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8.2.12

Schopenhauer educador

Texto de Friedrich Nietzsche em "Escritos sobre a educação” [1]. As notas ao final são minhas.

Somente os artistas detestam este andar negligente [2], com passos contados, com modos emprestados e opiniões postiças, e revelam o segredo, a má consciência de cada um, o princípio segundo o qual todo homem é um milagre irrepetível; somente eles se atrevem a nos mostrar o homem tal como ele propriamente é, e tal como ele é único e original em cada movimento de seus músculos, e mais ainda, que ele é belo e digno de consideração segundo a estrita coerência da sua unicidade, que é novo e incrível como todas as obras da natureza e de maneira nenhuma tedioso.

Quando o grande pensador despreza os homens, é a preguiça destes que ele despreza, pois é ela que dá a eles o comportamento indiferente das mercadorias fabricadas em série, indignas de contato e ensino [3]. O homem que não quer pertencer à massa só precisa deixar de ser indulgente consigo mesmo; que ele siga sua consciência que lhe grita: “Sê tu mesmo! Tu não és isto que agora fazes, pensas e desejas.”

Toda alma jovem ouve este apelo dia e noite, e estremece; pois ela pressente a medida de felicidade que lhe é destinada de toda a eternidade, quando pensa na sua verdadeira emancipação: felicidade à qual de nenhum modo alcançará de maneira duradoura enquanto permanecer nas cadeias da opinião corrente e do medo. E como pode ser desesperada e desprovida de sentido a vida sem essa libertação! [4]

[...] Qual não seria a aversão das gerações futuras, quando tivessem de se ocupar com a herança deste período, em que não são os homens vigorosos que governam, mas os arremedos de homem, os intérpretes da opinião. Esta é a razão por que nosso século passará, talvez, para uma longínqua posteridade, como o momento mais obscuro e desconhecido, como período mais inumano da história. [...] Mas, ainda que o futuro nos deixasse qualquer esperança, a singularidade da nossa existência nesse momento preciso é o que nos encorajaria mais fortemente a viver segundo a nossa própria lei e conforme a nossa própria medida: quero falar sobre este fato inexplicável de vivermos justamente hoje, quando dispomos da extensão infinita do tempo para nascer, quando não possuímos senão o curto lapso de tempo de um hoje e quando é preciso mostrar nele por que razões e para que fins aparecemos exatamente agora.

Temos de assumir diante de nós mesmos a responsabilidade por nossa existência, por conseguinte, queremos agir como os verdadeiros timoneiros desta vida, e não permitir que nossa experiência pareça uma contingência privada de pensamento. Esta existência quer que a abordemos com ousadia e também com temeridade, até porque, no melhor ou no pior dos casos, sempre a perderemos. Por que se agarrar a este pedaço de terra, a esta profissão, por que dar ouvidos aos propósitos do vizinho? É igualmente provinciano jurar obediência a concepções que, em centenas de outros lugares, não obrigam mais. O Ocidente e o Oriente são linhas imaginárias que alguém traça com um giz diante de nossos olhos, para enganar a nossa pusilanimidade.

Vou tentar alcançar a liberdade, diz para si a jovem alma. Não obstante, seria ela disso impedida pelo fato de o acaso querer que duas nações se odeiem e entrem em guerra, ou pelo fato de um mar separar dois continentes, ou pelo fato ainda de ensinar em torno dela uma religião que já não existia há milhares de anos? Tu não és propriamente nada disso, diz ela para si. Ninguém pode construir no teu lugar a ponte que te seria preciso tu mesmo transpor no fluxo da vida – ninguém, exceto tu.

