", e continua em "O traçador de círculos".

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Crédito da foto: youngdoo

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4 comentários:

Blogger Yara Morais disse...

Toda vez que estou um pouco triste ou quando me falta esperança,eu venho ao seu blog.É magnífico o poder das palavras,seu efeito aliviante nas dores cotidianas.
Às vezes esquecemos que somos assistidos,que há "algo muito maior" do que essa melancolia que nos acomete quando invigilantes.
É sempre bom lembrar de que somos ungidos,isso traz alento e tranquilidade! Posso dizer que fiquei em paz ao ler este seu post.
Você mesmo escreveu?

Abraço,

Yara

8/3/11 23:52  
Blogger raph disse...

Obrigado Yara. Eu sempre digo que escrevo este blog também para mim mesmo; mas fico feliz, de verdade, de ver que ele é capaz de tocar o coração de outras pessoas, de trazer paz.

Este conto é muito especial para mim, é o que posso dizer. Esteve pairando em minha mente por muito tempo, e eu esperava encontrar a melhor forma de contá-lo - a mais leve. Foi assim que saiu, agora não é mais responsabilidade minha :)

Abs!
raph

9/3/11 00:51  
Anonymous Janaína disse...

Raph, que texto lindo! Aliás, vc é lindo né? Tem uma alma super linda, refrescante, tão doce. Parabéns por conseguir expressar seus sentimentos/pensamentos/energia assim! É realmente esplêndido ler um texto e sentir-se cheio de luz!! Que sua VV assim permaneça.

11/12/13 13:34  
Blogger raph disse...

Oi Janaína,

Obrigado por toda a "lindeza" :)

Fico feliz que vocês consigam compreender a doçura deste tipo de texto, apesar de todas as sombras envolvidas nele. É sinal que estão conseguindo ver luz em todo canto, e isso ocorre, geralmente, quando a luz reflete e se irradia a partir do próprio espelho de suas almas...

Abs!
raph

11/12/13 14:23  

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