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29.1.14

A iniciação de Avicena

Texto de Rosalie Helena de Souza Pereira em "Avicena – A Viagem da Alma” (Ed. Perspectiva) – trechos das págs. 321 a 330. As notas ao final são minhas.


Hayy ibn Yaqzân, ou Epístola do Vivente filho do Vigiante, faz parte do ciclo “visionário” de Avicena [1], o que significa tratar-se de um texto sobre a sua própria iniciação [espiritual].

A iniciação remete ao tempo presente do iniciado. Como vimos [2], o processo envolve a conquista de um mundo vivenciado no interior da própria alma. Não se trata de um mundo no qual a alma é jogada porque adquiriu consciência. Segundo Henry Corbin [3], há uma inversão do sentido de interioridade: o cosmos passa a viver no interior da consciência, ou melhor, ao integrar um mundo e fazê-lo seu, a consciência sai de si mesma para fazer o mundo entrar em si [4].

[...] Assim, o “Oriente” [5] vive no relato aviceniano, pois é uma experiência da alma do próprio Avicena que conhece a si própria e com isso pode conhecer o anjo [6]. O relato expõe a vivência do processo de tomada de consciência mediante a aquisição de conhecimento, que, na língua árabe, se diz ta’wil e significa, nas palavras de Corbin, “fazer retornar a, reconduzir, reenviar à origem e ao lugar onde se entra e, por conseguinte, retornar ao sentido verdadeiro e primitivo de um texto”. O ta’wil opõe-se ao tanzil, que “designa a religião positiva, a letra da Revelação ditada por um anjo ao profeta. Ta’wil é fazer descer essa revelação do mundo superior”. [...] A iniciação é o ensinamento da orientação necessária e fundamental para o conhecimento do anjo e para a reconquista do mundo superior [7].

[...] O edifício cósmico é descrito para denunciar ao ser humano seu cativeiro e nele fazer despertar a consciência de sua origem. A esplêndida cúpula, o limite cósmico, nada mais é do que uma prisão da qual é preciso escapar, pois seu peso gera um sentimento que domina todo gnóstico: a angústia de ser um estrangeiro.

O limite das esferas não é experimentado como algo longínquo a ser apreendido, do interior para o exterior. Ao contrário, o obstáculo a ser superado é do exterior para o interior. Despertada na sua consciência a angústia de ser um estrangeiro, um exilado, o gnóstico descobre onde está e simultaneamente intui de onde veio e para onde retornará. A ideia de retorno pressupõe a preexistência na pátria de origem e apresenta duas implicações: um sentimento de parentesco com a divindade, com os seres celestiais, com as formas de luz e de beleza que, para o gnóstico, formam sua família; nostálgica, a alma sente-se perdida, deslocada, desorientada, entre regras de um mundo que lhe é hostil e estranho [8].

Afirma-se o sentimento de sua condição de estrangeira, e a consciência de seu parentesco celeste torna insuportável sua existência no mundo terrestre, conduzido por normas comuns [9]. A alma sabe-se pertencente à ordem cósmica e única, e almeja encontrar a via de retorno ao núcleo primordial.

[...] O que Hayy ibn Yaqzân relata é a iniciação ao conhecimento, à gnose, em sentido amplo. Avicena, possuidor de um vasto conhecimento filosófico herdado dos gregos [10], ao qual se somaram as crenças e as tradições iranianas, procurou, nesses textos “visionários”, realizar a síntese que caracterizou a Idade Média: da fé com a razão. O universo medieval não era regido por noções “racionalistas” que iriam mais tarde caracterizar o mundo moderno; o numinoso ocupava nele um lugar de destaque, permeava as vidas dos seres humanos, fazia parte de seu cotidiano, de sua visão de mundo. Como vimos, o próprio Avicena era profundamente religioso: algumas passagens de seus escritos afirmam que recorria a Deus sempre que não encontrava respostas às suas indagações, e alguns de seus opúsculos ocupam-se plenamente da religião corânica.

[...] No mundo antigo e medieval, as tradições [espirituais] estão presentes no cotidiano. Cada indivíduo almeja sua própria salvação, devendo o aspirante preparar-se para a sua busca visionária pessoal. Esta tem início com a purificação dos resquícios da matéria no corpo, em outras palavras, dos vícios e das paixões. Já purificado, o discípulo passa a trabalhar para ascender aos domínios celestes e ver a Deus [11]. A visão do divino é a experiência transformadora que servirá para imortalizá-lo, sem a qual a sua vida não tem sentido [12].

A experiência está associada ao autoconhecimento, este desafiando os séculos desde o oráculo de Delfos com a máxima GNÔTHI SAUTÓN – Conhece-te a ti mesmo. Conhecida a sua parte divina, reconhecida a nulidade do corpo e do mundo material, o iniciado transpõe sua própria mortalidade e passa a participar da eternidade divina. A posse desse conhecimento assegura ao gnóstico a passagem de sua condição humana ao domínio divino.

