Os memes existem?
Parte da série "Reflexões sobre a espiritualidade e a ciência", onde o ocultista Marcelo Del Debbio e o cético Kentaro Mori respondem a uma mesma pergunta (a cada post). Para conhecer mais sobre esses dois distintos participantes, não deixe de ler sobre a premissa da série.
[Raph] Os sufis dizem que assim como muitos germes nascem e se desenvolvem como seres vivos, de forma análoga, existem também muitos seres no plano mental, chamados ‘muwakkals’ ou elementais [1]. Estes são entidades ainda mais etéreas nascidas do pensamento humano, e assim como os germes vivem no corpo humano, tais elementais sobrevivem de seus pensamentos. Segundo os místicos do Islã, os pensamentos também passam por nascimento, juventude, velhice e morte. Eles trabalham contra ou a favor dos homens de acordo com sua natureza. Os sufis afirmam que os criam, elaboram e controlam.
Um meme – conceito proposto pelo biólogo britânico Richard Dawkins – é para a memória o análogo do gene na genética, a sua unidade mínima. É considerado como uma unidade de informação que se multiplica de cérebro em cérebro, ou entre locais onde a informação é armazenada (como livros) e outros locais de armazenamento ou cérebros. No que diz respeito à sua funcionalidade, o meme é considerado uma unidade de evolução cultural que pode de alguma forma se autopropagar. Os memes podem ser ideias, línguas, sons, desenhos, capacidades, valores estéticos e morais, etc. O estudo dos modelos evolutivos da transferência de informação é conhecido como memética.
Há uma clara correspondência, no mínimo conceitual, entre os ‘muwakkals’ e os memes. Porém, afinal: os memes existem mesmo?
[Mori] Para Dawkins, o ser humano é originalmente um autômato, uma máquina servindo cegamente aos desmandos dos genes egoístas, interessados unicamente em replicar-se. O que transmitimos aos nossos descendentes não é nosso suor, não são nossas cicatrizes, e sim nossos genes. Do ponto de vista dos genes, toda a evolução serve a seus propósitos – nós, os organismos, somos apenas veículos para sua replicação e quando há um conflito entre o bem do organismo e o bem dos genes que carregamos, os genes sempre ganham, porque afinal, são apenas eles que permanecem na evolução, enquanto organismos vêm e vão.
É nesse contexto que ele introduz também a ideia de meme. Seu conceito-chave não é apenas o de um ser vivo de pensamentos, que nasça, cresça e morra, em um ciclo de vida completo. Essa é uma ideia fascinante, mas uma que de fato não é nova. A ideia chave dos memes é a de um pensamento que se *reproduz* e como tal apresentará os mesmos aspectos que os genes egoístas: seu subtrato serve como mero autômato para sua replicação. Pouco importa se o hit “Ai se eu te quero” é uma melodia sofisticada ou uma letra tocante que beneficiará o ouvinte, o que importa é que é uma melodia grudenta que se fixa em sua mente, ecoa e se replica.
Tanto o gene egoísta quanto o meme são conceitos derivados diretamente da Teoria da Evolução de Charles Darwin, e o crédito pela sacada genial de que *toda* unidade de informação que se replica com variação em um ambiente de recursos limitados irá evoluir e se sofisticar em seu “egoísmo”, encontrando formas cada vez mais eficientes e surpreendentes de se replicar, é todo de Darwin. Os muwakkals são criados pelos sufi, as egrégoras são criadas por grupos de pessoas; já os memes são unidades que foram criadas em algum ponto por uma mente, mas a partir daí, se reproduzem e evoluem por si mesmas e sua ideia central é justamente a de que não são controladas pelas mentes, mas as controlam para replicar-se. Antes de Darwin, nenhum pensador havia entendido a importância da auto-replicação e o poder da evolução que emerge inevitavelmente a partir dela. Depois de Darwin, Dawkins tomou a replicação como conceito central para interpretar a evolução, não só na biologia, com os genes, como na própria cultura, com os memes.
Dito isso, Dawkins está certo? Os memes existem, os genes são “egoístas”, seríamos meros autômatos à mercê de genes e memes? Isso me lembra o meme do cachorro que, ao receber todo dia comida e abrigo do ser humano, conclui que ele deve ser um deus muito generoso. Já o gato, ao receber todo dia comida e abrigo do ser humano, conclui que deve ser um deus para receber tanta reverência da criatura de duas pernas.