[...] Que a jovem alma se volte retrospectivamente para sua vida e faça a seguinte pergunta: “O que tu verdadeiramente amaste até agora, que coisas te atraíram, pelo que tu te sentiste dominado e ao mesmo tempo totalmente cumulado? Faz passar novamente sob teus olhos a série inteira destes objetos venerados, e talvez eles te revelem, por sua natureza e por sua sucessão, uma lei, a lei fundamental do teu verdadeiro eu. Compare esses objetos, observe como eles se completam, crescem, se superam, se transfiguram mutuamente, como formam uma escala graduada através da qual até agora te elevaste até o teu eu. Pois tua essência verdadeira não está oculta no fundo de ti, mas colocada infinitamente acima de ti, ou pelo menos, daquilo que tomas comumente como sendo teu eu. Teus verdadeiros educadores, aqueles que te formarão, te revelarão o que são verdadeiramente o sentido original e a substância fundamental da tua essência, algo que resiste absolutamente a qualquer educação e a qualquer formação, qualquer coisa em todo caso de difícil acesso, como um feixe compacto e rígido: teus educadores não podem ser outra coisa senão teus libertadores.” [5]

E eis aí o segredo de toda formação, ela não procura os membros artificiais, os narizes de cera, os olhos de cristal grosso; muito pelo contrário, o que nos poderia atribuir estes dons seria somente uma imagem degenerada desta formação. Ao contrário, aquela outra educação é somente libertação, extirpação de todas as ervas daninhas, dos dejetos, dos vermes que querem atacar as tenras sementes das plantas. Ela é efusão de luz e calor, o murmúrio amistoso da chuva noturna; ela é limitação e adoração da natureza no que esta tem de maternal e misericordioso, ela consuma a natureza quando, conjurando os acessos impiedosos e cruéis, os faz levar a bom termo, quando lança o véu sobre suas intenções de madrasta e as manifestações de sua triste cegueira [6].

Certamente, existem outros meios de se encontrar a si mesmo, de escapar do aturdimento no qual nos colocamos habitualmente, como envoltos numa nuvem sombria, mas não conheço coisa melhor do que se lembrar dos nossos mestres e educadores. É por isso que vou lembrar hoje o nome do único professor, o único mestre de quem eu posso me orgulhar, Arthur Schopenhauer, para só me lembrar de outros mais tarde.

***

[1] Minha fonte é o texto transcrito ao final do livro da filósofa Viviane Mosé: O homem que sabe (Civilização Brasileira); por isso não cito o tradutor.

[2] Nietzche inicia o artigo criticando o comodismo e a preguiça da maior parte dos homens de sua época, por questões de espaço pulei o trecho inicial.

[3] Se a crítica de Nietzche já foi feroz em sua própria época, imagina o que ele pensaria acerca de nossa “cultura de massa”: do marketing, dos fast-foods (da mente), dos ídolos pop, etc.

[4] Dogmáticos podem pensar que o sentido da vida já está muito bem descrito em seus manuais de verdade absoluta ou códices de ciência infalível. Porém, na medida em que o sentido da vida é pessoal e intransferível, o sentido da sua vida, e de ninguém mais, o dogma é apenas uma represa para um rio que busca, eternamente, desaguar no oceano da liberdade.

[5] Embora os conhecimentos gerais, assim como as regras básicas de convívio em sociedade, possam e devam ser ensinados a todos, é inútil pretender que pessoas são como computadores de informação, e não como seres sensíveis, capazes de interpretar o mundo a sua volta, capazes de uma vontade própria, particular. Enquanto o sistema educacional continuar tratando seres como máquinas, a arte e a filosofia terão grande dificuldade em aflorar, e a ciência se reduzirá aos “mandamentos da Academia”.

[6] Muitos torcem o nariz para a filosofia de Nietzche devido ao seu forte conteúdo poético, por vezes repleto de metáforas de difícil interpretação... Não me parece que o filósofo alemão esperava ser interpretado somente de uma mesma maneira; Em realidade, acho que ele usou de seu formidável talento, se esforçou para que sua literatura não fosse rio represado a desaguar sempre no mesmo lago, mas pensamento vaporoso capaz de chover em vastos e diversos territórios.

***

Crédito da imagem: Quino

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2 comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Como sempre, muito bacana. Nietzche é uma boa fonte de inspiração e reflexão para começar mais um dia.
Abraços

9/2/12 07:40  
Blogger Islan disse...

MARAVILHOSO!!!!

Schopenhauer... Nietzche...

Mosé

Textos para Reflexão...


Leituras obrigatórias.

11/2/12 09:22  

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