A participação na natureza divina é uma experiência no presente e não uma escatologia futura. O homem pode, assim, tornar-se divino ainda em vida: sua experiência, transformadora e deificadora, é presentificada. Quando vê a Luz, sua própria imagem refletida no divino, o Oriente torna-se visível; no conhecimento de seu verdadeiro si como divino, abrem-se as portas do Reino e ele garante a sua participação na divindade eterna.

***

[1] Avicena ou Ibn Sina (c.980 – 1037) foi um grande pensador da Pérsia que escreveu tratados sobre diversos assuntos, dos quais aproximadamente 240 chegaram aos nossos dias. Em particular, 150 destes tratados se concentram em filosofia e 40 em medicina. Suas obras mais famosas são o Livro da Cura, uma vasta enciclopédia filosófica e científica, e o Cânone da Medicina, que era o texto padrão para o ensino da medicina em muitas universidades medievais. Suas demais obras incluem ainda escritos sobre filosofia, astronomia, alquimia, geografia, psicologia, teologia islâmica, lógica, matemática, física, além de poesia.

[2] No livro onde Rosalie nos traz a sua tradução de Hayy ibn Yaqzân, há ainda uma extensa introdução que abrange um resumo da vida e da obra de Avicena, com foco no gnosticismo e no hermetismo presentes em alguns dos seus tratados filosóficos e iniciáticos. O trecho que trouxe aqui faz parte do final do livro.

[3] Henry Corbin (1903 – 1978) foi um filósofo, teólogo e professor de Estudos Islâmicos da Universidade de Sorbonne em Paris, França.

[4] Há muita coisa profunda sendo dita aqui, mas penso que podemos resumir a iniciação em dois tópicos: (a) O ego “se deixa morrer” (a consciência sai de si mesma) para permitir que o Eu, o próprio cosmos, habite em seu lugar; (b) Não há um Paraíso erguido nalgum canto do universo para onde a alma é levada, mas, pelo contrário, é a própria alma quem alcança ou, talvez fosse melhor dizer, constrói este Paraíso dentro de si mesma (o cosmos passa a viver no interior da consciência).

[5] No contexto da gnose aviceniana, o termo “Oriente” se refere ao destino da alma que busca a iniciação (enquanto o termo “Ocidente” se refere ao mundo “dos que ainda não despertaram”).

[6] Ou “o Eu”. Embora muitos ocultistas o chamem de S.A.G. (o Sagrado Anjo Guardião).

[7] Tal processo se reproduz em todas as práticas religiosas da história humana. Ora, enquanto há muitos que esperam passivamente pela Revelação ditada, há outros que, quem sabe, por já conseguirem interpretar esta Revelação dentro de suas próprias almas, se arremessam ativamente ao Caminho, isto é: mergulham em si mesmos, e já não precisam mais de sacerdotes lhes ditando profecias. No entanto, há que se considerar que os dois estágios são necessários: não haveria o mergulho sem que antes houvesse um manual de natação. E quem mergulha sem haver conhecido o manual, corre o risco de se afogar ainda na beira da praia.

[8] Os deuses e outros seres celestiais certamente existem no interior da mente, da alma humana. Mais cedo ou mais tarde todo místico genuíno cessa com as interpretações literais, com as tentativas vãs de transformar chumbo de fora em ouro de fora, e passa a compreender; e em compreendendo, buscará dali em diante transformar o chumbo de dentro em ouro de dentro. Esta é a divina alquimia dos místicos: é em seu interior que mergulham e encontram o Paraíso. E este Paraíso nada mais é do que o mesmo mundo em que sempre viveram como estrangeiros, só que agora interpretado da maneira certa, com a alma. Agora, vivenciado de olhos bem abertos, e não mais na sonolência de outrora.

[9] Novamente, não custa lembrar: não se trata de dois mundos fisicamente diversos, mas de um mesmo mundo físico, interpretado de maneiras diversas. Num se vive, sobretudo, sem sentido e sem Amor; noutro, pelo contrário, tudo é preenchido por sentido, e o Amor arde sem queimar, gerando cada vez mais de si mesmo, ad infinitum.

[10] Sem os árabes, a cultura grega provavelmente jamais teria sobrevivido a “Era das Trevas” na Europa, quando a maior parte dos textos “não cristãos” foi perdida. O que nos restou foi o que alguns filósofos e colecionadores conseguiram salvar e levar para a Arábia e o Egito.

[11] E, pela última vez: os “domínios celestes” estão dentro, e não fora, de nós mesmos.

[12] Talvez um dia descubram que ser imortal não é “viver para sempre”, mas antes alcançar a Eternidade deste momento. Na Eternidade, tudo é preenchido de sentido. Fora dela, nada faz realmente muito sentido.

Crédito das imagens: Steven DaLuz

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