Ultimamente, e mesmo cientificamente, os conceitos do gene egoísta e dos memes e memeplexos de Dawkins são apenas metáforas e mesmo, por que não, mitologias que buscam interpretar a evolução de seres vivos e da cultura. Não estão propriamente corretos ou errados, são apenas interpretações. Eles têm sua utilidade, mas não devem ser encarados como algo tão rigoroso, estabelecido ou mesmo relevante quanto a ideia da própria evolução através da seleção natural. Genes e memes são unidades de replicação, mas o genótipo em verdade não é o único determinante do fenótipo, nem a única informação que é transmitida no tortuoso caminho evolutivo. Quanto aos memes, é ainda mais complicado isolar unidades de cultura em replicação. Sem dúvida existem modas, existem músicas grudentas, existem piadas na internet que até a Luíza, que está no Canadá, deve conhecer como memes. O conceito é uma ideia poderosa, mas vaga [2].
Dawkins promoveu os conceitos dos genes egoístas e dos memes, e de nós como meros veículos autômatos para sua replicação, justamente para que pudéssemos, ao nos tornarmos conscientes destes programas cegos, tomar as rédeas da situação e buscar valores maiores. Aqui, sim, os memes se reencontram com os muwakkals e as egrégoras, à medida em que Dawkins defende que sejamos nós a criar e controlar os memeplexos, atentos ao seu poder e tendência de que adquiram vida própria, repliquem-se e transformem-se em criaturas além e maiores que seus criadores.
O paradoxo é que se apegar demais a essa ideia é se apegar a um meme dominante.
[Del Debbio] William S. Burroughs nos alertou, em 1959, em seu livro Naked Lunch, que a “Linguagem é um Vírus”.
Para os Cabalistas e Hermetistas, existem quatro Mundos ou Planos de Existência, correspondentes simbólicos aos quatro elementos tradicionais. São eles o Plano Material (Terra), o Plano Mental (Ar), o Plano Emocional (Água) e o Plano Espiritual ou Filosófico (Fogo ou Luz).
Todos os objetos existentes no Plano Material um dia existiram no Plano Mental e Emocional. Uma pintura, antes de se tornar uma imagem, existiu como uma idéia na mente do pintor. Uma dança, um jantar, uma casa, uma cerimônia de casamento, um produto manufaturado... todas as ações e objetos físicos possuem sua origem em algum ponto do Plano Mental, onde existem em uma realidade própria.
Estas idéias nascem, crescem, reproduzem, sofrem mutações e eventualmente morrem, seguindo os mesmos passos de toda a Teoria da Evolução. A única diferença é que não possuem corpos físicos, sendo percebidos e armazenados em invólucros materiais (cérebros, livros, filmes, áudios, textos, imagens...) onde podem saltar de uma mente para outra e interagir com outras idéias que tenham contato com aquele invólucro.
Estes pensamentos podem formar grupos semelhantes, chamados pelos cientistas de Memeplexes e pelos ocultistas de Egrégoras. Pelo ponto de vista filosófico, eles não apenas existem, mas possuem um poder tremendo de realização no Plano Material.
Uma idéia, por si só, não é capaz de realizar nada no mundo físico mas, através de seus portadores, consegue se materializar em grandes escalas e com grandes alcances. Toda marca, símbolo ou logo é uma presença física de um objeto mental. Pessoas que defendem uma determinada idéia tornam-se veículos de propagação desta Egrégora e, portanto, definem o poder de alcance desta entidade. Vemos isso em religiões (ou ateísmo), em posições políticas, sociais, times de futebol, hobbies e até na escolha de marcas de produtos que levaremos para casa. Sua mente é uma selva onde uma fauna gigantesca de idéias batalham pela sobrevivência do mais adaptado!
