O último enigma, parte 4
O dogma e a paixão
“Devo confessar que é deveras divertido ouvir as suas indagações acerca da existência, ó seres do mundo...” – sorriu o anjo glacial – “Mas atentem que tais incursões a terras tão distantes de sua própria realidade de nada adiantam se antes vocês não se colocarem em humilde posição diante deste todo grandioso que é o universo: o mundo e o além-mundo.
Acaso assim tivessem feito desde o início de suas dúvidas, teriam hoje mais competência para estudar o que ainda estão longe de conhecer. Pois que se assim o fosse, saberiam que desde o início de tudo houve um Criador Primordial. E quanto mais conhecessem este Criador, quanto mais saberiam de enigmas dos quais nem sequer podem hoje sonhar em solucionar!”.
“Ora, meu caro arcanjo, não sei se pretende me confundir com tais afirmações. Eu já disse que não acredito nem desacredito em Deus, mas tenho a convicção de que poderemos sim decifrar a todos esses enigmas, ou a maioria deles, sem o auxílio de um Ser Todo Poderoso!
Ora, como poderia acreditar que para estudarmos e aprendermos sobre as coisas, nós antes teríamos de crer nalgum Criador? Acaso não foi exatamente o dogma medieval que nos deixou cegos para a ciência e o estudo dos astros, até há bem pouco tempo atrás?” – desafiou o homem que diziam ser ateu.
“Você é muito presunçoso de sua própria capacidade enquanto homem e somente homem, ser ateu...” – prosseguiu o anjo como quem pretendesse falar a uma criança – “Acaso não acha que nós anjos, a serviço do próprio Criador, não tivemos nossa parcela de contribuição em suas recentes descobertas? Ora, é claro que um dogma capaz de deixar os seres tão cegos a ponto de serem incapazes de admitir que é o Sol o astro fixo no centro, e não a Terra, a despeito de tudo o que tem sido observado pelos amantes das lunetas, será um dogma problemático...
Mas antes educar aos seres com dogmas do que deixá-los a mercê da selvageria e ignorância humana... Antes manter uma civilização às escuras do que arriscar que este mundo termine num colossal campo de batalha entre bárbaros ignorantes!”.
Já há algum tempo o demônio de um só chifre sentia-se incomodado com o raciocínio do ser alado, mas foi após esta explanação que se deu ao direito de ousar interrompê-lo:
“E eu aqui intercedo, nobre arcanjo, para lembrá-lo de que até hoje não se sabe de nenhum dogma que tenha sido efetivamente mais positivo do que negativo para a evolução dos homens.
Querer que os homens aceitem máximas religiosas, pretendendo que isso por si só os garanta uma boa conduta, é o mesmo que oferecer a esmola ao esfomeado, mas não ensiná-lo a plantar o próprio alimento... Acaso esqueceste de que o livre-arbítrio foi concedido aos homens exatamente para que eles investiguem e descubram a verdade por eles mesmos? Ou seja, sem que alguém chegue para eles com uma verdade gravada nalguma tábua e lhes diga: ‘Esta agora é a nova verdade do mundo!’. Meu caro arcanjo, deixe que os homens gravem suas própria tábuas”.
Ao que o anjo glacial, agora sombreado, respondeu:
“Me surpreende ouvir tamanha besteira de um demônio que encontrou a luz, ó ser infernal! Não és tu agora um aspirante das terras superiores: Não és tu aquele que aceitou a Deus e se redimiu?”.
“Aceitei a Deus?” – de volta ao demônio – “Não fui eu quem aceitei a Deus, foi ele quem me aceitou, quando clamei desesperado com vergonha da minha própria escuridão, pedindo uma nova chance!
Sim, meus caros, estava eu atolado no charco dos desejos desenfreados, na lama dos setores inferiores do mundo, onde tudo cheira a podridão e esquecimento, e o remorso é o pesado arauto da consciência... Pois ainda que não lembremos sequer da ínfima parcela de nossos atos na ignorância da luz, de algo lembramos, e isto nos dói profundamente.
E a dor não passa jamais, exceto quando compreendemos finalmente que estamos no caminho circular, que não chega a lugar algum, e clamamos por ajuda... Foram os anjos do alto, os misericordiosos das falanges de resgate e cura, estes que me retiraram do charco, que me cuidaram, e que possibilitaram que um novo ser nascesse no fundo de mim mesmo.
E ainda que eu tenha um longo débito com as leis do Criador, por tudo de mal que havia feito, por ignorância, aos seres, a natureza e a mim mesmo, ainda assim ele me aceitou de volta!
E se hoje eu tenho ainda que pagar por todos esses anos na escuridão, minha vergonha se foi, e minha alma se torna mais leve a cada nova manhã. Pois que hoje eu sei: estou no caminho certo, o único que segue a frente.
Digo mais, nobre arcanjo... Não foram os dogmas que me salvaram, mas minha própria consciência, que bem ou mal, sempre soube exatamente de cada pequeno passo meu, em direção a luz, ou a escuridão. Ela nunca desistiu de tentar me mudar, pois que guarda alguma espécie de substância, de marca ou sinal, do Criador.
Eu mudei por amor, pelo amor que vem do alto, e tal como os raios solares, jamais deixou de penetrar mesmo nos corações mais sombrios.
Como explicar o que ele fez por mim? Como justificar minha crença aos outros? Muito bem, afirmo que minha crença não é uma crença baseada num dogma ou numa santíssima tábua, meus amigos... Eu acredito e compreendo a um Deus, como quem compreende e aceita estar apaixonado!
Como explicar ou ensinar a paixão? Apenas pretendo servir de exemplo, para que outros se apaixonem também, e possam me seguir neste caminho. Assim andaremos juntos, sabe-se lá até onde...”.
***
Foi aqui que terminei de escrever no caderninho.
Não me arrependo de haver desistido deste formato, pois embora o aspecto mitológico e fantástico possa ser atraente, acredito que haveria me limitado muito. Não poderia falar de assuntos da modernidade, pois o diálogo discorre nalgum tempo não muito após o Renascimento. Além disso, os personagens parecem caricatos demais para serem verossímeis (e isto nada tem a ver com serem anjos, demônios, etc.).
Em Ad infinitum, quero crer que tenha conseguido tornar os personagens mais verossímeis, menos caricatos, e de pensamento mais aprofundado. Pelo que tenho ouvido até aqui dos que iniciaram a leitura, parece que tive algum grau de sucesso.
» Ad infinitum está à venda na versão impressa e eBook, somente pelo Clube de Autores.
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Crédito da imagem: Anônimo
Marcadores: contos, contos (81-90), O último enigma, religião
2 comentários:
lindo o escrito, como atalho para descortinar, com coragem, o espírito da palavra
Obrigado :)
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