Na Árvore da Vida, estas esferas de consciência estão representadas por Chesed (A Misericórdia) e Geburah (o Rigor). Chesed representa a expansão e o avanço de uma idéia, tomando tudo e todos ao redor até que ela seja onipresente; nas mitologias, é representada pelos deuses-pais e conselheiros, como Zeus, Odin, Wotan, Poseidon ou Oxossi; na literatura são representados pelos conselheiros como Merlin, Gandalf, Yoda e Dumbledore. Chesed representa o rei; a proteção da tradição, a biblioteca do castelo e todas as folhas da floresta de idéias.
Geburah, por sua vez, representa o fogo que destruirá qualquer idéia que não se adapte ao processo de evolução daquela entidade mental. Representa o exército, os deuses da guerra como Ares, Marte, Kali, Thor ou Ogun; responsáveis pela destruição do ego e considerados os defensores do Reino. Podemos ver esta energia se manifestando todas as vezes que alguém defender seu ponto de vista (intelectualmente, logicamente, passionalmente ou mesmo através da violência, truculência ou medo... são apenas escalas de manifestação).
Do equilíbrio entre Chesed e Geburah surge a Força (cuja representação pictográfica é o Arcano 8 do Tarot), as condições ideais para que os mais adaptados sobrevivam e prosperem, sabendo quando expandir e quando restringir seus passos. A defesa e o ataque; recrutar e selecionar; expandir e proteger...
Embora a ciência e o método científico estejam atualmente restritos ao Plano Material e alguns filósofos, como John N Gray e Luis Benitez-Bribiesca, considerem as teorias de memes como sendo pseudo-ciência, os memes foram o maior avanço fora da filosofia para se tentar estudar o conceito de Egrégora até agora.
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[1] Saiba mais sobre o muwakkals neste texto em inglês: “The mysticism of sound” (O misticismo do som).
[2] Nota do Mori: O episódio final da série mais recente de documentários de Adam Curtis, na BBC, é uma crítica severa ao gene egoísta e tangencialmente aos memes.
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Crédito da imagem: Rafael Arrais (ali temos o Richard Dawkins a esquerda, e Rumi - grande sábio sufi - a direita [pintura antiga]; também temos uma ilustração de Sam Spratt no centro [meme face])
Marcadores: Dawkins, Del Debbio e Mori, evolução, filosofia, hermetismo, humor, Kentaro Mori, Marcelo Del Debbio, memes, ocultismo, pensamento, sufismo
4 comentários:
Os memes não existem, são um modelo de como idéias se propagam. Um modelo incompleto mas que é agradável para alguns. Enquanto isso, o estudo sério de neurologia não recebe a justa divulgação dos meios de comunicação. Já se tem indícios de que a mente tem funcionamento algorítmico... isso é muito mais interessante que esta idéia primária de memes. Mas bom, o ser humano é preguiçoso, e sempre busca uma explicação FÁCIL e não a CORRETA. Por isso existe a religião. Por isso que quem tem tanta fé não devia ter direito a voto - e depois dizer que os ATEUS é que matam. Na ficção (como no HORRÍVEL CÓDIGO DAVINCI) talvez. Na realidade nos apenas lamentamos a estupidez dos outros e tentamos levar nossa vida em meio ao preconceito de todos os demais contra nós.
Alex dizer que a idéia dos outros é estupidez, também é uma forma de preconceito, outro fato é que não se muda a mentalidade das pessoas do dia para noite e para todos os efeitos a ciência como nos a temos hoje ainda é uma criança, então seja mais tolerante e espere...
Estou impressionado com o nível da discussão aqui posta. Meus parabéns por ter alcançado isso, Rafael; e parabéns ao Marcelo e o Mori por conseguir manter o debate sem precisar atacar para defender um ponto de vista, coisa tão difícil de se ver quando se trata deste tipo de debate. Sensacional!
Infelizmente, não tenho muito com o que contribuir com o assunto. Talvez o que melhor possa dizer é que temos indícios de ambos os lados sobre o quanto é importante termos consciência do poder das ideias, dos pensamentos e inputs e outputs que nos alimentam e que geramos. Se não aprendermos a sermos o nosso próprio "gene dominante", ou o senhor de nós mesmos, estas "entidades" o farão por nós.
Abraço!
(Para quem gosta de South Park - e sabe a proposta do seriado, vai gostar de ver o episódio sobre memes - S1603).
Obrigado Élder. É por isso que também costumo dizer que minha religião é meu pensamento :)
Abs!
raph
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